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Sistema repressivo impede solução sobre aborto

O artigo aborda a complexidade jurídica e social do aborto de fetos anencéfalos, discutindo as polarizações entre defensores e opositores da prática à luz dos direitos fundamentais. O autor analisa como o sistema repressivo penal não promove soluções efetivas e, ao contrário, perpetua a violação dos direitos das mulheres, revelando a necessidade de superar abordagens punitivas a fim de encontrar alternativas que garantam a dignidade e o respeito à autonomia feminina. Além disso, destaca que a criminalização do aborto não previne o procedimento, mas intensifica a opressão e a vulnerabilidade das mulheres na sociedade.

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O aborto de feto anencéfalo é um daqueles temas permeados de polêmicas e que, por razões óbvias, dificilmente pode ser apreciado apenas sob o ponto de vista estritamente jurídico.

Não obstante a complexidade do tema, atualmente a discussão tem sido polarizada basicamente entre aqueles que defendem o aborto em virtude da impossibilidade de vida e sobrevida do feto, e por grupos que se opõem ao aborto em qualquer situação, uma vez que os direitos do feto, em especial a vida, devem ser levados em consideração, ainda que se trate de “natimorto cerebral”, conforme se pronunciou o Conselho Federal de Medicina por meio da resolução 1752, publicada em 2004.

Divergências à parte, parece inquestionável que ambas as posições levam em consideração a vida, bem jurídico tutelado por nosso ordenamento em todos os níveis. Critério-fonte de todos os direitos, acreditamos que a vida deve ser vista não apenas como um direito, abstrato, senão como a referência de todos os campos: ético, político, econômico, social, jurídico, entre outros[1].

Embora o Código Penal proteja a vida intra-uterina e tipifique as figuras do aborto provocado (artigo 124), aborto sofrido (artigo 125) e aborto consentido (artigo 126), permitindo tão somente o aborto necessário (artigo 128, inciso I) e o aborto humanitário (artigo 128, inciso II), existem argumentos consistentes em relação à tese que se posiciona favoravelmente ao chamado “aborto eugênico ou eugenésico”, mesmo diante do provável nascimento da criança com deformidade ou enfermidade incurável.

Apesar de inexistir previsão legal expressa para que as gestantes interrompam a gestação nesses casos, as decisões judiciais que tem concedido autorização para a realização da prática abortiva na hipótese de comprovada anencefalia fetal fundamentam-se, principalmente, no estado psicológico da gestante, tendo em vista a nocividade de forçá-la a conceber um feto que, na melhor das hipóteses, sobreviverá por no máximo algumas horas.

Em contrapartida, os argumentos mais utilizados pelos magistrados para impedir o aborto referem-se à ausência de previsão legal para tal procedimento e à necessidade de primazia do direito à vida do feto.

No âmbito do Direito há ainda outros dois argumentos consideráveis para se permitir a interrupção da gravidez no caso em apreço. O primeiro diz respeito ao término da vida sob a perspectiva jurídica, uma vez que, mediante interpretação analógica, tem se afirmado que o artigo 3º da Lei 9.434/97 indica o encerramento da vida com a morte encefálica, ou seja, com a perda permanente de todas as funções do tronco cerebral.

Assim, se o término da vida se dá com a morte encefálica, na hipótese de anencefalia, quando o feto não possui os hemisférios do cérebro em razão de uma má formação congênita, seria inconcebível sustentar a existência da vida como bem jurídico a ser tutelado.

Logo, perante a falta de lesão efetiva a um bem jurídico-penal, não seria possível, sequer, vislumbrar o aborto de feto anencéfalo como infração penal por força do princípio da lesividade ou ofensividade.

O segundo argumento a permitir a manobra abortiva em casos de feto anencéfalo refere-se à inexigibilidade de conduta diversa, excludente supralegal de culpabilidade, verificável diante da anormalidade das circunstâncias do fato que propiciará a exclusão ou redução do juízo de exigibilidade de comportamento conforme ao Direito. Destarte, ausente a culpabilidade, a nosso ver, um dos predicados do crime, torna-se inviável a aplicação de uma sanção penal.

