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O novo entendimento do STJ sobre a conversão do flagrante em preventiva

O artigo aborda o recente entendimento do STJ sobre a conversão da prisão em flagrante em preventiva, destacando a controvérsia gerada pela nova redação do CPP após a lei “anticrime”. A decisão da 3ª Seção, que exigiu a representação do MP ou autoridade policial para a conversão, reforça o princípio acusatório e limita o poder do juiz em agir de ofício, diferenciando a conversão de outras medidas cautelares. Assim, a jurisprudência atual se afasta da possibilidade de decretação de prisão preventiva sem solicitação formal, promovendo a imparcialidade no processo penal.

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No Superior Tribunal de Justiça não havia consenso acerca da possibilidade de conversão, de ofício, da prisão em flagrante em preventiva, à luz da redação dada ao artigo 311 do CPP pelo chamado pacote “anticrime”. Com efeito, ao longo do ano passado, a 5ª Turma daquela corte alterou o seu próprio entendimento a respeito da matéria, entendendo que a nova legislação manteve no ordenamento jurídico a autorização para o juiz converter o flagrante em prisão provisória sem prévio requerimento do Ministério Público ou representação da autoridade policial, referendando-se, por unanimidade, decisão que havia indeferido um Habeas Corpus (AgRg no HC 611.940). Nesse caso, ao votar pela manutenção da custódia cautelar do acusado, o relator, ministro Reynaldo Soares da Fonseca, ressaltou que a lei “anticrime” excluiu apenas a possibilidade da imposição, de ofício, de prisão preventiva, não impedindo a conversão do flagrante. Segundo ele, “embora a Lei 13.964/2019 tenha retirado a possibilidade de decretação da prisão preventiva, de ofício, do artigo 311 do Código de Processo Penal, no caso, trata-se da conversão da prisão em flagrante, hipótese distinta e amparada pela regra específica do artigo 310, II, do CPP”.

Observa-se, outrossim, que na 6ª Turma formou-se maioria pela possibilidade da conversão de ofício, a partir dos votos dos ministros Rogerio Schietti, Antonio Saldanha Palheiro e Laurita Vaz.

Diante da controvérsia, e com o fito de pacificar a interpretação do tema, a 5ª Turma afetou para a 3ª Seção o julgamento do Recurso em Habeas Corpus nº 131.263, no qual um acusado foi detido preventivamente, de ofício, após a prisão em flagrante. Agora, nesse último julgamento, a 3ª Seção, sob a relatoria do ministro Sebastião Reis Júnior, entendeu que as inovações da Lei nº 13.694/2019 tornam absolutamente inviável que o juiz, de ofício, converta em preventiva a prisão em flagrante, sendo necessário o requerimento do Ministério Público ou a representação da autoridade policial. Essa mais recente decisão foi tomada por maioria de votos, e deve nortear o entendimento das turmas que julgam matéria penal na corte, prevalecendo entendimento, aliás, da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal.

Para a maioria dos ministros que compõem a 3ª Seção, “mesmo que o inciso II do artigo 310 do CPP permita converter a prisão em flagrante em preventiva se presentes os requisitos do artigo 312 e se outras cautelares se revelarem insuficientes, é preciso que haja alguma representação. Assim, a não ocorrência da audiência de custódia por qualquer razão ou eventual ausência do representante do Ministério Público não autoriza que o juiz converta a prisão sem que haja o pedido, pedido este que, inclusive, pode ser formulado independentemente da audiência”. O relator afirmou que “a prisão preventiva não é consequência natural da prisão em flagrante, e as mudanças do pacote ‘anticrime’ impõem ao Ministério Público e à autoridade policial a obrigação de se estruturarem de modo a atender os novos deveres impostos.” No julgamento, o ministro João Otávio de Noronha afirmou categoricamente não “caber ao juiz ficar suprindo as falhas e ausências do Ministério Público. Nós não podemos substituir a inércia eventual do Ministério Público e da polícia. A lei anticrime não alterou o CPP para que as coisas continuassem como estavam”.

Pois bem.

Acertada foi a decisão e, oxalá!, seja seguida pelos Tribunais de Justiça e pelos Tribunais Regionais Federais, afinal, como se sabe, a conversão de ofício fere, desde logo, o próprio artigo 129, caput, e I, da Constituição Federal.

Ora, atividades processuais de natureza persecutória (como é a decretação de ofício de medidas cautelares) não podem estar em mãos do magistrado, sem que tenha sido para isso demandado. Mostra-se absolutamente alheia ao princípio acusatório a possibilidade de o juiz, ex officio, ainda que já na fase processual (e, com muito mais razão, antes dela), determinar qualquer que seja a medida cautelar, pois assim agindo estará atuando tal qual Jacques Fournier, o velho juiz inquisidor, o bispo da Diocese de Pamiers, “um dos grandes inquisidores de todos os tempos, um homem temido, sobretudo por causa de suas investidas obsessivas, maníacas e eficazes, contra todo o gênero de suspeitos” [1].

