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Não há lugar para discricionaridade do Ministério Público no processo penal (ou: novamente o problema dos “acordos” com a autoridade policial)

O artigo aborda a legitimidade da autoridade policial em firmar acordos de colaboração premiada sem a anuência do Ministério Público, destacando o impacto das decisões do STF sobre a matéria. Os autores, Guilherme Brenner Lucchesi e Luísa Walter da Rosa, argumentam que tal discricionariedade é invulgar, sendo necessária a participação do MP devido aos princípios que regem a ação penal e à segurança jurídica. A discussão se intensifica com as alterações trazidas pelo Pacote Anticrime e aponta que a função do MP deve ser a promoção, e não a obstrução da persecução penal.

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As notícias são rumorosas. Sabe-se apenas que tramita perante o STF feito em meio físico e sigiloso, contendo – noticia-se – suposto acordo de colaboração premiada firmado entre a Polícia Federal e o ex-ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro, suposta homologação do acordo por Ministro do Supremo Tribunal e suposta manifestação da Procuradoria-Geral da República contrária ao acordo firmado, por entender usurpada competência exclusiva do Ministério Público. É o que se pode extrair de recente postagem em rede social feita no perfil do próprio PGR Augusto Aras. Não se podendo precisar, ao certo, o que se passa em feito sigiloso por Lei (art. 3.º-B, lei 12.850/13), a questão amplamente divulgada e discutida nos meios de comunicação levanta relevantes preocupações de ordem prática e profissional, que merecem reflexão acadêmica, ainda que discutidos os fatos em tese.

É possível que a autoridade policial firme, sem a participação do Ministério Público, acordo de colaboração premiada com acusado/investigado em persecução penal? É possível que o Ministério Público se oponha a tal acordo? Se sim, em que termos e até que limite? Por fim, quais são os princípios que regem a atuação ministerial na já não tão nova realidade da justiça penal negocial?

Sobre a legitimidade para se firmar o acordo, o STF já visitou o tema em duas oportunidades1. Primeiro em 2018, em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade (STF, Pleno, ADI 5.508/DF, Rel. Ministro Marco Aurélio, j. 20 jun. 2018), foram reconhecidos constitucionais os §§ 2º e 6º do art. 4º da lei 12.850/213, que permitem à autoridade policial conduzir e firmar acordos de colaboração premiada na fase do inquérito policial. À época, ainda que de maneira incidental, houve um amplo debate dos ministros a respeito da exigência legal contida no §2º ,de que o acordo celebrado pela polícia deveria contar com a manifestação do Ministério Público. O principal ponto indagado foi se essa manifestação seria ou não vinculante, com posicionamentos bastante divergentes. A ausência de uniformidade nos entendimentos resultou em a questão não ter sido efetivamente enfrentada pela Corte.

Em 2021, instada a se manifestar pela PGR em caso concreto em que o acordo teria sido firmado entre colaborador e Polícia Federal (STF, Pleno, Pet 8.482 AgR, Rel. Ministro Edson Fachin, j. 31 mai. 2021, DJe 21 set. 2021), após a recusa inicial do MPF e com manifestação contrária do órgão acusatório à homologação do acordo, o STF, por maioria, tornou sem efeito a colaboração, pois diante da recusa motivada do MPF, o acordo seria desprovido de eficácia. Ainda que a decisão tenha sido proferida em caso específico, sinalizou uma possibilidade de evolução e alteração do entendimento anterior.

Dois anos depois o tema voltou a ser enfrentado com a homologação pelo Min. Alexandre de Moraes de acordo de colaboração premiada firmado pela Polícia Federal, mesmo com a discordância do MPF. Não se sabem os fundamentos utilizados pelo Relator, tampouco se a defesa chegou a procurar o Parquet antes de negociar com a PF – i.e. se houve uma recusa inicial à via negocial ou se é caso de mera manifestação contrária à homologação do acordo por o Ministério Público dele discordar. Tampouco se conhecem os fundamentos dessa manifestação em desacordo.

Fato é que cumpre ao STF revisitar o tema, em Plenário, para definir se a manifestação do Ministério Público é ou não vinculante, e em quais termos se consideraria fundamentada a recusa do MP em negociar um acordo ou discordar da sua pactuação direta com a autoridade policial. O impacto dessa ausência de enfrentamento direto e completo da questão se justifica, ainda mais ao se considerar que a decisão da ADI 5.508 foi proferida antes da entrada em vigor do Pacote Anticrime (lei 13.964/19). Isso porque, além de alterar o CPP, com destaque ao novo art. 3º-A, impondo caráter acusatório do processo penal brasileiro, a lei também alterou substancialmente os contornos da colaboração premiada, fixando uma série de limites ao instituto.

