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Educação jurídica deixa diversos elementos de afeto pelo caminho

O artigo aborda a importância de reintegrar o afeto na educação jurídica contemporânea, destacando como a tradição educacional ocidental, marcada pela razão e pelo patriarcado, tem negligenciado aspectos fundamentais da subjetividade e da alteridade. Baseando-se nas reflexões de Luis Alberto Warat e Friedrich Nietzsche, o texto critica a objetificação do ensino e a formação de indivíduos desconectados de suas emoções e identidades, propondo uma pedagogia que valorize a sensibilidade e a criatividade no processo de aprendizado. Através dessa perspectiva, sugere-se que a verdadeira educação deve ser um caminho autônomo de descoberta e transformação, em vez de mera transmissão de verdades estabelecidas.

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Eu vos imploro, irmãos, permaneceis fiéis à terra. Nietzsche – Assim falou Zaratustra

Reunir afeto e educação é uma tarefa que requer a absorção, no meio pedagógico, das mudanças paradigmáticas ocorridas tanto na cultura quanto no modelo de pensamento da sociedade ocidental. A reflexão que segue busca aproximar as mudanças havidas no século XX, notadamente em relação à desrrepressão dos aspectos femininos na cultura, bem como compreender de que modo as características nascentes de uma civilização contingente, líquida e nômade têm nos processos de aprendizagem. Para tanto, parte-se da proposta de Luis Alberto Warat, jusfilósofo argentino, para propor uma pedagogia que permita estreitar os vínculos afetivos que exsurgem da compreensão da alteridade entre professores e alunos.

Carência do afeto É inegável que a tradição educacional ocidental laicizada deita raízes na educação cristã. O professar — verbo que determina a ação do professor, por si só, dá conta de demonstrar que a educação de hoje, ainda guarda representações simbólicas das chamadas escolas catedralíceas evangelizadoras da Idade Média. Como em todo o discurso religioso, também no processo de evangelização, parte-se do pressuposto de que alguém — professor, padre ou papa — é detentor de uma verdade universalizante que deve ser repassada àqueles furtados da experiência com essa verdade. Pode-se dizer que a verdade da teologia medieval, repaginada a partir do cogito cartesiano, passa por uma dura crítica de Nietzsche[1], quando o filósofo bigodudo recupera a ambivalência como característica humana primordial a partir da tragédia grega, personificada nos deuses pagãos Dionísio e Apolo.

No livro O Nascimento da Tragédia, Nietzsche reconstrói os fundamentos da tragédia grega arcaica, apontando o entrechoque das forças apolíneas e dionisíacas como sustentáculo da arte trágica pré-socrática. O advento da estrutura de pensamento socrático-platônica, segundo Nietzsche, é o fenômeno que marca a decadência não apenas da tragédia ática, mas principalmente do modo de existência do homem ocidental que se projetou da Grécia pós-socrática até a modernidade. É a partir do modelo de pensamento socrático-platônico, segundo o Grande Bigode, que as forças dionisíacas foram afastadas da cultura ocidental.

Enquanto o deus grego Apolo é marcado pelos atributos de resplandecência, luz e verdade superior, deus que obtém o saber e a arte através do sonho, Dionísio usa a embriaguez como ferramenta de construção da sua arte e da sua sabedoria. Dionísio é o deus que representa a atitude do espírito de enfrentar corajosamente o sombrio, o sinistro, o infernal e o noturno. É o equilíbrio entre essas duas forças do espírito trágico que possibilitam o processo de criação. O passeio guiado por Dionísio nos ambientes selvagens da desmesura restaura a necessidade do caos como constituidor da realidade objetificada pela razão. É nas forças dionisíacas que está escondido o afeto e a sensibilidade, tão caros ao processo educativo.

Nietzsche é fundamental porque aponta o dedo para a cirurgia mal feita por Platão ao separar o mundo dos afetos sensíveis ao mundo dos afetos inalcançáveis. O rastro dessa tradição se estende ao longo do desenvolvimento dos processo de educação, recebendo atualmente críticas no sentido de amenizar os efeitos objetificantes da razão, como faz, entre outros, Michel Mafessoli quando postula o conceito de razão sensível[2].

