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Muniz: Até que a morte declare a extinção da punibilidade!

O artigo aborda a recente decisão da 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, que determina que o pagamento da pena de multa é essencial para a extinção da punibilidade, mesmo após o cumprimento da pena privativa de liberdade. A autora, Gina Ribeiro Gonçalves Muniz, critica essa posição, argumentando que vincular a extinção da pena à capacidade financeira do condenado viola o princípio da dignidade humana e perpetua a seletividade penal, especialmente para a população carcerária de baixa renda. Além disso, discute as implicações dessa decisão na efetividade da ressocialização dos condenados.

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A 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento no sentindo de que o pagamento da pena de multa é imprescindível para o reconhecimento da extinção da punibilidade, ainda que já devidamente cumprida a pena privativa de liberdade ou restritiva de direito. Tratou-se, a bem da verdade, de uma readequação de tese, haja vista que o STJ, no julgamento do Recurso Especial Representativo da Controvérsia nº 1.519.777/SP (relatoor ministro Rogerio Schietti, 3ª S., DJe 10/9/2015), Tema 931 dos recursos repetitivos do STJ, havia firmado tese no sentindo de que cumprimento da pena privativa de liberdade/restritiva de direitos implicava extinção da punibilidade, ainda que pendente a pena de multa que tivesse sido aplicada concomitantemente.

O ponto nodal do presente artigo consistirá em uma análise do novo posicionamento do STJ acerca da matéria. Para tanto, se realizará um cotejo crítico entre os fundamentos que conduziram à readequação da tese no sentido de que “na hipótese de condenação concomitante a pena privativa de liberdade e multa, o inadimplemento da sanção pecuniária obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade” e as balizas que, de outra banda, servem de sustentáculo para demonstrar como essa tese viola o princípio da dignidade da pessoa humana e agravará a seletividade penal do sistema brasileiro [1].

Os tribunais superiores entendem que o cerne da questão diz respeito à natureza jurídica da pena de multa. Explicamos: o já referido entendimento do STJ, firmado em 2015, era sedimentado na ideia de que a pena de multa angariou caráter extrapenal, inclusive cobrada pela Procuradoria da Fazenda Pública, conforme a redação conferida ao artigo 51 do CP pela Lei 9.268/96. Destarte, o cumprimento integral da pena privativa de liberdade/restritiva de direitos seria o suficiente para concretizar o poder punitivo estatal.

Em 2019, o ministro Luís Roberto Barroso, relator da também já referida ADI nº3.150, enfatizou que a pena de multa não perdeu o caráter penal, mesmo com a redação conferida pela Lei 9.268/96, e, portanto, não poderia ser equiparada com outras dívidas cobradas pela Fazenda Pública. Ademais, o ministro ponderou ainda que a natureza penal é concedida constitucionalmente à pena de multa, que a elenca expressamente como espécie de sanção penal (artigo 5°, XLVI, da CF).

O advento da Lei 13.964/19 reforçou o entendimento jurisprudencial do STF no que tange à natureza criminal da pena de multa, conferindo ao artigo 51 do CP a seguinte redação: “Transitada em julgado a sentença condenatória, a multa será executada perante o juiz da execução penal e será considerada dívida de valor, aplicáveis as normas relativas à dívida ativa da Fazenda Pública, inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas da prescrição”. A multa não paga, nos termos da redação conferida pelo pacote “anticrime”, deve ser cobrada pelo Ministério Público e o processo tramitará na vara da execução penal.

É forçoso reconhecer, mormente diante de toda a explicação feita acima, que a pena de multa tem realmente natureza penal. Mas para quem comprovadamente não tem condições de pagar a multa seria, no mínimo, desumano e cruel ter a sua extinção da punibilidade vinculada ao pagamento dessa pena pecuniária?

Dito de outro modo: a imensa maioria da população carcerária brasileira é composta por pessoas de baixa renda [2], será que a vinculação da extinção de punibilidade ao adimplemento da pena de multa não significará a instituição da inconstitucional pena de caráter perpétuo para os condenados pobres — repita-se, maior clientela do sistema penal?

Vozes dirão que não se trata de pena de caráter perpétuo, haja vista que a prescrição (diga-se de passagem, sujeita a várias causas suspensivas e interruptivas) também é causa extintiva da punibilidade. Mas será mesmo razoável que a incompetência estatal em agir no tempo hábil seja capaz de extinguir a punibilidade, mas a situação de penúria dos condenados apenas sirva para amarrá-los ainda mais às “garras” da Justiça Penal?

Ademais, a CF, no artigo 5º, XLVII, veda não apenas as penas de caráter perpétuo, mas também as cruéis. Alguém duvida da crueldade de se negar a cidadania de uma pessoa pelo simples fato de não ter condições de pagar uma multa penal, mormente quando se sabe da dificuldade dos egressos em ter colocação no mercado de trabalho?