Esse novo contexto enseja nova interpretação do dispositivo legal como um todo, à luz da Constituição. Em um sistema (pretensamente) acusatório, se o titular da ação penal discorda da celebração de acordo de colaboração premiada com outra autoridade, inviável a sua homologação. A lei prevê sim a possibilidade de a autoridade policial participar das tratativas negociais na fase de inquérito, bem como representar ao juízo pela concessão de benefícios, porém com a manifestação do Ministério Público. E essa manifestação precisa ser concordante2, pois é o MP que pode efetivamente ofertar todos os benefícios previstos em lei, além de ser o titular da ação penal pública incondicionada. Imaginar um cenário concreto em que a polícia requer o perdão judicial enquanto a acusação pleiteia a condenação vai contra todos os ditames de um processo penal acusatório.

Da mesma maneira é custoso imaginar que um pretenso colaborador consiga firmar um acordo com a autoridade policial, apresentando os mesmos fatos e provas previamente sinalizados ao Ministério Público, que se recusou fundamentadamente a ofertar a colaboração. Na persecução penal, o Estado é único e parece contraproducente permitir que um colaborador “escolha” com qual autoridade negociar, pois no fim é o órgão acusatório que precisará opinar sobre a suficiência de elementos para levar uma ação penal em frente ou promover o arquivamento de uma investigação.

Assentadas as premissas fundamentais deste artigo – a saber: não é possível que a autoridade policial firme um acordo de colaboração premiada com a discordância do Ministério Público, sob pena de esvaziar o instituto, por gerar insegurança jurídica, tanto para os colaboradores quanto para os delatados – cumpre ainda responder pergunta fundamental: pode o Ministério Público simplesmente recusar uma proposta de colaboração premiada a quem esteja disposto a identificar os demais integrantes de sua organização criminosa e seus crimes, revelar a estrutura hierárquica e divisão da ORCRIM, prevenir futuros crimes da organização, recuperar o produto dos crimes cometidos e/ou localizar eventuais vítimas com sua integridade física preservada, possuindo elementos concretos para auxiliar o trabalho das autoridades (art. 4.º, lei 12.850/13)

A resposta é um sonoro não, à luz dos princípios que regem a atuação do Ministério Público enquanto órgão oficial do Estado, funcionalmente independente e autônomo e titular exclusivo da ação penal, nos termos do art. 127 da Constituição. Disso se extraem os postulados da oficialidade e da legalidade enquanto princípios reitores da promoção processual.3 Isto porque, ainda que não se possa falar em direito líquido e certo a compelir o Ministério Público à celebração de acordo de colaboração premiada (STF, 2.ª T., MS 35.693 AgR, Rel. Min. Edson Fachin, j. 28 mai. 2018), não há discricionariedade ou liberalidade na atuação do membro do Ministério Público, que atua como agente estatal, não apenas na formação de opinio delicti, como também na celebração de acordo com o acusado. Nesta atuação negocial também incidem os postulados da oficialidade e da legalidade, que devem vincular a atuação ministerial. Não há qualquer juízo de oportunidade ou conveniência que possa vir a ser formulado.

O Ministério Público pode sim recusar uma proposta de colaboração premiada. Mas, mais uma vez, retomando as alterações trazidas pela lei 13.964/19, a proposta pode ser sumariamente indeferida, desde que com a devida justificativa (§1º do art. 3º-B da lei 12.850/13). E outro ponto que precisa ainda ser debatido e definido pelo STF é: quais seriam os critérios para se estabelecer que essa recusa foi devidamente justificada, fundamentada, sob pena de criação de um novo espaço de discricionariedade do MP? Uma sugestão é seguir pensando as transformações do Pacote Anticrime no sistema processual como um todo. No CPP foram inseridos parâmetros de suficiência de fundamentação no §2º do art. 315, que poderiam ser utilizados nesse caso da colaboração como analogia4.

