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Newton: Por que devemos problematizar a audiência de custódia

O artigo aborda a importância de problematizar a audiência de custódia, mesmo com a proposta de restrição de sua aplicação por alguns tribunais. Os autores defendem que essa prática é essencial para garantir a isonomia, aferir a legalidade das prisões e promover o acolhimento dos custodiados, além de ser um direito subjetivo ameaçado por visões restritivas. A discussão se torna ainda mais relevante diante das implicações diretas na democracia e nos direitos humanos.

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Ainda que não tenham, na maioria dos tribunais, sido retomadas as audiências de custódia, verifica-se a real necessidade em se discutir o tema. E não é pela repristinação da redação antiga do artigo 310, Código de Processo Penal, que se agrava com a falta de observância da Recomendação nº 62, Conselho Nacional de Justiça. O objetivo deste texto é contrapor a um raciocínio jurídico que culmina com uma restrição do cabimento da audiência de custódia, mais especificamente o defendido por Galtiênio da Cruz Paulino em artigo — “Audiência de custódia e os limites de incidência” [1].

Diante do raciocínio apresentado no texto em análise, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro — autora da Reclamação nº 29.303/RJ — e todos os amigos da corte habilitados — Defensoria Pública da União, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, Associação dos Advogados Criminalistas do Brasil, Instituto de Ciências Penais, Instituto de Defesa do Direito de Defesa e Instituto Anjos da Liberdade — estariam equivocados, devendo, portanto, o Supremo Tribunal Federal julgar improcedente a demanda.

Existem sérios problemas na defesa da argumentação restritiva. Alguns se mostram de ordem jurídica e outros possivelmente do desconhecimento da realidade de atuação das agências que compõem o sistema de Justiça criminal.

Antes da apresentação do principal ponto de discordância, três aspectos devem ser trazidos ao debate.

O primeiro se relaciona com a violação ao princípio da isonomia causado pela adoção do cabimento restritivo da audiência de custódia. A discriminação entre os que seriam e os que não seriam apresentados, tal como se dá no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e originou a Reclamação nº 29.303, não possuiria uma razão legítima, o que a torna inconstitucional. Aliás, essa conclusão veio a ser abertamente defendida por Lenio Luiz Streck:

“Não se trata de um embate político, de defesa de posições ideológicas ou de opiniões jurídicas conflitantes; trata-se de viver em uma democracia e tratar todos os indivíduos com igual consideração e respeito. Mesmo que sejam réus. Ou apenas indiciados. Ou presos indevidamente” [2].

O segundo aspecto se relaciona com um cânone interpretativo válido para o Direito Internacional dos Direitos Humanos, a saber: a regra pro homine; logo, não deveria se mostrar possível a adoção de uma interpretação da norma convencional que viesse a limitar a fruição de um direito.

O terceiro aspecto, por sua vez, é singelo, qual seja, no plano legal, ainda que de forma limitada, já existe a possibilidade de realização da audiência de custódia em decorrência de prisão diversa do flagrante, vide o disposto no artigo 287, Código de Processo Penal [3].

Além desses três aspectos, o que deve se ter em mente é que a dicotomia teleológica apresentada por Galtênio da Cruz Paulino simplesmente não existe. É desse ponto que surge toda a divergência. Ao contrário do que foi exposto pelo citado articulista, as funções, que são quatro, nas audiências de custódia não são excludentes entre si.

A primeira delas reside na prevenção/repressão à tortura e que se verifica em todas as modalidades prisionais. Não se pode relegar a existência da truculência das forças policiais, até mesmo porque são formadas pelo ethos do guerreiro. Trata-se de uma faceta do persistente autoritarismo brasileiro. Além disso, essa função se encontra intimamente relacionada com o pensamento de Norberto Bobbio quanto ao caráter absoluto do direito de não ser torturado [4].

A aferição da legalidade da prisão não pode se restringir à prisão em flagrante. Mesmo no caso de cumprimento de mandado de prisão definitiva, é possível verificar a aplicabilidade dessa função. A incidência da prescrição, ou de qualquer outra causa de extinção de punibilidade que tenha ocorrido e não implicado em recolhimento do mandado, demonstra a relevância da audiência de custódia nesse caso. Seria irracional — como é! — fazer com que uma pessoa ingressasse no sistema prisional e aguardasse o trâmite burocrático para, enfim, poder ser solta, quando sequer deveria ter sido presa. Uma prisão preventiva decretada juntamente com a suspensão do processo e somente efetivada após longos anos depois, pois o preso sequer sabia da existência do processo e reside em local inacessível, reforça a necessidade de aferição da legalidade em todos os casos de aprisionamento.

A análise da necessidade do aprisionamento ou a sua substituição por uma medida cautelar pode se verificar diante da prisão em flagrante e das demais prisões processuais. E ainda que venha a ser mantida a prisão processual, o estado de saúde ou mesmo as situações previstas nos artigos 318 e 318-A, Código Processo Penal, permitindo, assim, a imposição da prisão domiciliar. Ainda que se mostre impossibilitado o exercício dessa função no âmbito da prisão definitiva, a audiência de custódia poderia, nesta hipótese, servir como um importante elemento de efetivação da Súmula Vinculante nº 56, o que impediria desvios na execução e o ajuizamento de diversas reclamações constitucionais no Supremo Tribunal Federal.

A quarta função da audiência de custódia, quiçá defendida de maneira isolada, é denominada como o acolhimento do custodiado. Com base no pensamento de Leonardo Boff, é necessário reconhecer o caráter imprescindível do cuidado:

“Sem o cuidado, ele deixa de ser humano. Se não receber cuidado, desde o nascimento até a morte, o ser humano desestrutura-se, definha, perde sentido e morre. Se, ao largo da vida, não fizer com cuidado tudo o que empreender, acabará por prejudicar a si mesmo e por destruir o que estiver à sua volta. Por isso o cuidado deve ser entendido na linha da essência humana” [5].

Somente com a apresentação do custodiado à autoridade judicial precedida da entrevista prévia com seu defensor é que será possível acolher, no sentido de esclarecer o futuro daquela pessoa. Defender esse acolhimento é reconhecer o preso como um cidadão e ainda romper com um exercício misterioso do poder, o que não se coaduna com a dinâmica democrática [6]. A possibilidade de inserção voluntária do custodiado em programas de assistência social tem previsão na Resolução nº 213, Conselho Nacional de Justiça, o que somente vem a reforçar a existência dessa quarta função.

Feitas essas considerações, afirma-se que, apesar de positivada no Código de Processo Penal, muito há de se feito pela doutrina e na prática forense por juristas comprometidos com a efetivação de normas convencionais que não restringem a aplicação da audiência de custódia. A audiência de custódia constitui um direito subjetivo e, sem que seja adotado qualquer tom alarmista, encontra-se ameaça quando defesas restritivas do seu cabimento são realizadas. Daí, porque, ainda, mostra-se devida a sua problematização do tema, sendo certo que o Supremo Tribunal Federal poderá resolver esse cenário com o prosseguimento do julgamento da Reclamação Constitucional nº 29.303 e o julgamento favorável. A conferir.

[1] https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/audiencia-de-custodia-e-os-limites-de-incidencia-06082020

[2] https://www.conjur.com.br/2019-mar-11/streck-audiencia-custodia-todos-presos-direito-constitucional

[3] “Se a infração for inafiançável, a falta de exibição do mandado não obstará a prisão, e o preso, em tal caso, será imediatamente apresentado ao juiz que tiver expedido o mandado, para a realização de audiência de custódia”.

[4] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

[5] BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. 20. ed. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 39.

[6] BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

Referências

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