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Debate sobre criminalizar o feminicídio expõe gravidade do problema

O artigo aborda a discussão sobre a criminalização do feminicídio no Brasil, destacando a aprovação do Projeto de Lei 8.305/14, que qualifica o feminicídio como homicídio hediondo. Os autores analisam as razões para essa criminalização e a complexidade do debate, considerando a necessidade de medidas preventivas e a dificuldade do Judiciário em lidar com estas questões, além de explorar as discordâncias entre especialistas sobre a efetividade da legislação existente e a urgência de reconhecer e combater a violência de gênero fundamental por trás do feminicídio.

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O Plenário da Câmara dos Deputados aprovou, em 3 de março, o Projeto de Lei 8.305/14, do Senado, que inclui o feminicídio como homicídio qualificado, classificando-o ainda como hediondo.

O feminicídio constitui a manifestação mais extremada da violência machista fruto das relações desiguais de poder entre os gêneros. Ao longo da História, nos mais distintos contextos socioculturais, mulheres e meninas são assassinadas pelo tão-só fato de serem mulheres. O fenômeno forma parte de um contínuo de violência de gênero expressada em estupros, torturas, mutilações genitais, infanticídios, violência sexual nos conflitos armados, exploração e escravidão sexual, incesto e abuso sexual dentro e fora da família.

Vários países, principalmente na América Latina, criminalizaram o feminicídio, trazendo, em sua descrição típica, requisitos específicos e que se diferenciam de um local para outro. Têm-se aqui medidas penais gênero-específicas.

Essa tendência para a criminalização também chegou ao Brasil. O projeto de lei que criminaliza o feminicídio considera que há razões de gênero quando o crime envolve: a) violência doméstica e familiar; b) menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

A criminalização do feminicídio tem provocado um intenso debate entre os estudiosos das questões de gênero (sociólogos, psicólogos, juristas etc.), alguns justificando a necessidade de criminalização da conduta e outros entendendo que ela já se encontra contemplada nos tipos penais existentes na legislação brasileira (homicídio qualificado, sequestro, vilipêndio de cadáver etc.).

Independentemente da posição por se criminalizar especificamente ou não o feminicídio, há consenso em relação à gravidade do problema e à necessidade de explicitá-lo, de torná-lo visível, para que seja conhecido e compreendido e, a partir daí, seja intensificada a sua prevenção. Isso, contudo, pede sensibilidade e mobilização social. A tarefa é por demais complexa para o Judiciário, que terá uma margem muito limitada de ação, já que a sua atuação é condicionada à existência do fato, ou seja, do crime. Não se pode esquecer que quando o Judiciário é chamado a atuar o bem jurídico já foi lesado. Às medidas preventivas, portanto, é que devemos dedicar a maior parte de nossa atenção.

Por longo tempo, as mulheres foram (e hoje ainda muitas o são) educadas a partir de valores de submissão e invisibilidade: no espaço privado, somente lhes era dado desenvolver os papeis de criadoras e cuidadoras; no espaço público, sobre elas se lançavam olhos, vozes e gestos de reprimenda, se fugissem do seu “atributo da natureza”. Aliás, mesmo um dos principais problemas de que eram vítimas, a violência, somente passou a ser estudado com mais afinco partir da década de 90 do século passado, quando então é visto como assunto de diretos humanos e de saúde pública.

No contexto da violência contra a mulher é que se insere a análise acerca da conveniência da criminalização do feminicídio. Tal discussão é fundamental no campo político, social e jurídico. Ainda que não haja acordo sobre a criminalização do feminicídio, existe um consenso mínimo acerca de algumas das suas características: a morte das mulheres pelo fato de ser mulher é produto das relações de desigualdade, de exclusão, de poder e de submissão que se manifestam generalizadamente em contextos de violência sexista contra as mulheres. Trata-se de um fenômeno que abarca todas as esferas da vida de mulheres, com o fim de preservar o domínio masculino nas sociedades patriarcais.

Não obstante o reconhecimento do problema, bem como da necessidade de se criarem instrumentos para seu controle, estudiosos divergem acerca da criminalização específica, sendo que um dos principais argumentos daqueles que se posicionam de forma contrária é exatamente a proteção já realizada por meio de tipos penais neutros, citando o homicídio qualificado, o sequestro, as lesões, o estupro, a vilipendiação de cadáver etc.

Os simpatizantes da criminalização gênero-específica, por sua vez, alegam que não são suficientes os tipos penais neutros, pois o fenômeno da violência contra a mulher permanece oculto onde subsistem pautas culturais patriarcais, machistas ou religiosas muito enraizadas e que favorecem a impunidade, deixando as vitimas em situação de desproteção. Ou seja, corre-se o risco de sentença ser alcançada por tais concepções de mundo, o que reforçaria a invisibilidade do fenômeno e impediria que se fizesse justiça ao caso concreto, já que a maior carga de desvalor do fato (feminicídio) não estaria sendo levada em consideração. E não se propõe punir mais, mas em fazê-lo de acordo com a gravidade do fato.