Por conta de uma cultura iminentemente patriarcal e racional, a educação ocidental se desenvolveu a partir da prevalência da ordem sobre a criatividade, da linearidade sobre a complexidade e da seriedade sobre a afetividade. No mundo dominado pela técnica — o operador do Direito é o pesadelo da técnica no mundo jurídico —, em que se elogia o “profissionalismo” como distanciamento e cisão, faz falta gente capaz de se reconhecer nas diferenças do outro.

Educação jurídica de afetos A educação é um procedimento, uma maturação, uma paciência, um estado de latência que precisa da calma para o bem das erupções. Warat ensina que a sensibilidade foi prostituída pelos processos pedagógicos. Todo mostrar é uma castração, daí a necessidade de fazer com que o aluno seja, antes de um aprendiz receptor de verdades pré-formatadas, um descobridor autônomo. Na obra Sidarta, Herman Hesse[3] indica que o caminho final nunca pode ser ensinado. Não há doutrina prévia para o caminho de ouro que guarda a resposta própria do itinerário de cada caminhante que se aventura a conhecer. É preciso estar toldado por interrogação nas vistas, caso contrário, todo processo de aprendizado é desserviço.

O Manifesto do Surrealismo Jurídico de Warat mostra o valor pulsante do respeito ao inconsciente como fonte da sensibilidade e da razão consciente. Sem dor não há criação, e sem criação não há possibilidade pedagógica que valha a pena se os destinos forem altos, onde o ar é rarefeito e calmo. Aprender é, portanto e sobretudo, um desaprender. É trocar certezas por dúvidas sedutoras. A possibilidade de permitir o intertexto e o plágio sensível sem o cancro da culpa é outro presente que Warat nos dá no manifesto que lança como uma bomba atômica no edifício da educação jurídica.

Quem pretende “educar” precisa antes educar-se. Quem educa deve se desculpar. Esquecer a obrigação por um querer bem propositado, que é sempre um propósito que vem do coração, torvelinho arquetípico dos afetos. Os cursos de Direito têm formado máquinas, androides moribundos, gente que esconde vísceras atrás de gravatas de seda. O animal racional deixou de ser animal para se tornar um mecânico operativo. Se a tecnologia nos facilitou a vida, no mesmo grau e fundura também nos assassinou a parte bicho.

O ser-bicho do ser-humano foi condenado em praça pública. Levado à forca pela recente história da técnica. O ser-bicho do ser-humano vomita a overdose juvenil por não ter sabido a hora de parar de usar todas as drogas como fugas de si mesmo. A era da técnica foi esse entusiasmo juvenil. O estudante de hoje, que é o presente da história que se propõe a perder a novela, a convivência com a família e a vadiagem, já é um produto-transcendente em relação ao modelo de educação do qual muitos ainda se valem como esconderijo. O autêntico estudante de hoje — falemos dos autênticos para poder construir projetos — transita melhor pelo mar de informações que os professores apegados à lógica racional da distância, herança do medo de ser tocado no púlpito arrogante e autorizado do conhecimento.

A carne, o choro, a meditação, o abraço — eis o que esquecemos pela estrada. Elementos sem espaço nas estruturas de Poder montadas para o Direito a que nos acostumamos. Como um casamento sem graça que já não espera boas novas, o afeto no Direito é essa amante sedutora, que chega e abala nossas certezas monogâmicas e monótonas. E essa amante precisa seduzir os incapazes. Não haverá estupro presumido. Nem abuso de menores. Já passa da hora de sermos fiéis à terra.

[1] NIETZCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

[2] MAFESOLLI, Michel. Elogio da Razão Sensível. São Paulo – Vozes, 2006.

[3] HESSE, Herman. Sidarta. São Paulo – Ed. Objetiva, 2010.

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