Artigos Conjur – A (falta de) contribuição da ADPF nº 779 para a desconstrução de uma sociedade machista

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A (falta de) contribuição da ADPF nº 779 para a desconstrução de uma sociedade machista

O artigo aborda a decisão do STF sobre a inconstitucionalidade da tese da legítima defesa da honra em casos de feminicídio, analisando seus efeitos na luta contra a violência de gênero. A autora, Gina Ribeiro Gonçalves Muniz, critica a polarização das opiniões sobre feminismo e defende a necessidade de políticas públicas que combatam as causas estruturais da violência, ao invés de apenas restringir a defesa dos réus, alertando que a cultura machista ainda permeia a sociedade e os tribunais. Além disso, são apresentados dados alarmantes sobre o aumento dos feminicídios, evidenciando a urgência de ações eficazes e abrangentes.

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O Plenário do STF, em 1/8/2023, finalizou o julgamento da ADPF nº 779 [1], e, referendando medida cautelar concedida em 2021, declarou inconstitucional o uso da tese da legítima defesa da honra nos crimes de feminicídio. Em síntese, foram firmadas as seguintes diretrizes:

1) A tese da legítima defesa da honra é inconstitucional e não pode ser invocada, direta ou indiretamente, em qualquer procedimento, inclusive no júri, sob pena de nulidade; 2) Como o acusado não pode beneficiar-se da própria torpeza, não se reconhece a nulidade quando a defesa fizer propositadamente o uso da tese da legítima defesa da honra para buscar uma nulidade; 3) Não há violação à soberania dos veredictos em provimento de apelação para anular absolvição fundada em quesito genérico, quando, de algum modo, houver relação com a tese de legítima defesa da honra.

Indiscutivelmente, nossa sociedade não pode mais tolerar a violência contra as mulheres. Entrementes, surge uma indagação: as teses acima referidas, para além de cercear o direito do réu à plenitude de defesa, são aptas a efetivamente diminuírem o número de feminicídios em nosso país, ou, ao menos, a impedir a impunidades de seus executores?

Antes de se adentrar na temática principal dessa reflexão, se faz necessário repudiar uma polarização maniqueística que vem sendo erroneamente levantada nas mídias sociais: ou a pessoa é feminista e concorda com o objeto da ADPF 779, ou a pessoa é contra o feminismo e, por isso não concorda com os efeitos práticos da decisão proferida pelo STF.

Recorrendo-se ao dicionário, sem olvidar que todo “ismo” configura uma redução e tentativa de enquadramento pedagógico de pensamentos plurívocos mais ou menos análogos (os tipos ideais weberianos descritivos de fenômenos sociais [2]), denota-se que feminismo é o “movimento favorável à igualdade dos direitos civis e políticos entre a mulher e o homem” [3].

Destarte, uma pessoa pode, concomitantemente, ser favorável ao movimento feminista e ter uma postura crítica em relação aos resultados que vêm sendo visíveis em plenário após a decisão da ADPF nº779.

É inegável que a tese de legítima defesa da honra, além de anacrônica, é repudiante. Por óbvio que a sociedade que outrora era muito mais complacente com o machismo, atualmente já repudia diversos comportamentos da cultura patriarcal.

A defesa pública e privada tem plena consciência que o uso da tese da legítima defesa da honra nos crimes de feminicídio é um desparate e contraproducente. Não é à toa que, apesar de inexistirem números oficiais, uma pesquisa sobre essa temática na jurisprudência brasileira é suficiente para atestar que o uso dessa tese atualmente é raro, e não habitual.

Por outro viés, a aceitação do feminicídio ou de outras agressões é resultado das relações desiguais entre homens e mulheres, onde comportamentos machistas, ainda que reverberem em crimes contra as mulheres, são tolerados pela comunidade e tratados com leniência por alguns agentes públicos responsáveis pela persecução penal [4]. Trata-se de uma cultura construída pela sociedade, que precisa por ela também ser desconstruída.

A cultura machista deve ser combatida desde os comportamentos que não são classificados como crimes, a exemplo das piadas sexistas, das cantadas de rua e da objetificação sexual da mulher nas novelas, seriados e publicidades.

O raio de ação do Estado, todavia, deve dirigir-se para o combate das causas que levam ao feminicídio (diga-se passagem: o Estado tem que investir em políticas públicas preventivas!) e não apenas para as consequências do crime — mediante mitigação dos direitos fundamentais do réu —, sob pena de termos a substituição do Estado Democrático de Direito por um Estado Totalitário Penal.

Jamais se assegurará os direitos das mulheres, violando os imperativos constitucionais, inclusive, e em especial, o da plenitude de defesa.

As diretrizes fixadas na ADPF nº779 violam (direta e indiretamente) o direito do acusado à autodefesa. A separação entre quaestio facti e quaestio iure é mera falácia. Consoante ensina Castanheira Neves, a distinção entre fato e direito seria “gnoseologicamente absurda”, visto que “o facto que tem a ver com o direito é um facto já de determinação jurídica” [5].

Por conseguinte, revela-se impossível para um réu explicar as circunstâncias que envolveram a prática do crime sendo-lhe vedado — de forma abstrata e genérica — qualquer comentário ao comportamento da vítima que ele interpretou, ainda que erroneamente, como ofensivo a pessoa.

Como explicar a um réu — mormente quando se sabe que a enorme clientela do direito penal é formada por pessoas sem escolaridade — que ele não pode mencionar, nem mesmo indiretamente, questões relacionadas aos seus sentimentos, ainda que não caracterize justificativa para o seu ato.

