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Decisão suíça sobre provas da “lava jato” gera debate sobre conteúdo e forma

O artigo aborda a recente decisão do Tribunal Federal Criminal da Suíça, que suspendeu o processo da “lava jato” devido a irregularidades na obtenção de provas, levantando questões sobre a validade dessas evidências no Brasil. A análise discute a importância dos trâmites de cooperação jurídica internacional e a possibilidade de nulidade das provas obtidas de forma inadequada. Além disso, os autores questionam como esse contexto pode impactar o andamento e os resultados das ações penais associadas à operação.

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O noticiário político-judicial dos últimos dias trouxe informações que trazem mais polêmica a uma das ações penais desencadeadas no bojo da operação “lava jato”. O processo, que apura supostos ilícitos de executivos da Odebrecht, teve seu curso ordinário suspenso a partir da decisão do Tribunal Federal Criminal (Bundesstrafgericht) suíço, que apontou sérias irregularidades na obtenção de documentos (dados sigilosos de contas bancárias), trazidos aos autos pelo Ministério Público Federal.

Conforme se constatou em rápida pesquisa nas decisões publicadas na web – facilitada pela publicidade dada ao processo –, houve um pedido de cooperação jurídica entre Brasil e Suíça, enviado pela promotoria suíça, solicitando a inquirição de diversos envolvidos na investigação. Juntamente com os quesitos, foram encaminhados documentos bancários sigilosos da empresa Havinsur S/A. Dita pessoa jurídica, segundo a tese acusatória, teria emprestado contas bancárias para que a Odebrecht recebesse valores desviados da Petrobrás.

Perceba-se que o objeto da cooperação jurídica era de oitiva de pessoas e não para a juntada de documentos. A Corte suíça consubstanciou o entendimento de que houve produção de provas disfarçada de pedido de cooperação jurídica internacional, no que se denominou “cooperação selvagem” – “entraide sauvage”, originalmente.

Em apertado resumo, não há dúvidas de que (a) as informações trazidas pelo MP suíço subsidiaram as prisões dos executivos da empreiteira e constituem o principal alicerce da acusação no Brasil (“provas materiais principais”, segundo o magistrado que preside a instrução criminal), e (b) o procedimento de circulação ou empréstimo de provas para o MPF no Brasil foi reconhecidamente irregular.

A partir desse quadro, a defesa de um dos acusados postulou à Justiça Federal brasileira a determinação do desentranhamento do meio de prova, a partir da admissão pelo país que colheu a evidência de que sua obtenção violou trâmites procedimentais. O juízo federal de Curitiba indeferiu o pleito, em decisão cujo cerne é reproduzido abaixo:

“Afinal, diante dos indicativos de que a conta da Havinsur é, pela prova documental, controlada pela Odebrecht e que através da referida conta foi transferido vultoso valor monetário à conta controlada por Renato de Souza Duque, é evidente que há e havia, mesmo pelos padrões legais rigorosos da Suíça, causa fundada para a quebra de sigilo bancário e para justificar a cooperação com o Brasil.

Não faz, por outro lado, sentido aguardar que a irregularidade procedimental seja sanada na Suíça se, pela decisão da r. Corte daquele país, isso aparenta ser certo e se não foi imposta por ela tal condição para que as autoridades brasileiras continuassem a utilizar os documentos. Havendo ainda, no processo local, acusados presos, menos ainda sentido faz aguardar mais tempo.

No fundo, a Odebrecht, seus executivos e seus advogados, ao mesmo tempo em que deixam de explicar nos autos ou em suas inúmeras manifestações na imprensa os documentos alusivos às contas secretas, buscam apenas ganhar mais tempo, no que foram bem sucedidos considerando a decisão da r. Corte Suiça, mas isso somente em relação aos procedimentos na Suíça, que terão que ser corrigidos, sem qualquer, porém, afetação ou reflexo, como também decidiu expressamente aquela r. Corte Suíça, da possibilidade de utilização dos documentos nos processos no Brasil.

Portanto, considerando os próprios termos expressos da r. Corte Suíça, reconhecendo erro procedimental sanável e denegando a moção de proibição de utilização da prova no Brasil ou de solicitação de retorno dos documentos, indefiro o pedido da Defesa de Márcio Faria de exclusão das provas. (…)”

O posicionamento do juízo federal traz algumas indagações pertinentes: a formalidade para a troca de documentos entre nações – cooperação jurídica internacional – é procedimento essencial para que essas informações sejam valoradas como prova no Brasil? Além disso, a ilegalidade na transmissão de tais documentos às autoridades brasileiras alcança as decisões da operação “lava jato” que tiveram por base o conteúdo dos documentos (dados bancários)?

A resposta passa por ao menos dois pilares substanciais do sistema processual penal: provas e nulidades.

