Artigos Conjur – Erros mais comuns na colheita da prova oral de acordo com a neurociência (parte 2)

Artigos Conjur
Artigos Conjur || Erros mais comuns na colhei…Início / Conteúdos / Artigos / Conjur
Artigo || Artigos dos experts no Conjur

Erros mais comuns na colheita da prova oral de acordo com a neurociência (parte 2)

O artigo aborda os erros comuns na colheita da prova oral, enfatizando a importância da formulação adequada de perguntas e os impactos de tons autoritários e vieses do entrevistador na recuperação da memória. Destacam-se questões como a complexidade das perguntas, a indução de conformidade social e a influência de preconceitos do entrevistador, evidenciando como esses fatores podem distorcer a narrativa do inquirido e comprometer a veracidade dos testemunhos. A análise sugere que uma abordagem técnica e cuidadosa é crucial para melhorar a precisão das testemunhas durante os interrogatórios.

Artigo no Conjur

No artigo da semana passada, começamos a analisar alguns dos erros mais comuns no momento da inquirição, sendo o primeiro tópico as características e problemas da tomada de compromisso. No artigo de hoje, discorreremos sobre o tópico dois (a forma de questionar e sua correlação com a recuperação da memória) e três (tons autoritários e emocionais, vieses do entrevistador e influência social).

Tópico dois: perguntas inadequadas

A maneira como formulamos perguntas está diretamente ligada ao processo de recuperar memórias. Pesquisas científicas sobre o assunto mostraram que existe uma forma de organizar e classificar as perguntas de modo a facilitar a contextualização do evento. Isso ajuda a pessoa a se lembrar de maneira mais precisa e adequada, o que é ideal para a reconstrução dos fatos. [1]

Em que pese os estudos já tenham delineado a formatação e sequência de perguntas que mais auxiliam na recuperação da memória, frequentemente se observam vários erros, utilizados sob o fundamento de que (1) estariam evitando versões combinadas ou previamente fabricadas; (2) afastariam a possibilidade de o juiz ser enganado pelo depoente; (3) garantiriam que a verdade real viesse à tona pela narrativa da testemunha. Vejamos os mais comuns:

Perguntas complexas ou de múltiplas partes: que combinam várias questões em uma – “Onde você estava no dia tal, fazendo o que, com quem e como estava vestido?”;

Perguntas sugestivas: sugerem uma resposta específica – “Você viu o homem de boné vermelho virado para o lado?”

Perguntas de escolha forçada: oferecem alternativas fechadas de resposta – “O carro era vermelho ou verde?”

Perguntas que incorporam informações erradas ou capciosas: contém pressupostos falsos – “Após as duas pessoas atravessarem a rua (o correto é uma pessoa apenas), o que você fez?”

Perguntas que contém informações não verificadas: parte do questionamento é uma pressuposição do entrevistador – “Após se assustar, porque é impossível ver uma situação dessas e não se assustar, o que você fez?”

Perguntas que induzem conformidade social: a indagação confronta o entrevistado com o que é socialmente aceitável – “Está claro aqui para todo mundo que foi um acidente. Você também acha isso?”

Perguntas hipotéticas em excesso que extraem subjetividade: baseadas em cenário imaginário – “Se você tivesse visto o suspeito, acha que o reconheceria?”

Perguntas que supõem esquecimento ou lembrança: assumem que algo não se lembra, ou deve ser lembrado – “Obviamente, você se lembra dessa situação que causou tanta dor e desconforto, não é?”

Perguntas que focam em detalhes irrelevantes: minúcias ou detalhes que não vem ao caso – “Como era o laço do sapato do assaltante?”

Perguntas indutoras de confusão por variação temporal: tentam confundir o depoente exigindo respostas com variação temporal – “Conte-me o que ocorreu ontem”. Interrupção. “E agora há seis meses”. Interrupção “E agora anteontem.”

Esses são apenas alguns exemplos de perguntas que confundem a pessoa inquirida e, bem por isso, prejudicam o processo de recuperação na reconstrução dos fatos, devendo ser evitadas se o objetivo for efetivamente o adequado funcionamento da memória do entrevistado para fins de retomada da dinâmica fática originária [2].