É preciso relembrar que a colaboração premiada jamais será celebrada em hipóteses de arquivamento da investigação – seja por atipicidade ou ausência de justa causa. É pressuposto para a negociação e celebração de um acordo que estejam presentes as condições da ação e pressupostos processuais que autorizem a formação de opinio delicti, sendo certo, minimamente, que se está diante de materialidade e autoria delitivas. Há, ademais, requisitos para a entabulação de acordo, a fim de que o imputado possa efetiva e voluntariamente contribuir com a investigação e/ou o processo, criando condições para que as autoridades alcancem ao menos um dos objetivos no desbaratamento das atividades criminosas organizadas, nos termos dispostos no art. 4.º da lei 12.850/13. Todo acusado que preencher estes pressupostos e requisitos legais faz jus à negociação de uma proposta de acordo, visando alcançar algum benefício legal que se considere proporcional à contribuição do acusado à apuração.

E aqui reside o ponto fulcral: caso entenda a autoridade policial estar diante de um investigado que tenha cometido crimes enquanto integrante de organização criminosa (é o que minimamente se espera diante, por exemplo, de situação de prisão preventiva do investigado) e que tenha algo de efetivo a contribuir para a investigação (não se presume que a colaboração tenha sido oferecida por capricho ou simples benesse do investigador), que argumentos legítimos podem ser levantados pelo Ministério Público contra a colaboração? No precedente citado acima (STF, Pleno, Pet 8.482 AgR, Rel. Ministro Edson Fachin, j. 31 mai. 2021, DJe 21 set. 2021), a recusa ministerial foi legítima. Não se tratou de exercício de discricionariedade. Também, considerando não ser possível que a autoridade policial realize qualquer tratativa quanto à pena, é possível que haja oposição legítima do Ministério Público a eventual sanção premial indevidamente acordada.

De outro lado, não se pode simplesmente recusar alguma contribuição do investigado à investigação por discordância conceitual. Acaso o investigado tenha procurado a autoridade policial (ou sido por ela procurado) para inaugurar tratativas a respeito de eventual interesse naquilo que se pode oferecer à investigação, o que se exige do Ministério Público é que este assuma seu papel constitucional enquanto titular exclusivo da ação penal e passe a conduzir as tratativas com a defesa do acusado, oferecendo em contrapartida os benefícios legais que entender cabíveis e proporcionais à colaboração. O Ministério Público deve atuar em prol do desbaratamento de organizações criminosas, não da obstrução da atividade policial.

Em tempos de polarização política e ideológica, as garantias do processo penal enfrentam grave crise de reconhecimento e de função. Entendimentos jurídicos não podem ser formados (ou manipulados) ao gosto do julgador ou conforme a “capa dos autos”. Havendo entendimento firmado pelo STF quanto à (in)eficácia de acordo firmado exclusivamente com a Polícia, sem anuência do Ministério Público, deve a Corte manter sua jurisprudência sobre a matéria una, íntegra e coerente – senão em respeito à legalidade e à Constituição, ao menos em nome da segurança jurídica e da própria legitimidade de suas decisões. Que os precedentes sirvam de estímulo à atuação do Ministério Público, não como empecilho ao avanço da persecução penal.

O conteúdo desta coluna é produzido pelos membros do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da Universidade Federal do Paraná – NUPPE UFPR e pesquisadores convidados de grupos de pesquisa parceiros.

__________

1 Uma comparação direta entre os dois julgados pode ser conferida em: ROSA, Luísa Walter da. A necessidade de anuência do Ministério Público para a homologação de acordo de colaboração premiada firmado pela autoridade policial. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, vol. 9, n. 1, p. 457-489, jan./abr. 2023. Disponível aqui.

2 ROSA, Luísa Walter da. A necessidade de anuência do Ministério Público para a homologação de acordo de colaboração premiada firmado pela autoridade policial. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, vol. 9, n. 1, p. 457-489, jan./abr. 2023. Disponível aqui.

3 FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito Processual Penal. Coimbra: Coimbra, 1974. reimp. 2004. p. 115. Defende-se que a compreensão da atuação do Ministério Público é mais bem compreendida à luz da legalidade que de a decorrente obrigatoriedade da ação penal, como tradicionalmente defende a dogmática processual penal (LUCCHESI, Guilherme Brenner; ZONTA, Ivan Navarro. Colaboração premiada e legalidade na atuação ministerial. In: DAGUER, Beatriz; SOARES, Rafael Junior; ROSA, Luísa Walter da. Justiça penal negociada: teoria e prática. Florianópolis: EMais, 2022. p. 61-82).

4 CALLEGARI, André Luís; ROSA, Luísa Walter da. Desdobramentos da recusa à proposta de acordo de colaboração premiada. Revista Consultor Jurídico, agosto de 2020.

Referências

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