Vamos além: pensamos que a negativa em se reconhecer a extinção da punibilidade a alguém que não pode pagar uma multa, mas cumpriu integralmente a pena privativa de liberdade/restritiva de direitos, constitui violação ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

Como uma pessoa pobre na forma da lei poderá se desvencilhar do status de condenada? Primeira opção: pedindo a sua família e amigos para pagar a multa por compaixão? Pensamos não ser essa a solução, até mesmo porque a natureza penal da multa impede que a responsabilidade seja imputada a terceiros, nos ditames do princípio da personalidade da pena. Segunda opção: requerendo ao juiz da execução para que sua escassez financeira seja compensada com mais pena privativa de liberdade, tendo em vista que o único bem que dispõe para resolver uma questão penal é seu próprio corpo? Acreditamos também não ser essa a solução, mormente porque, desde do advento da Lei 9.268/96, não é possível a conversão de multa inadimplida em pena privativa de liberdade, justamente para evitar que a pena pecuniária restinga o direito à locomoção do condenado.

Como uma pessoa que não possui rendas, poderá adimplir essa obrigação diabólica? Ela levará literalmente ao túmulo o status de condenada, ocasião em que será reconhecida a extinção da punibilidade pela morte do agente?

Outrossim, será que não caberia ao Ministério Público estabelecer um patamar mínimo, abaixo do qual não existiria interesse na execução da multa não paga, até mesmo porque a execução iria gerar mais despesas ao erário que o valor arrecado com o adimplemento da dívida?

É bem verdade que a pena de multa, assim como a pena privativa de liberdade e restritiva de direitos, é dosada com base no princípio da individualização da pena, mas o maior objetivo desse princípio constitucional é servir como uma verdadeira garantia ao indivíduo na contenção do poder punitivo estatal, e não de promover sua expansão!

Outrossim, ensina Zaffaroni que o princípio da humanidade da pena implica “a inconstitucionalidade de qualquer pena ou consequência do delito que crie uma deficiência física (morte, amputação, castração ou esterilização, intervenção neurológica, etc.), como também qualquer consequência jurídica inapagável do delito” [3].

Ademais, umas das finalidades da pena é promover a ressocialização do condenado e essa meta resta prejudicada se o apenado for perpetuamente estigmatizado como criminoso. Já aludia Carnelutti: “O encarcerado, saído do cárcere, crê não ser mais encarcerado; mas as pessoas não. Para as pessoas, ele é sempre encarcerado; quando muito se diz ex-encarcerado” [4].

Em uma comparação bastante elucidativa do raciocínio aqui apresentado: imagina-se se não houvesse possibilidade de dispensa de pagamento de fiança para a concessão de liberdade provisória, muitas pessoas restariam presas provisoriamente exclusivamente por falta de condições financeiras.

Já temos um Direito Penal seletivo na hora de taxar as condutas criminais e também no momento de processar e julgar os acusados. Vamos mesmo permitir que dita seletividade vigore até mesmo para o reconhecimento da extinção da punibilidade?

Em conclusão, concordamos que a pena de multa tem caráter penal, mas pensamos que — levando-se em consideração a realidade carcerária brasileira, formada, em sua maioria, por uma população que não tem condições nem mesmo de uma subsistência minimamente digna, quiçá de pagar uma multa — caberia ao STJ fixar uma tese que sopesasse o princípio da dignidade da pessoa humana como a grande bussola orientadora da fixação de teses.

Por oportuno, finalizamos com uma frase atribuída a Eduardo Galeano: “A Justiça e a serpente só picam os pés descalços” [5].

[1] MUNIZ, Gina Ribeiro Gonçalves. O mito da justiça penal igualitária no Brasil. Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-set-15/tribuna-defensoria-mito-justica-penal-igualitaria-brasil, acesso em: 29/01/2021.

[2] Os dados constantes do relatório do DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional), atualizado em junho de 2017, disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen são elucidativos da referida seletividade penal. Os relatórios dos anos posteriores não trazem a distribuição dos presos por etnia/cor e grau de escolaridade.

[3] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de Derecho Penal, parte general, 6. Ed. Buenos Aires: Ediar, 1991,p.139.

[4] CARNELUTTI, Francesco; As Misérias do Processo Penal. São Paulo: Editora Nilobook, 2013, p. 99.

[5] Citação feita por Eduardo Newton Januário, no Podcast “Faixa Verde”. Disponível em https://podcasts.google.com/feed/aHR0cHM6Ly9hbmNob3IuZm0vcy80NjY1ZGEyNC9wb2RjYXN0L3Jzcw/episode/MjY3MDYzNWEtYmNhYy00NDY2LWE2NjMtOWY2NzJjYWNiYjc0?sa=X&ved=0CAUQkfYCahcKEwjglp_A8cnuAhUAAAAAHQAAAAAQAQ&hl=pt-BR, acesso em: 01/02/2021.

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