Tópico três: tons autoritários e emocionais, vieses do entrevistador e influência social

Entre os princípios da entrevista cognitiva aprimorada ou incrementada, encontra-se o da transferência de controle, que significa entregar ao entrevistado o controle da sua própria ação [3]. Isso não significa, obviamente, que o juiz, abdicando do poder de polícia no ato processual, permitirá que a testemunha (acusado, vítima ou declarante) coloque os pés em cima da mesa de audiência, agrida, verbal ou fisicamente, a outrem, entre outras condutas.

Em realidade, o que o princípio em foco quer dizer é que o entrevistado tem o controle da sua própria narrativa, podendo reconsiderar o que foi dito, assim como reafirmar algo, dizer que não se lembra, não ter certeza, não sabe etc., sem que, com isso, sinta-se pressionado a adotar determinado rumo na sua própria história.

A visão leiga tende a crer que ao limitar a possibilidade de escolha de ações do entrevistado, ou adotar um tom mais austero na condução do ato, isso garantirá a idoneidade do relato, evitando que o participante minta, ou omita alguma informação relevante. Essa compreensão é equivocada e, a bem da verdade, inadequada, porque, da mesma forma que as anteriores, induz retroalimentação, prejudicando a recuperação do traço de memória.

Apelando para a autoridade ao revés de tentar interagir em igualdade de condições de discurso com a pessoa inquirida, o entrevistador perde imediatamente a calibragem, situando-se em posição impropriamente superior àquele com quem interage e, com isso, facilitando em muito a ocorrência de retroalimentações e percepções inadequadas da realidade.

Ademais, o entrevistador deverá estar atento a que não empreenda a indagação tendo em linha de conta pressuposições que possam prejudicar a sua valoração fática, quer pela ilusão cognitiva de respostas em sentido contrário, quer pela valoração inadequada dos fatos a partir de premissas inadequadas.

Eis alguns dos vieses mais comuns que devem ser evitados.

Confirmação, consistente na tendência em buscar, interpretar, favorecer e recordar informações de maneira a confirmar as próprias crenças ou hipóteses, ignorando informações contrárias [4]. Por isso, um dos pontos que deve ser proibido, é a leitura da denúncia em especial a motivação constante na imputação, que já espelha um instrumento — oficial — de caracterização do viés confirmatório.

Ancoragem, consistente em se apoiar nas primeiras peças de informação a respeito de algo, como, por exemplo, uma folha de antecedentes, com condenações anteriores [5].

Framing, pertinente à influência de como uma informação ou pergunta é estruturada na decisão ou resposta da pessoa, como, por exemplo, ao descrever os resultados de uma cirurgia em termos de taxa de sobrevivência (90% de chance de viver) versus taxa de mortalidade (10% de chance de morrer), as pessoas tendem a avaliar a cirurgia como mais aceitável no primeiro cenário, embora as estatísticas sejam idênticas [6].

Expectativa do entrevistador, pertinente ao efeito das expectativas do entrevistador sobre o comportamento do entrevistado e a interpretação das suas respostas [7].

Recência e primazia, consistente em permitir a maior influência das primeiras (primazia) ou últimas (recência) informações apresentadas sobre a memória e a percepção [8].

Cultura e estereótipos, alusivo à influência de crenças culturais e estereótipos do entrevistador na interpretação das respostas do entrevistado [9].

Igualmente equivocado se apresenta o tom emocional, por vezes encurralando socialmente o entrevistado, ao dizer que se trata da única testemunha do evento analisado em juízo, que a família da vítima demanda justiça, que só pode ser feita com as informações do depoimento, ou, ainda, que a testemunha tem um papel social a cumprir, dizendo a verdade sobre o que sabe.

O controle da narrativa no ato é do entrevistado e não do entrevistador, de modo que é inadequado — e, por isso, prejudica a memória e a recuperação dos fatos, induzindo respostas viciadas — qualquer pressão no sentido de que se lembre ou deixe de lembrar algo. Não é a memória que deve se adaptar ao processo, e sim o contrário. Tampouco a memória deve se desincumbir do ônus probatório, mas sim os atores processuais.

