Artigos Conjur – Mortes em presídios não são acidente nem indicativo de crise no sistema

Artigos Conjur
Artigos Conjur || Mortes em presídios não são…Início / Conteúdos / Artigos / Conjur
Artigo || Artigos dos experts no Conjur

Mortes em presídios não são acidente nem indicativo de crise no sistema

O artigo aborda a crítica ao sistema penal brasileiro, enfatizando que as mortes nos presídios não são acidentes ou sinais de crise, mas resultado de uma política estatal deliberada que perpetua a violência e marginalização. O autor argumenta que as tragédias carcerárias refletem uma abordagem massiva de repressão e exclusão, revelando uma profunda crise ética na sociedade. A necessidade de uma mudança de paradigma é destacada, clamando por menos criminalização e uma abordagem mais humana e justa no tratamento das questões de justiça criminal.

Artigo no Conjur

Realmente, os últimos acontecimentos no sistema penal brasileiro demonstraram, para além de sua cruel funcionalidade, justamente a nossa carência ética e crítica da realidade. Desde a esfera política, legislativa ou gerencial, até o âmbito popular, o discurso permanece o mesmo: insistência no movimento expansionista repressivo de viés encarcerador, preferencialmente violador de direitos e garantias individuais. Até mesmo entre os órgãos do Poder Judiciário, que deveriam funcionar como freio contramajoritário de pulsões autoritárias, seja das multidões fascinadas pela violência, seja do campo político oportunista, o que existe é uma filiação massiva (salvo exceções pontuais) aos postulados clássicos da (pior) cartilha “lei e ordem” e das estratégias beligerantes de “enfrentamento” da criminalidade.

Se aquilo que chamamos de Estado de Direito deveria ser “o ponto de equilíbrio ou harmonia entre o poder e o direito”, batizado como “um limite ao poder”[2], as coisas não vão bem. Se a política criminal representa o “termômetro da vigência dos direitos humanos” em dada sociedade[3], estamos efetivamente muito mal!

A considerar os dados da realidade, tem-se mesmo como atual forma de governo a administração dos mandados de desaparecimento e morte. As embalagens jurídicas formais ou os rótulos constitucionais de direito já não convencem. Conforme Vladmir Safatle, o Estado brasileiro funciona da seguinte maneira: “Com uma mão ele massacra parte de sua população, com outra ele lembra, à outra parcela, que o medo espreita e que é necessário ‘ser ainda mais duro’”[4].

Ao tratar dos massacres ocorridos no interior dos presídios brasileiros, o filósofo é absolutamente enfático. A causa reside numa “política deliberada e pensada de administração da morte, feita nas pranchetas da omissão, do descaso, da perpetuação de condições medievais e da cumplicidade”[5].

De fato, superado o engodo discursivo vendido pelos meios de comunicação de massa (mass media), a discussão retorna à própria instância governamental de poder. Mesmo porque atribuir toda a culpa ao “crime organizado” ou a sujeitos individuais não passa de hipocrisia eleitoreira ou soberba ignorância! Sabe-se muito bem que a escolha de bodes expiatórios, embora altamente funcional em momentos de crise, engana somente aos que desejam. Logo, é preciso denunciar a total responsabilidade do Estado por esses atos de extermínio.

E, mais, ter a consciência de que as mortes operadas pelo sistema penal não são “eventos isolados”, “acidentes de percurso” ou “danos colaterais”, mas consequências reais do modo de exercício do poder punitivo, especialmente em nossa realidade marginal latino-americana. A morte humana é de verdade o grande signo penal e a sua “ética deslegitimante”, conforme antiga lição do mestre Zaffaroni[6]. O que se tem na América Latina, sem qualquer exagero, é um “genocídio em andamento”[7].

A respeito da funcionalidade do poder punitivo, destaca Rosivaldo Toscano: “Não se trata de uma anomalia, de uma crise no sistema de justiça criminal. Da forma como ele funciona e com base no discurso que o legitima, sua funcionalidade termina sendo essa mesma (…) O discurso da crise do sistema carcerário é uma grande falácia. Ele tergiversa sobre sua verdadeira face de barbárie, porque não é possível, diante de uma materialidade que por décadas se aprofunda, falar em crise. Nem é ‘crise’ nem é ‘crônico’, porque um olhar minimamente crítico revelará que está na sua essência, no modo como funciona, no modo como é funcional para excluir e eliminar os indesejáveis. Afinal, foi importado o discurso de guerra, e todos sabemos onde isso vai dar”[8].

O pior de tudo: nada disso envergonha ou constrange. Tem-se, a valer, um contínuo e dominador processo de “adesão subjetiva à barbárie”[9] em que o sujeito (“desejante”), ao invés de se indignar, passa a gozar (psicanaliticamente) com os atos de violência. O discurso, muitas vezes articulado em nome de “justiça”, não é capaz de esconder o desejo na origem: a demanda por vingança (Nietzsche). Assim, impera o estado penal de exceção!