Conforme reiterado pela doutrina, sabe-se que o sistema acusatório impõe-se “na maioria dos sistemas processuais, e na prática demonstrou ser muito mais eficaz, tanto do ponto de vista da investigação, como para preservar as garantias processuais” [2], vedando-se que o magistrado “realize as funções da parte acusadora” [3], “que aqui surge com autonomia e sem qualquer relacionamento com a autoridade encarregada do julgamento” [4].

É verdade que aqui e acolá vê-se sempre alguém defendendo o protagonismo do juiz no processo penal, muitas vezes a partir da ideia de que se deve buscar uma tal verdade real, legitimadora de toda e qualquer possibilidade de atuação jurisdicional, ainda que meramente persecutória. Nesse aspecto, deve-se fazer referência a Muñoz Conde, especialmente quando afirma que “o processo penal em um Estado de Direito não somente deve procurar o equilíbrio entre a busca da verdade e a dignidade dos acusados, mas também deve entender a verdade mesma, não como uma verdade absoluta, mas como o dever de apoiar uma condenação somente quando, indubitável e intersubjetivamente, possa se dar como provado o fato. Tudo o mais é puro fascismo e representa a volta aos tempos da Inquisição, dos quais se supõe termos felizmente saído” [5].

Mais grave ainda é quando se busca a verdade material ou substancial, certamente aquela “carente de limites e alcançável a partir de qualquer meio, degenerando-se para um juízo de valor amplamente arbitrário do fato, e resultando inevitavelmente numa concepção autoritária e irracionalista do processo penal” [6].

Não esqueçamos, afinal, conforme ensina Jacinto Coutinho, que “o discurso sobre a Verdade/verdade é eficaz e seduz as pessoas que buscam nele o arrimo necessário para sua segurança” [7].

Portanto, em definitivo, não se pode, num processo acusatório, permitir um agir de ofício por parte do magistrado, ainda mais para decretar uma prisão provisória de ofício; do contrário, voltaremos aos tempos medievais, onde se condenava a partir de um processo concebido sob os auspícios do princípio inquisitivo, caracterizado, como diz Ferrajoli, por “uma confiança tendencialmente ilimitada na bondade do poder e na sua capacidade de alcançar a verdade”, confiando-se, ingenuamente, “não somente a verdade, como também a tutela do inocente, às presumidas virtudes do poder que julga” [8].

Destarte, permitir que o juiz decrete de ofício (ou converta, dá-se o mesmo) a prisão em flagrante em prisão preventiva representa uma séria ruptura com o princípio acusatório, fundante do sistema acusatório, além de comprometer irremediavelmente a imparcialidade que deve nortear a atuação jurisdicional [9].

Evidentemente, e para não confundir imparcialidade com neutralidade, “ainda que os princípios os vinculem, a neutralidade política do intérprete só existe nos livros. Na práxis do direito ela se dissolve, sempre. Lembre-se que todas as decisões jurídicas, porque jurídicas, são políticas” [10].

Dentro dessa perspectiva, o sistema acusatório é o que melhor encontra respaldo em uma democracia, pois distingue perfeitamente as três funções precípuas em uma ação penal, a saber: o julgador, o acusador e a defesa. Tais sujeitos processuais devem estar absolutamente separados (no que diz respeito às respectivas atribuições e competência), de forma que o julgador não acuse, nem defenda (preservando a sua necessária imparcialidade), o acusador não julgue e o defensor cumpra a sua missão constitucional de exercer a chamada defesa técnica.

[1] LADURIE, E. Le Roy. Montaillon. Cátaros e Católicos numa aldeia Occitana, 1294 à 1324. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 10. Esta obra-prima relata a vida em uma pequena aldeia medieval de camponeses e de pastores, chamada Montaillou, situada em um território hoje pertencente à França, e que foi objeto de um processo inquisitivo “extraordinariamente minucioso e exaustivo”, tornando-se, exatamente por isso, “a aldeia europeia e mesmo mundial mais conhecida de toda a Idade Média!”.

[2] BINDER, Alberto M. Iniciación al Proceso Penal Acusatório. Buenos Aires: Campomanes Libros, 2000, p. 43.

[3] SENDRA, Gimeno. Derecho Procesal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1987, p. 64.

[4] BARREIROS. José António Barreiros. Processo Penal-1. Coimbra: Almedina, 1981, p. 13.

[5] CONDE, Muñoz. Búsqueda de la Verdad en el Proceso Penal. Buenos Aires: Depalma: 2000, p. 107.

[6] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón. Madrid: Editorial Trotta, 1998, pp. 44 e 45.

[7] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Quando se fala de verdade no processo penal, do que se fala? Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jun-26/limite-penal-quando-verdade-processo-penal. Acesso em 26 de junho de 2020.

[8] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón. Madrid: Editorial Trotta, 1998, p. 604.

[9] Afinal, como diz Juan Montero Aroca, “en correlación con que la Jurisdicción juzga sobre asuntos de otros, la primera exigencia respecto del juez es la de que éste no puede ser, al mismo tiempo, parte en el conflicto que se somete a su decisión.” (Sobre la Imparcialidad del Juez y la Incompatibilidad de Funciones Procesales. Valencia: Tirant lo Blanch, 1999, p. 186).

[10] GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 51.

Referências

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