Conclusão

Deve-se lembrar que os tópicos expostos acima são voltados para a melhor preservação da memória de quem está sendo inquirido. Entretanto, outro ponto relevante é a interpretação a partir da estratégia da parte que está questionando, tendo em vista que o direct examination e do cross-examination, por exemplo, são instrumentos importantes para que a acusação e a defesa consigam realizar o controle da credibilidade dos entrevistados e o grau de coerência das suas narrativas.

De qualquer maneira, pelo aspecto das neurociências, a atividade de entrevista (no Direito alcunhada de inquirição) consiste em ato complexo, que deve ser realizado com acuidade e técnica, baseada em lastro científico validado, para que tenhamos resultados mais legítimos e uma diminuição dos erros judiciais.

[1] GABBERT, F.; HOPE, L. Witness Testimony. In: GRIFFITHS, A.; MILNE, R. (Eds.). The Psychology of Criminal Investigation: Psychology into Practice. Routledge, 2018.

[2] Ressalta-se que estamos analisando alguns equívocos no que diz respeito à principal função da testemunha/vítima: retratar a dinâmica fática destituída de vieses.

[3] ALBUQUERQUE, Pedro; BULL, Ray; PULO, Rui. A entrevista cognitiva melhorada: pressupostos teóricos, investigação e aplicação. Revista Psicologia, v. 28, n. 02, p. 21-30, 2014.

[4] NICKERSON, R. S. Confirmation Bias: A Ubiquitous Phenomenon in Many Guises. Review of General Psychology, v. 2, n. 2, p. 175–220, 1998. https://doi.org/10.1037/1089-2680.2.2.175. Acesso em: 07 abr. 2024.

[5] TVERSKY, A.; KAHNEMAN, D. Judgment under Uncertainty: Heuristics and Biases. Science, v. 185, n. 4157, p. 1124–1131, 1974. https://doi.org/10.1126/science.185.4157.1124. Acesso em: 07 abr. 2024.Parte superior do formulário

[6] LEVIN, I. P.; SCHNEIDER, S. L.; GAETH, G. J. All Frames Are Not Created Equal: A Typology and Critical Analysis of Framing Effects. Organizational Behavior and Human Decision Processes, v. 76, n. 2, p. 149–188, 1998. https://doi.org/10.1006/obhd.1998.2804. Acesso em: 07 abr. 2024.

[7] ROSENTHAL, R.; JACOBSON, L. Pygmalion in the classroom. Urban Review, v. 3, p. 16–20, 1968. https://doi.org/10.1007/BF02322211. Acesso em: 07 abr. 2024.

[8] MURDOCK, B. B. Jr. The serial position effect of free recall. Journal of Experimental Psychology, v. 64, n. 5, p. 482–488, 1962. https://doi.org/10.1037/h0045106. Acesso em: 07 abr. 2024.

[9] SUE, S. Science, Ethnicity, and Bias: Where Have We Gone Wrong? American Psychologist, v. 54, n. 12, p. 1070–1077, 1999. https://doi.org/10.1037/0003-066X.54.12.1070. Acesso em: 07 abr. 2024.

Referências

Relacionados || Outros conteúdos desse assunto
    Mais artigos || Outros conteúdos desse tipo
      Denis Sampaio || Mais conteúdos do expert
        Gina Muniz || Mais conteúdos do expert
          Rodrigo Faucz || Mais conteúdos do expert
            Tiago Gagliano || Mais conteúdos do expert
              Acesso Completo! || Tenha acesso aos conteúdos e ferramentas exclusivas

              Comunidade Criminal Player

              Elabore sua melhor defesa com apoio dos maiores nomes do Direito Criminal!

              Junte-se aos mais de 1.000 membros da maior comunidade digital de advocacia criminal no Brasil. Experimente o ecossistema que já transforma a prática de advogados em todo o país, com mais de 5.000 conteúdos estratégicos e ferramentas avançadas de IA.

              Converse com IAs treinadas nos acervos de Aury Lopes Jr, Alexandre Morais da Rosa, Rodrigo Faucz, Gabriel Bulhões, Cristiano Maronna e outros gigantes da área. Explore jurisprudência do STJ com busca inteligente, análise de ANPP, depoimentos e muito mais. Tudo com base em fontes reais e verificadas.