E agora? É preciso uma nova atitude que seja capaz de gerar um pensamento ousado e inovador; algo que não caia na mera repetição de lugares-comuns, de fórmulas e de receitas já testadas[10]. Diria sem rodeios: menos criminalização, menos encarceramento, menos violência (leia-se: menos mortes). E, claro, acima de tudo, coragem… Afinal de contas, como já proclamava Guimarães Rosa, é o que a vida espera de nós!

Sempre oportunas, e nestes momentos ainda mais, as palavras do poeta mineiro Affonso Romano de Sant’Anna, citadas por Ruffato em publicação recente sobre o fascismo brasileiro: “Uma coisa é um país/ outra um ajuntamento./ Uma coisa é um país/ outra um regimento./ Uma coisa é um país/ outra o confinamento”[11].

[1] COUTO, Mia. E se Obama fosse africano?: e outras intervenções. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 44. [2] BINDER, Alberto M. Introdução ao Direito Processual Penal. Trad. de Fernando Zani. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003, p. 10. [3] BINDER, Alberto M. Introdução ao Direito Processual Penal. Trad. de Fernando Zani. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003, p. 11. [4] SAFATLE, Vladmir. Se o Estado age como o PCC, decidindo quem vive ou morre, como espera julgá-lo?. Folha de S.Paulo, 6/1/ 2017. Disponível em: . Acesso em 13/1/2017. [5] SAFATLE, Vladmir. Se o Estado age como o PCC, decidindo quem vive ou morre, como espera julgá-lo?. Folha de S.Paulo, 6/1/ 2017. Disponível em: . Acesso em 13/1/2017. [6] ZAFFARONI, Eugênio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Trad. Vânia Romano Pedrosa e Amir Lipez da Conceição. 5 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 38. [7] ZAFFARONI, Eugênio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Trad. Vânia Romano Pedrosa e Amir Lipez da Conceição. 5 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 125. Nesse sentido: “Há mortes em confrontos armados (alguns reais e a maioria simulada, ou seja, fuzilamentos sem processo). Há mortes por grupos parapoliciais de extermínio em várias regiões. Há mortes por grupos policiais ou parapoliciais que implicam a eliminação dos competidores em atividades ilícitas (disputa por monopólio de distribuição de tóxicos, jogo, prostituição, áreas de furtos, roubos domiciliares etc.). Há ‘mortes anunciadas’ de testemunhas, juízes, fiscais, advogados, jornalistas, etc. Há mortes de torturados que ‘não agüentaram’ e de outros que os torturadores ‘passaram do ponto’. Há mortes ‘exemplares’ nas quais se exibe o cadáver, às vezes mutilado, ou se enviam partes do cadáver aos familiares, praticadas por grupos de extermínio pertencentes ao pessoal dos órgãos dos sistemas penais. Há mortes por erro ou negligência, de pessoas alheias a qualquer conflito. Há mortes do pessoal dos próprios órgãos do sistema penal. Há alta freqüência de mortes nos grupos familiares desse pessoal cometidas com as mesmas armas cedidas pelos órgãos estatais. Há mortes pelo uso de armas, cuja posse e aquisição é encontrada permanentemente em circunstâncias que nada têm a ver com motivos dessa instigação pública. Há mortes em represália ao descumprimento de palavras dadas em atividades ilícitas cometidas pelo pessoal desses órgãos do sistema penal. Há mortes violentas em motins carcerários, de presos e de pessoal penitenciário. Há mortes por violência exercida contra presos nas prisões. Há mortes por doenças não tratadas nas prisões. Há mortes por taxa altíssima de suicídios entre os criminalizados e entre o pessoal de todos os órgãos do sistema penal, sejam suicídios manifestos ou inconscientes. Há mortes….” (ZAFFARONI, Eugênio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Trad. Vânia Romano Pedrosa e Amir Lipez da Conceição. 5 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, pp. 124-125). [8] SANTOS JÚNIOR, Rosivaldo Toscano dos. A Guerra ao Crime e os Crimes da Guerra: uma crítica descolonial às políticas beligerantes no sistema de justiça criminal brasileiro. Florianópolis: Empório do Direito, 2016, p. 410. [9] BATISTA, Vera Malaguti. Adesão subjetiva à barbárie. In: Loïc Wacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal. Vera Malaguti Batista (org.). 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2012, pp. 307 ss. [10] COUTO, Mia. E se Obama fosse africano?: e outras intervenções. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 29. [11] RUFFATO, Luiz. O Culto Fascista da Violência: ao invés de lutarmos pela construção de prédios escolares decentes, reivindicamos presídios. Jornal El País, 11/1/2017. Disponível em: . Acesso em 13/1/2017.

Referências

Relacionados || Outros conteúdos desse assunto
    Mais artigos || Outros conteúdos desse tipo
      Leonardo Marcondes Machado || Mais conteúdos do expert
        Acesso Completo! || Tenha acesso aos conteúdos e ferramentas exclusivas

        Comunidade Criminal Player

        Elabore sua melhor defesa com apoio dos maiores nomes do Direito Criminal!