Além da discussão acima, outros argumentos são trazidos pelos que defendem a criminalização do feminicídio. Vejamos:

Instrumento de denúncia e visualização dos assassinatos de mulheres por razão de gênero;

Utilidade criminológica: dados e números concretos, fazendo aflorar a realidade e permitindo uma melhor prevenção;

Poder simbólico do direito penal para conscientizar a sociedade sobre a gravidade singular desses crimes;

Novas figuras penais podem contribuir a que o Estado responda mais adequadamente ante esses crimes;

Compromete as autoridades públicas na prevenção e sanção dos homicídios de mulheres;

Não se trata de dar um tratamento vantajoso para as mulheres à custa dos homens, senão de se conceder uma tutela reforçada a um grupo da população cuja vida, integridade física e moral, dignidade, bens e liberdade encontram-se expostas a uma ameaça específica e especialmente intensa.

Princípio da proibição da proteção deficiente;

O Comitê CEDAW vem apoiando as leis de tipificação do feminicídio desde 2006 (Comitê CEDAW, 2006, 2012);

Existe extremo interesse constitucional e do legislador em erradicar as práticas de violência contra a mulher

Em razão do princípio da igualdade e da obrigação do Estado de garantir os direitos humanos, é necessário tratar juridicamente de maneira distinta situações que afetam de maneira diferente a cidadania.

O legislativo deve determinar a pertinência, oportunidade e conveniência, em termos de política criminal, da tipificação das condutas, sendo que existem, tanto no Direito Internacional dos Direitos Humanos, como no Direito Constitucional de diversos países, elementos suficientes para justificar a adoção de normas penais gênero-específicas em matéria de violência contra as mulheres.

Os argumentos contrários, por outro lado, são eloquentes, mas, em nossa opinião, insuficientes para afastar a necessária, adequada e urgente criminalização do feminicídio. Apesar disso, não se os deve perdê-los de vista, já que servem de alerta para que a preocupação que carregam não venha a se concretizar. Vejam-se os principais argumentos:

Discriminação em prejuízo dos homens, dando maior valor a vida das mulheres;

Violação do principio básico de direito penal liberal, caracterizado pela igualdade;

Ambivalência de um conceito cuja força reivindicativa parece diluir-se convertendo-se de um processo de transformação de categoria teórico-política em figura de direito positivo;

O poder político se vale dessa categoria, incluindo-a em sua legislação e, com isso, isenta-se de investir recursos humanos e econômicos suficientes para efetivamente conter a violência.

Em muitos países, a tipificação tem sido tão confusa que dificilmente se a pode aplicar

Reforça a imagem estereotipada das mulheres como vítimas e, em consequência, reduz ainda mais no imaginário social o empoderamento das mulheres;

A ênfase deve ser nas políticas preventivas e não nas penais;

O recurso ao direito penal transformou-se em um instrumento ao alcance de qualquer grupo político e possui baixo custo, comparado com a implementação de políticas públicas, e alta popularidade, especialmente em situações de alta violência e criminalidade;

O direito penal não é uma via adequada para fazer frente a esse fenômeno, sendo que a tipificação do feminicídio tem um impacto mais midiático que real, posto que a proteção das mulheres não se incrementa por esta via, criticando-se a ênfase unicamente penal da normativa e a falta de medidas que fortaleçam a prevenção, tratamento e proteção das mulheres.

De todos os rechaços feitos à criminalização do feminicídio, é importante detalhar o último (utilização da função simbólica do direito penal), já que, de fato, é bastante comum que o legislador lance mão do recurso ao direito penal, quando, sabe-se, seu potencial preventivo (caráter dissuasório) é muito acanhado (em existindo).

É aqui que entra em cena a discussão acerca da função do direito penal. Apesar das divergências, grande parte da doutrina penal é acorde em estabelecer, dentre outras, a função de proteção de bens jurídicos. Nessa perspectiva, ainda que a resposta penal seja insuficiente como resposta do Estado frente à violência contra as mulheres, é uma resposta imperativa, dada a gravidade do atentado a um bem jurídico fundamental.

Referências bibliográficas BIANCHINI, Alice. Lei Maria da Penha: lei 11.340/2006: aspectos assistenciais, protetivos e criminais da violência de gênero.

BODELÓN, Encarna. Violencia de género y as respuestas de los sistemas penales. Buenos Aires: Didot, 2013.

MARIÑO, Fernando M. (Org). Feminicidio: el fin de la impunidad. Valencia: Tirant lo Blanch, 2013.

TOLEDO VÁSQUEZ, Patsili. Buenos Aires: Didot, 2014.

Referências

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