              Ferramentas Criminal Player

              Ferramentas de IA para estratégias defensivas avançadas

              • IAs dos Experts: Consulte as estratégias de Aury Lopes Jr, Alexandre Morais da Rosa, Rodrigo Faucz, Gabriel Bulhões e outros grandes nomes por meio de IAs treinadas em seus acervos
              • IAs de Jurisprudência: Busque precedentes com IAs semânticas em uma base exclusiva com mais de 200 mil acórdãos do STJ, filtrados por ministro relator ou tema
              • Ferramentas para criminalistas: Use IA para aplicar IRAC em decisões, interpretar depoimentos com CBCA e avaliar ANPP com precisão e rapidez
              Ferramentas Criminal Player

              Por que essas ferramentas da Criminal Player são diferentes?

              • GPT-4 com curadoria jurídica: Utilizamos IA de última geração, ajustada para respostas precisas, estratégicas e alinhadas à prática penal
              • Fontes verificadas e linkadas: Sempre que um precedente é citado, mostramos o link direto para a decisão original no site do tribunal. Transparência total, sem risco de alucinações
              • Base de conhecimento fechada: A IA responde apenas com conteúdos selecionados da Criminal Player, garantindo fidelidade à metodologia dos nossos especialistas
              • Respostas com visão estratégica: As interações são treinadas para seguir o raciocínio dos experts e adaptar-se à realidade do caso
              • Fácil de usar, rápido de aplicar: Acesso prático, linguagem clara e sem necessidade de dominar técnicas complexas de IA
              Comunidade Criminal Player

              Mais de 5.000 conteúdos para transformar sua atuação!

              • Curso Teoria dos Jogos e Processo Penal Estratégico: Com Alexandre Morais da Rosa e essencial para quem busca estratégia aplicada no processo penal
              • Curso Defesa em Alta Performance: Conteúdo do projeto Defesa Solidária, agora exclusivo na Criminal Player
              • Aulas ao vivo e gravadas toda semana: Com os maiores nomes do Direito Criminal e Processo Penal
              • Acervo com 130+ Experts: Aulas, artigos, vídeos, indicações de livros e materiais para todas as fases da defesa
              • IA de Conteúdos: Acesso a todo o acervo e sugestão de conteúdos relevantes para a sua necessidade
              Comunidade Criminal Player

              A força da maior comunidade digital para criminalistas

              • Ambiente de apoio real: Conecte-se com colegas em fóruns e grupos no WhatsApp para discutir casos, compartilhar estratégias e trocar experiências em tempo real
              • Eventos presenciais exclusivos: Participe de imersões, congressos e experiências ao lado de Aury Lopes Jr, Alexandre Morais da Rosa e outros grandes nomes do Direito
              • Benefícios para membros: Assinantes têm acesso antecipado, descontos e vantagens exclusivas nos eventos da comunidade

              Assine e tenha acesso completo!

              • 75+ ferramentas de IA para estratégias jurídicas com base em experts e jurisprudência real
              • Busca inteligente em precedentes e legislações, com links diretos para as fontes oficiais
              • Curso de Alexandre Morais da Rosa sobre Teoria dos Jogos e Processo Penal Estratégico
              • Curso Defesa em Alta Performance com Jader Marques, Kakay, Min. Rogério Schietti, Faucz e outros
              • 5.000+ conteúdos exclusivos com aulas ao vivo, aulas gravadas, grupos de estudo e muito mais
              • Fóruns e grupos no WhatsApp para discutir casos e trocar experiências com outros criminalistas
              • Condições especiais em eventos presenciais, imersões e congressos com grandes nomes do Direito
              Assinatura Criminal Player MensalAssinatura Criminal Player SemestralAssinatura Criminal Player Anual

              Para mais detalhes sobre os planos, fale com nosso atendimento.

              Quero testar antes

              Faça seu cadastro como visitante e teste GRÁTIS por 7 dias

              • Ferramentas de IA com experts e jurisprudência do STJ
              • Aulas ao vivo com grandes nomes do Direito Criminal
              • Acesso aos conteúdos abertos da comunidade

              Já sou visitante

              Se você já é visitante e quer experimentar GRÁTIS por 7 dias as ferramentas, solicite seu acesso.