Artigos Conjur – Cadeia de custódia: processo penal não é lugar para travessuras probatórias

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Cadeia de custódia: processo penal não é lugar para travessuras probatórias

O artigo aborda a importância da cadeia de custódia no processo penal como garantia da autenticidade e integridade das provas, ressaltando que sua violação compromete o direito de defesa e a legitimidade do procedimento. Os autores discutem a crise atual nas práticas forenses, onde falhas frequentes desrespeitam os protocolos estabelecidos, e propõem uma atuação estratégica baseada na teoria dos jogos para enfrentar essa realidade. Por fim, enfatizam que a preservação da cadeia de custódia é fundamental para garantir a justiça e evitar arbitrariedades no sistema penal.

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A cadeia de custódia é o instrumento de controle e garantia da autenticidade, integridade e rastreabilidade da prova penal. Sua violação compromete o direito de defesa e a própria legitimidade do processo, sobretudo em um contexto de manifesta assimetria informacional — a investigação estatal costuma se estender por longo período, ao passo que a defesa dispõe, em regra, de apenas 10 dias após a citação para reagir.

Se a validade da prova penal é o critério de legitimidade da jurisdição penal, então a integridade probatória representa a linha de resistência entre o devido processo legal e o arbítrio estatal. Nesse cenário, a cadeia de custódia cumpre papel fundamental ao assegurar que os vestígios (dados) — transformados posteriormente em evidências e provas (informação e conhecimento) — mantenham-se autênticos, íntegros e rastreáveis.

Como instrumento técnico-processual de controle, a cadeia de custódia é a principal garantia da mesmidade dos vestígios coletados durante a investigação criminal e o processo penal. Trata-se de assegurar que o elemento probatório submetido à análise judicial seja, de fato, o mesmo vestígio originário, livre de contaminações, adulterações ou manipulações indevidas.

Como se demonstrará adiante, a prática forense tem revelado a existência de uma crise silenciosa, na qual a cadeia de custódia é frequentemente desrespeitada ou relativizada, às vezes por desconhecimento técnico, às vezes por desfaçatez. Diante desse cenário, impõe-se uma atuação estratégica e racional. É nesse ponto que a teoria dos jogos se revela um instrumento útil de resistência e enfrentamento.

Crise da cadeia de custódia

A reforma promovida pela Lei 13.964/2019 inseriu, nos artigos 158-A a 158-F do Código de Processo Penal, a disciplina normativa da cadeia de custódia. Trata-se de exigência formal que suplanta o argumento pueril de mera formalidade: o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa impõem o registro e documentação de toda a trajetória da prova.

Para que um vestígio possa ser validamente convertido em prova, é imprescindível documentar sua cadeia — desde a coleta inicial até o descarte ou armazenamento final. O objetivo é impedir manipulações, erros humanos, fraudes e demais formas de comprometimento da evidência, garantindo, assim, sua auditabilidade e valor probatório. A ausência ou deficiência na observância dos protocolos compromete a função epistemológica da prova e ameaça a lógica democrática do processo penal.

Aliás, o Ministério da Justiça editou Procedimentos Operacionais Padrão (POPs) robustos quanto ao tema que, em geral, são desconhecidos pelos profissionais do processo penal, configurando sintoma de desatualização ou de má-fé. Voltaremos a falar de cada um deles. Mas vale conferir aqui o conjunto de publicações aqui.

Contudo, a prática forense brasileira ainda está longe da conformidade normativa. São recorrentes situações como:

isolamento deficiente da cena do crime;

isolamento deficiente da cena do crime;

coleta e acondicionamento de vestígios físicos ou digitais sem documentação adequada;

coleta e acondicionamento de vestígios físicos ou digitais sem documentação adequada;

transporte sem registro formal de posse;

transporte sem registro formal de posse;

ausência de protocolos padronizados para processamento e armazenamento.

ausência de protocolos padronizados para processamento e armazenamento.

A prova que não cumpre as exigências da cadeia de custódia carece de confiabilidade e não possui aptidão para fundamentar decisões penais condenatórias.

Natureza da nulidade: absoluta ou relativa?

A pergunta é inevitável: a quebra da cadeia de custódia enseja nulidade absoluta ou apenas relativa? Para responder, é necessário, primeiro, examinar se a prova cuja cadeia foi rompida atende ao standard probatório exigido.

O standard probatório é o grau de suficiência exigido para a confirmação da hipótese acusatória. Em outras palavras, é o “grau mínimo de prova” necessário para considerar um fato como provado (alteração do valor da hipótese acusatória). Adotando parâmetros da tradição anglo-saxã, podemos identificar quatro padrões principais:

a) prova clara e convincente;

a) prova clara e convincente;

b) prova mais provável que sua negação;

b) prova mais provável que sua negação;

c) preponderância da prova;

c) preponderância da prova;

d) prova além de toda dúvida razoável.

d) prova além de toda dúvida razoável.

Dado que a ruptura da cadeia de custódia compromete a autenticidade, integridade e rastreabilidade da prova, deixa de preencher os critérios mínimos exigidos para valoração judicial. Não sendo confiável nem além de dúvida razoável, tal elemento não pode ser considerado “prova”, tampouco sustentáculo de condenação.

O rompimento dos elos de garantia da cadeia de custódia pode decorrer de vício procedimental, ilicitude, ilegitimidade ou manipulação, todos fatores que afetam de forma insanável a validade probatória. Nessa linha, impõe-se a exclusão da prova contaminada, bem como de todas as dela derivadas, conforme a doutrina dos frutos da árvore envenenada.