        Junte-se aos mais de 1.000 membros da maior comunidade digital de advocacia criminal no Brasil. Experimente o ecossistema que já transforma a prática de advogados em todo o país, com mais de 5.000 conteúdos estratégicos e ferramentas avançadas de IA.

        Converse com IAs treinadas nos acervos de Aury Lopes Jr, Alexandre Morais da Rosa, Rodrigo Faucz, Gabriel Bulhões, Cristiano Maronna e outros gigantes da área. Explore jurisprudência do STJ com busca inteligente, análise de ANPP, depoimentos e muito mais. Tudo com base em fontes reais e verificadas.

        Ferramentas Criminal Player

        Ferramentas de IA para estratégias defensivas avançadas

        • IAs dos Experts: Consulte as estratégias de Aury Lopes Jr, Alexandre Morais da Rosa, Rodrigo Faucz, Gabriel Bulhões e outros grandes nomes por meio de IAs treinadas em seus acervos
        • IAs de Jurisprudência: Busque precedentes com IAs semânticas em uma base exclusiva com mais de 200 mil acórdãos do STJ, filtrados por ministro relator ou tema
        • Ferramentas para criminalistas: Use IA para aplicar IRAC em decisões, interpretar depoimentos com CBCA e avaliar ANPP com precisão e rapidez
        Ferramentas Criminal Player

        Por que essas ferramentas da Criminal Player são diferentes?

        • GPT-4 com curadoria jurídica: Utilizamos IA de última geração, ajustada para respostas precisas, estratégicas e alinhadas à prática penal
        • Fontes verificadas e linkadas: Sempre que um precedente é citado, mostramos o link direto para a decisão original no site do tribunal. Transparência total, sem risco de alucinações
        • Base de conhecimento fechada: A IA responde apenas com conteúdos selecionados da Criminal Player, garantindo fidelidade à metodologia dos nossos especialistas
        • Respostas com visão estratégica: As interações são treinadas para seguir o raciocínio dos experts e adaptar-se à realidade do caso
        • Fácil de usar, rápido de aplicar: Acesso prático, linguagem clara e sem necessidade de dominar técnicas complexas de IA
        Comunidade Criminal Player

        Mais de 5.000 conteúdos para transformar sua atuação!

        • Curso Teoria dos Jogos e Processo Penal Estratégico: Com Alexandre Morais da Rosa e essencial para quem busca estratégia aplicada no processo penal
        • Curso Defesa em Alta Performance: Conteúdo do projeto Defesa Solidária, agora exclusivo na Criminal Player
        • Aulas ao vivo e gravadas toda semana: Com os maiores nomes do Direito Criminal e Processo Penal
        • Acervo com 130+ Experts: Aulas, artigos, vídeos, indicações de livros e materiais para todas as fases da defesa
        • IA de Conteúdos: Acesso a todo o acervo e sugestão de conteúdos relevantes para a sua necessidade
        Comunidade Criminal Player

        A força da maior comunidade digital para criminalistas

        • Ambiente de apoio real: Conecte-se com colegas em fóruns e grupos no WhatsApp para discutir casos, compartilhar estratégias e trocar experiências em tempo real
        • Eventos presenciais exclusivos: Participe de imersões, congressos e experiências ao lado de Aury Lopes Jr, Alexandre Morais da Rosa e outros grandes nomes do Direito
        • Benefícios para membros: Assinantes têm acesso antecipado, descontos e vantagens exclusivas nos eventos da comunidade

        Assine e tenha acesso completo!

        • 75+ ferramentas de IA para estratégias jurídicas com base em experts e jurisprudência real
        • Busca inteligente em precedentes e legislações, com links diretos para as fontes oficiais
        • Curso de Alexandre Morais da Rosa sobre Teoria dos Jogos e Processo Penal Estratégico
        • Curso Defesa em Alta Performance com Jader Marques, Kakay, Min. Rogério Schietti, Faucz e outros
        • 5.000+ conteúdos exclusivos com aulas ao vivo, aulas gravadas, grupos de estudo e muito mais
        • Fóruns e grupos no WhatsApp para discutir casos e trocar experiências com outros criminalistas
        • Condições especiais em eventos presenciais, imersões e congressos com grandes nomes do Direito
        Assinatura Criminal Player MensalAssinatura Criminal Player SemestralAssinatura Criminal Player Anual

        Para mais detalhes sobre os planos, fale com nosso atendimento.

        Quero testar antes

        Faça seu cadastro como visitante e teste GRÁTIS por 7 dias

        • Ferramentas de IA com experts e jurisprudência do STJ
        • Aulas ao vivo com grandes nomes do Direito Criminal
        • Acesso aos conteúdos abertos da comunidade

        Já sou visitante

        Se você já é visitante e quer experimentar GRÁTIS por 7 dias as ferramentas, solicite seu acesso.