E caso ele aborde a temática durante seu interrogatório, o que poderá fazer o magistrado: anular o ato, cassar a palavra do réu e prosseguir com o processo, advertir o acusado de que sua fala é inconstitucional — o que sem dúvida vai impactar na decisão dos jurados, em se tratando de sessão do Júri — ou outra alternativa? Estas perguntas não encontram resposta a contento na ADPF nº 779.

Os juízes leigos votam de forma secreta e por livre convencimento, com base até mesmo em razões metajurídicas. Assim, qualquer entendimento de que os jurados absolveram o réu com base na tese de legítima defesa da honra sem registro em ata não passa de mera conjectura, correndo-se, pois, o risco de ser cassada uma absolvição legítima.

Noutro vértice, ainda que a tese de legítima defesa da honra não tenha sido formalmente suscitada pela defesa, se existir no Conselho de Sentença maioria de jurados com formação machista, eles poderão ter uma inclinação a absolver casos de feminicídio e inexistirão recursos para fiscalizar ações dessa natureza.

A crença equivocada pelo recrudescimento no trato dos acusados é meio inidôneo para diminuição da criminalidade. Mero populismo penal. A robustecer esse entendimento, basta lembrar que a vedação da tese da legítima defesa da honra foi decretada pelo STF, em sede de medida cautelar, no ano de 2021, e, de lá para cá, os casos de feminicídios alavancaram em nosso país.

Salto numérico Em pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) [6], constatou-se, em uma análise comparativa de cada primeiro semestre do ano, um salto no número de feminicídios: 631 em 2019, 664 em 2020, 677 em 2021, 699 em 2022 [7] e 722 em 2023 [8].

A delegação da tarefa estatal de construir uma sociedade igualitária entre homens e mulheres para o processo penal é inócua, da mesma forma que esse ramo do direito também não tem competência para garantir a segurança pública, ainda que esse seja um mito “presente em regimes autoritários que se apresentam como Estados de Direito: o de que o processo penal é instrumento de segurança pública/pacificação social” [9].

Ratificamos a legitimidade e necessidade das pretensões de termos uma sociedade igualitária. E, inclusive, consideramos salutares os esforços (constitucionais) desenvolvidos nesse sentido. Somente no ano de 2023, podemos enumerar — e aplaudir —, exemplificativamente, algumas conquistas importantes:

1) Lei nº 14.611/2023: fixou a equiparação salarial entre homens e mulheres; 2) Lei nº 14.540/2023: instituiu o Programa de Prevenção e Enfrentamento aos Crimes Sexuais; 3) Lei nº 14.541/2023: estabeleceu o funcionamento ininterrupto das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (Deam), inclusive em feriados e finais de semana; 4) Lei nº 14.737/2023: estabeleceu direito a acompanhante para mulheres em serviços de saúde; 5) Modificação no Estatuto da Advocacia (Lei nº 14.612/2023): incluiu o assédio moral, sexual e a discriminação entre as infrações ético-disciplinares no âmbito da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB); 6)Lei nº 14.786/2023, batizada como Protocolo do “Não é Não”, cujo desiderato é prevenir/combater violência sexual nos setores privados de entretenimento, onde sejam disponibilizadas bebidas alcoólicas. No âmbito do Judiciário, registramos que o CNJ tornou obrigatório o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero.

Não obstante os referidos avanços, nossa sociedade ainda precisa percorrer um longo caminho para que possamos afirmar que a igualdade entre homens e mulheres não é mera utopia. A própria composição do STF — órgão julgador da ADPF nº 779 — é bastante sintomática dessa constatação: dez homens e apenas uma mulher.

No dia em que a sociedade se desvencilhar efetivamente dos ranços machistas — o que certamente não ocorrerá mediante a violação dos direitos fundamentais do acusado no processo penal naturalmente diminuirão os números de feminicídios e outros crimes cometidos contra as mulheres, bem como prevalecerá na mentalidade de qualquer réu, e também de seu representante postulatório, que a tese da legítima defesa da honra é prejudicial à sociedade e a sua própria defesa, e ainda teremos a segurança de que não passará pela íntima convicção de qualquer jurado — representante de uma sociedade igualitária — que o machismo é justificativa idônea para se absolver um homicida.

_________________________

[1]Inteiro teor do acordão disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15361685556&ext=.pdf, acesso em 17/12/2023

[2]ADEODATO, João Maurício. Filosofia do direito: uma crítica à verdade na ética e na ciência. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 193.

[3]FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Escolar da Língua Portuguesa. 2. Ed. Curitiba: Editora Positivo, 2017, p.427

[4]Em audiência, juiz diz que não está “nem aí para Lei Maria da Penha”, Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-dez-18/audiencia-juiz-nao-nem-ai-lei-maria-penha, acesso em 26/12/2023.

[5]NEVES, A. Castanheira. Questão-de-facto–questão-de-direito – ou o problema metodológico da juridicidade (ensaio de uma reposição crítica). Coimbra: Almedina, 1967, p. 428

[6]Disponível em: https://forumseguranca.org.br/, acesso em 20/01/2024

[7]Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2022/12/07/feminicidios-batem-recorde-no-1o-semestre-de-2022-no-brasil-quando-repasse-ao-combate-a-violencia-contra-a-mulher-foi-o-mais-baixo.ghtml, acesso em 20/01/2024

[8]Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/brasil-registra-722-feminicidios-no-1o-semestre-de-2023/, acesso em 20/01/2024

[9]CASARA, Rubens R. R. Mitologia processual penal. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 194-195

Referências

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