No campo da prova, o sistema processual encontra limites à descoberta da verdade, informados pelas proibições de prova[1], sendo o mais importante aquele trazido pela inadmissibilidade de provas ilícitas. Na situação em exame, verifica-se estar diante de prova ilegítima[2], haja vista a inobservância de normas procedimentais basilares. O procedimento de cooperação jurídica internacional é essencial para possibilitar o intercâmbio de dados, informações e documentos, funcionando como verdadeiro ato de instrução probatória.

Cumpre mencionar que, no curso de uma cooperação jurídica não-selvagem, a titular dos dados possuiria inclusive direito a se manifestar oportunamente. Portanto, está a se carimbar como mera irregularidade a supressão do exercício de defesa durante a cooperação. A decisão do juízo federal de Curitiba peca na medida em que antecipa a valoração de elementos de convicção obtidos irregularmente. O meio de prova não pode ser valorado enquanto não houver regularização do procedimento – a qual pode resultar até mesmo em uma mudança da interpretação sobre os dados.

No campo das nulidades, esse entendimento, que se apresenta em outras cortes do país, é um sintoma de uma lógica substancialista[3], segundo a qual existiria uma verdade essencial independentemente do cumprimento das etapas procedimentais para alcançá-la. A partir de uma hipótese fundante (Fulano é culpado), compactua-se com o atropelo às normas procedimentais, consideradas um preciosismo desnecessário[4], em nome de um fim supostamente maior (condenação de Fulano).

Como leciona o insigne processualista Alberto Binder, as formas processuais constituem garantia de proteção aos interesses valiosos do sistema jurídico. A observância dos ritos e dos princípios que estes tutelam é fundamental para a realização de um processo penal civilizado. Disto deflui o preciso conceito de Binder[5] sobre nulidade:

Así se obtiene una noción simple y precisa de la nulidad: la pérdida de los efectos propios de un acto procesal por su realización defectuosa, es decir, violando las prescripciones legales que regulaban su forma de producción.

Esta perspectiva permite inferir que: (a) a estruturação do processo em etapas solenes serve para evitar violação de direitos fundamentais e pré-julgamentos; (b) o descumprimento de procedimentos ensejará a invalidação do ato e de seus desdobramentos; e (c) qualquer conclusão sobre o mérito da causa que despreze as formalidades legais será arbitrária.

Quando uma decisão interlocutória repreende o acusado por apontar vícios formais da prova acusatória – lembre-se, os réus estão presos cautelarmente há vários meses –, acusando-o de procrastinador, e conclamando-o a contrapor o conteúdo da imputação, não existe mais dúvida sobre qual será o veredicto após as alegações escritas.

O magistrado que flexibiliza as garantias processuais, engajando-se em uma espécie de cruzada contra a corrupção, subverte a lógica processual escorada na ordem jurídica constitucional. Como disse o escritor G.K. Chesterton: “Os homens não divergem muito sobre quais coisas considerarão males; eles divergem enormemente sobre quais males eles considerarão escusáveis”.

[1] ANDRADE, Manuel da Costa. Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1991 (reimpressão de 2013). p. 83.

[2] De acordo com a concepção dos autores, as provas ilícitas, ilegais, vedadas ou proibidas são a categoria lato sensu, nas quais se incluem as provas ilícitas stricto sensu e as ilegítimas. Por ilícitas stricto sensu, entendem-se aquelas provas que foram obtidas infringindo normas constitucionais ou aquelas que violaram uma regra penal, situações nas quais para se obter a prova foi necessário infringir um preceito de direito material. Já as provas ilegítimas, seriam aquelas que violam uma norma de direito processual penal ou procedimental (formalidades do processo) para sua produção. A prova ilícita stricto sensu é inadmissível e deverá ser desentranhada dos autos. A prova ilegítima admite renovação – pois se constitui em verdadeira nulidade – como é o caso em comento. Enquanto não renovado o ato irregular (envio de documentos sem procedimento próprio de cooperação internacional), nos estritos termos exigidos pela lei, todas as decisões dele decorrentes também deverão ser declaradas nulas. Cf. EBERHARDT, Marcos. Provas no processo penal: análise crítica, doutrinária e jurisprudencial. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016. p.219-220.

[3] Categoria aprofundada em TOVO, Antonio. Nulidades e limitação do poder de punir. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

[4] Uma das diversas passagens em que a exposição de motivos do Código de Processo Penal revela seu tom autoritário é quando equipara o sistema de nulidades a “fraudes, subterfúgios e alicantinas”, nas quais escoaria a substância do processo.

[5] BINDER, Alberto. El incumplimiento de las formas procesales: elementos para una crítica a la teoría unitaria de las nulidades en el proceso penal. Buenos Aires: Editorial Ad-Hoc, 2000. p. 108

Referências

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