Apesar disso, a jurisprudência tem reiteradamente relativizado os efeitos da quebra da cadeia de custódia. No HC 837954/RS, por exemplo, mesmo diante de parecer técnico que evidenciava falhas na extração de interceptações telefônicas, o STJ entendeu que não houve prejuízo concreto ou adulteração dos dados.

No mesmo sentido, no HC 925402/SP, o STJ fixou tese segundo a qual “a alegação de quebra da cadeia de custódia deve ser acompanhada de elementos que desacreditem a preservação das provas”.

Discorda-se por questões de legitimidade democrática. A jurisprudência atual revela uma tendência preocupante de admitir provas sabidamente comprometidas, desde que não haja “prejuízo” demonstrável. A postura incorre em erro técnico e dogmático. Invocar o princípio pas de nullité sans grief, herdado do processo civil, para o processo penal é equívoco conceitual: o “prejuízo” em matéria penal se presume quando a legalidade da prova é rompida, isto é, a quebra da cadeia de custódia impede a amplitude da defesa.

Afinal, se a Constituição e a legislação ordinária estabelecem uma forma, é porque ela representa a realização concreta de garantias fundamentais — legalidade, devido processo e presunção de inocência. Relativizar a cadeia de custódia é corroer o próprio fundamento epistêmico e ético da prova penal.

A exigência de que a defesa prove o comprometimento da prova — e não o Estado a sua regularidade — inverte a lógica do ônus argumentativo e compromete a paridade de armas. Trata-se de exigência assimétrica, que enfraquece a presunção de inocência e fragiliza o contraditório.

Portanto, a quebra da cadeia de custódia deve gerar nulidade absoluta porque, diz Aury Lopes Jr, não se pode qualificar de válido algo que é inexistente. Admitir provas com vícios estruturais cria precedentes perigosos, admitindo no processo elementos instáveis e desprovidos de garantias de procedência origem. E o mais grave: quando se alega que houve manipulação, os Tribunais superiores, em geral, eximem-se, sob a alegação de reexame fático.

Dessa forma, a admissibilidade da prova deve ser aferida à luz de um standard rigoroso, cuja pré-condição é a preservação íntegra da cadeia de custódia.

Teoria dos Jogos e estratégia processual: como atuar em processos assimétricos

Em contextos marcados por profunda assimetria entre acusação e defesa, a teoria dos jogos oferece instrumentos para uma atuação defensiva estratégica. No âmbito da cadeia de custódia, essa racionalidade pode ser aplicada da seguinte forma:

Durante a investigação: Ao identificar falhas, a defesa deve evitar alertar a autoridade investigante, o representante do Ministério Público e o Juiz das Garantias, evitando a formação de um conjunto probatório viciado. O incidente de prova ilícita ou de quebra da cadeia de custódia deve ser oposto imediatamente

Na instrução: Por meio de técnica de “cross-examination”, deve buscar revelar inconsistências documentais e contradições entre os agentes responsáveis pela cadeia, muitas vezes com diligências documentais requeridas nos órgãos de investigação por meio da Lei de Acesso à Informação.

No momento de alegações finais e recursos: Defender a nulidade absoluta das provas contaminadas, demonstrando a quebra objetiva dos elos da cadeia e a contaminação das demais.

O profissional que compreende a lógica da teoria dos jogos atua de forma planejada: molda o processo para maximizar o impacto das falhas da parte contrária, transformando o vício da cadeia de custódia em oportunidade de vitória técnica.

Essa estratégia deve seguir o Teste EVE (Existência, Validade e Eficácia):

Só existe prova válida se a cadeia de custódia estiver preservada;

Apenas provas formalmente válidas podem ser valoradas;

Sem validade, inexiste eficácia probatória.

A crise da cadeia de custódia reflete também a cultura de desconfiança em relação às garantias processuais. Na ânsia por resultados punitivos — frequentemente pressionados por demandas sociais e midiáticas — agentes públicos negligenciam ritos essenciais, amparados pela conivência jurisprudencial. E, como diz Geraldo Prado, se os Tribunais toleram práticas em desconformidade, fomentam a perpetuação de investigações alheias às exigências da cadeia de custódia.

Conclusão

A cadeia de custódia é o traço que separa o processo penal da arbitrariedade. Sua violação rompe o elo de confiança entre o acusado e o Estado, entre liberdade e poder.

O agente processual penal, diante dessa realidade, deve transcender os limites do mero apontar de erros, agindo de modo proativo e estratégico, valendo-se do direito de petição, da Lei de Acesso à Informação e de outros recursos para obter informações muitas vezes sonegadas aos autos (vale ler o voto da ADC 51 do STF). Há um mundo de diligências omitidas nas ditas agências de inteligência, com rastros digitais identificáveis, mas somente para quem sabe os caminhos para requerer. Quem espera a instrução para perguntar assume a posição de amador que depois reclama nas redes sociais.

A atuação estratégica deve planejar a atuação com racionalidade e técnica, transformando falhas processuais em garantias efetivas. A teoria dos jogos aplicada ao processo penal fornece o suporte necessário para uma atuação consciente, eficiente e transformadora, identificando oportunidades nos espaços omitidos na investigação documentada que esconde, muitas vezes, pela dissimulação, os passos ocultos. E são muitos. Voltaremos para indicar “como pedir” em novas colunas.

No fim, não se trata apenas de proteger um acusado. Trata-se de proteger a própria civilização contra o retrocesso da violência institucional, muitas vezes disfarçada de justiça. O processo penal, em sua matriz constitucional, não é um meio de produção de resultados, nem de travessuras probatórias, mas um instrumento de contenção do poder que, em tempos de tecnologia, esconde-se principalmente sob o manto digital. Mas os rastros podem ser descobertos para quem sabe os caminhos…

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