Além das questões ora apresentadas, gostaríamos de salientar alguns outros aspectos relevantes, porém não necessariamente jurídicos, para a temática em exame.

Apesar dos argumentos legais no sentido de tentar solucionar o problema e ainda que aparentemente estejamos frente à colisão de direitos fundamentais, faz-se mister esclarecer a importância de superarmos o fetiche da lei e desvelar o processo de reversibilidade do Direito, bem como a inversão ideológica do sentido histórico dos direitos humanos no campo das práticas penais, perceptível na apropriação do discurso desses mesmos direitos como justificativa para a satisfação do desejo generalizado de punição em relação a determinados grupos ou setores sociais[2].

Na sociedade atual, em prol de uma suposta proteção do interesse público e dos direitos humanos, positivados e reconhecidos constitucionalmente como fundamentais, verificamos a legitimação da lesão aos direitos de pessoas vulneráveis.

Pensando especificamente na questão criminal, o que se vê na realidade é a “supressão duplicada de direitos”, isto é, suprimem-se direitos de alguém em nome da supressão de direitos de outrem, utiliza-se a violência institucional da pena em resposta à violência individual do crime[3].

A reivindicação de direitos por meio do Direito Penal afigura-se como um equívoco, quase um mito, em virtude da crise de legitimidade que afeta o sistema penal. Ao mesmo tempo em que o sistema penal é ineficaz na proteção dos direitos ou interesses, inerentes ao feto neste caso, apresenta-se como instrumento capaz de duplicar a vitimação das mulheres por meio da ”violência institucional que reproduz a violência estrutural das relações sociais patriarcais e de opressão sexista”[4].

A reprodução do discurso de “luta pela vida” através de um sistema penal seletivo e genocida demonstra-se repleto de contradições e potencializa a conversão dos problemas sociais em problemas penais, corroborando a lógica do “fundamentalismo punitivo”[5] que aprofunda o déficit de construção da cidadania e maximiza os paradoxos provenientes da repressão penal.

A criminalização do aborto de feto anencéfalo em nada contribui para a prevenção de tal conduta – basta pensarmos na quantidade de manobras abortivas realizadas clandestinamente no Brasil[6] e no número inexpressivo de processos relativos ao crime de aborto – todavia, promove a falácia de que o sistema penal consegue resguardar bens jurídicos universais e proporcionar segurança.

Nesse contexto, a mulher, historicamente dominada e alienada no “mundo da vida” machista, continua a ser subjugada[7]. Em nome da eficácia dos direitos, consolida-se o discurso punitivo e ilusório de que o Direito Penal, mecanismo de reprodução da violência estrutural, poderá viabilizar a defesa da vida. No fundo, o que se almeja é tão somente o castigo.

A ampliação das áreas de atuação do sistema repressivo inviabiliza o surgimento de soluções mais criativas e eficazes para a questão do aborto de feto anencéfalo e faz com que a emancipação das mulheres continue a ser uma promessa, possivelmente tão inalcançável quanto a plena concretização dos direitos fundamentais em tempos de fundamentalismo punitivo.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

DUSSEL, Enrique. Filosofia da libertação: crítica à ideologia da exclusão. São Paulo: Paulus, 1995.

LUDWIG, Celso Luiz. Para uma filosofia jurídica da libertação: paradigmas da filosofia, filosofia da libertação e direito alternativo. Florianópolis: Conceito Editorial, 2006.

[1] LUDWIG, Celso Luiz. Para uma filosofia jurídica da libertação: paradigmas da filosofia, filosofia da libertação e direito alternativo. Florianópolis: Conceito Editorial, 2006.

[2] CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

[3] ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

[4] ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 103.

[5] ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 26.

[6] De acordo como um relatório divulgado em 2007 pela Federação Internacional de Planejamento Familiar (IPPF, em inglês), o aborto clandestino é a quarta causa de morte materna no Brasil, país responsável por um milhão de interrupções de gestação por ano.

[7] DUSSEL, Enrique. Filosofia da libertação: crítica à ideologia da exclusão. São Paulo: Paulus, 1995.

Referências

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