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O linchamento dos linchadores

O artigo aborda a tragédia de Fabiane Maria de Jesus, vítima de linchamento, destacando a urgência da reflexão sobre a Justiça nas mãos do povo. Os autores discutem como a cultura de punição coletiva e o clamor por justiça imediata não se coadunam com os princípios democráticos e os direitos humanos. Além disso, ressaltam a necessidade de responsabilizar os linchadores, enfatizando que o respeito aos direitos, mesmo de condenados, é fundamental para a manutenção da ordem jurídica e da dignidade humana.

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O caso de Fabiane Maria de Jesus causou indignação em todo Brasil, chamando atenção para uma questão que merece uma maior reflexão por parte da sociedade: o anseio por se fazer Justiça com as próprias mãos. Fabiane era uma dona de casa comum, mãe de duas filhas, casada há oito anos, queria ter aulas de dança e pretendia vender sandálias para ajudar nas despesas da família. No dia 3 de maio, quando voltava pra casa, foi cercada e agredida impiedosamente até a morte.

Pelos vídeos percebe-se que inúmeras pessoas participaram das agressões. Dezenas de homens, mulheres, jovens. Uma brutalidade derivada de um boato iniciado por um website, rapidamente disseminado pelas redes sociais. A divulgação de um retrato falado levou os populares à identificarem como suspeita do rapto de menores para uso em rituais de magia negra.

Confundida com uma sequestradora, foi xingada, insultada, amarrada, humilhada, pisada, chutada, vilipendiada, espancada com paus, pedras, barras, rodas, e o que mais tinham à mão. Fabiane faleceu dois dias depois, no hospital.

O caso ganhou maior notoriedade por se tratar de uma inocente. Mas a questão de se tratar de uma inocente não deveria ser o fator que causa indignação, mas sim o fato de que os justiçamentos continuam a ocorrer.

“Punição coletiva” e “legítima defesa da sociedade” são incompatíveis com quaisquer concepções que a expressão “Justiça” possa assumir. Não existe “Justiça” no termo “Justiça com as próprias mãos”.

Nos últimos meses, agressões a supostos criminosos têm sido divulgadas frequentemente pela mídia. “Bandidos” amarrados, “assaltantes” surrados, “criminosos sexuais” espancados. Todos escritos entre aspas, justamente porque nenhum desses “criminosos” foram condenados efetivamente pelo crime que os levou à “punição”.

No Brasil e em todos os países verdadeiramente democráticos do mundo, para que alguém seja considerado culpado, é indispensável que seja processado e condenado. Não há como ser declarado “criminoso” sem condenação definitiva.

É uma concepção derivada de um daqueles princípios sempre criticados pelo mesmo grupo de justiceiros, os quais bradam aos ventos que a Justiça é lenta e que lugar de bandido é na cadeia ou morto. Este grupo de justiceiros, formado inclusive por políticos, jornalistas e até por juristas de renome, surfam na onda do sentimento de insegurança em que vivemos, amealhando votos, popularidade e audiência.

O que aconteceu com a Fabiane era somente uma questão de tempo. Cada vez que um defensor do “bandido bom é bandido morto” se manifesta, cada vez que se clama por uma atuação enérgica por parte da polícia, cada vez que se aplaude a ação de populares que prende e espanca suspeitos, legitima-se a punição coletiva calcada no ódio e na vingança.

Estes grupos não percebem que os princípios que estão previstos na Constituição não são meros enfeites. Os princípios, tais como os que garantem que alguém somente possa ser condenado após processo regular, existem para nos proteger da “boa” vontade do Estado, de acusações infundadas, de boatos.

Os justiceiros criticam qualquer discurso a favor dos Direitos Humanos e das garantias fundamentais quando direcionadas a algum suspeito ou acusado, mas, sem sombra de dúvida, clamarão por estes mesmos direitos quando algum amigo, familiar ou si próprio estiver naquela condição.

Definitivamente é imperativo que se entenda que os direitos não são os direitos da Fabiane, ou do João, ou do bandido, ou do acusado, mas sim são meus, são seus, são deles, isto é, são de todos nós quando e se formos acusados.

Agora começou o linchamento (moral) dos linchadores. E o linchamento começa pela imprensa que vai divulgar incessantemente a imagem de cada um deles. Dezenas de pessoas participaram de alguma forma no crime (mesmo que instigando os outros). Contudo, é evidente que poucos serão identificados e que uma quantidade ainda menor de pessoas serão processadas e condenadas.

No final do século XIX, Gustave Le Bon publicou seus estudos sobre a psicologia da multidão, indicando que o comportamento apresentado pelo homem isolado é distinto daquele de quando está imerso na massa. Os homens, quando inseridos na multidão, perdem seus freios inibitórios e praticam até mesmo atos bárbaros que, se estivessem isolados, não os fariam.

São pessoas comuns sendo presas. Repito: comuns. Sempre que um crime repugnante ocorre, a mídia e a sociedade trata de retirar do acusado a qualidade de “ser humano” e passa a taxá-lo de “monstro”, pois assim é mais fácil de odiar, de punir, de linchar.

Não é porque agiram inseridas no contexto da multidão, ou porque foram inflamados pela disseminada indignação pela (in)segurança pública, ou porque todos os dias assistem na TV ou na internet que bandido bom é bandido morto, que não responderão por seus atos. Devem responder sim. Mas devem ter seus direitos respeitados, apesar de terem cometido um ato absolutamente bárbaro e abominável.

Ao respeitar os direitos dos linchadores, estar-se-á respeitando os mesmos direitos que foram negados à Fabiane Maria de Jesus. Ao garantir aos linchadores todos os direitos previstos em nosso ordenamento jurídico, estar-se-á dando um exemplo positivo e incontestável de que é o Estado (frise-se: exclusivamente o Estado) que possui o poder de processar, condenar e executar a pena aplicada.

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* Rodrigo Faucz Pereira e Silva é advogado criminalista e professor de Tribunal do Júri da ABDCONST – Academia Brasileira de Direito Constitucional.

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