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Dolo eventual e culpa consciente no Tribunal do Júri — desafios

O artigo aborda a complexidade da distinção entre dolo eventual e culpa consciente no contexto do Tribunal do Júri, destacando os desafios enfrentados tanto por advogados quanto por jurados leigos na compreensão dessas categorias. Os autores discutem as dificuldades na argumentação e na formulação de quesitos, além da necessidade de uma interpretação mais clara e adequada das provas e dos princípios legais que regem a competência de julgamento. Assim, a obra revela a importância de uma elaboração cuidadosa da tese de defesa para assegurar a efetividade da justiça no veredito do Conselho de Sentença.

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Certo dia nos deparamos com dezenas de mensagens em um grupo fechado de advogados(as) que discutiam um caso concreto. A temática era um fato imputado em virtude de atropelamento por veículo automotor. O debate era intenso e de alto nível sobre a imputação, a prova do dolo, a forma de atuação em plenário e a dificuldade de explicação quanto à diferença entre o dolo eventual e a culpa consciente.

A intuição guiará esse profissional em seu labor de distinguir dolo e culpa. Desse fato decorre um grave problema, posto que o critério interpretativo adotado quase nenhum compromisso guardará com a letra da lei, isto é, com a norma do Código Penal que materializa o princípio da legalidade.

Melhor sorte terão aqueles que se valerem de um certo mnemônico aprendido quando ainda estudantes. O mnemônico exemplifica a diferença a partir de dois cenários: no primeiro, do dolo eventual, o agente pensaria “que se dane” antes da ocorrência do resultado, enquanto que, no segundo, a culpa consciente emergiria do comportamento do sujeito que, diante do advento de um resultado previsto como possível, mas assumido como não factível, diria para si: “ih, danou-se”. É certo que existem outras versões desse mnemônico, sendo algumas com uso de alguns palavrões que são usadas como um forte recurso de linguagem na vã tentativa de traçar a diferença para os estudantes entre os plurissignificativos conceitos de dolo eventual e culpa consciente.

Partindo desse quadro que, certamente, o leitor deste artigo já vivenciou em sua atuação profissional ou está vivenciando por ainda estar envolvido com os estudos de teoria do delito, clarividencia-se que certamente o(a) jurado(a) leigo(a), que compõe o Conselho de Sentença em uma sessão plenária do Tribunal do Júri, estará com maiores dificuldades na tentativa de formar seu convencimento acerca da prática da conduta pelo réu a título de dolo ou culpa. O(a) jurado(a) será submetido(a) às provas técnicas e testemunhas, ouvirá as argumentações essenciais da acusação e da defesa, sendo que cada parte trará para o plenário a sua leitura jurídica-probatória do por que se deve reconhecer o dolo do agente ou do por que a desclassificação é a melhor medida e, no final, o Conselho de Sentença formará seu livre convencimento.

Apesar de bastante incomum, uma vez ou outra o Conselho de Sentença diverge da tese desclassificatória assumida em plenário tanto pelo Ministério Público e quanto pela defesa para condenarem o réu pela prática dolosa. Nesses casos, é bastante frequente que, após o encerramento dos trabalhos, um(a) ou outro(a) jurado(a) se dirija ao(a) promotor(a) e ou ao(a) defensor(a) e externalize sua contrariedade com a posição jurídica sustentada em plenário ao argumento de que seu acolhimento seria uma “grande injustiça”, em virtude da resposta penal final.

Antes que se levantem vozes para criticar o instituto do Tribunal do Júri justamente por seu caráter leigo, registre-se que o magistrado togado ou os órgãos colegiados em sede recursal não fazem muito diferente. Basta lembrar de inúmeros casos de grande repercussão em que a fixação da competência para o Tribunal do Júri ocorre apenas nos tribunais superiores, diante de divergências entre a primeira e segunda instância local. A ideia de que o reconhecimento da culpa consciente frente a uma conduta que gera a morte ou a outro resultado grave configura uma “injustiça” é perspectiva muito difundida, ainda que de modo inconsciente. Esse sentimento intuitivo de “injustiça” é que produz uma série de decisões judiciais que violam frontalmente a letra de nosso Código Penal.

O Artigo 18, I, do CP impõe que o dolo é formado quando o agente quis ou assumiu o resultado. Em realidade, somente pode-se querer ou assumir aquilo que se conhece, por essa razão, em termos legais, nosso sistema jurídico identifica que o dolo tem em sua formação dois elementos, consciência e vontade. A lei penal brasileira adotou a teoria volitiva para o dolo direto que, nesse sentido, é consciência e vontade de realizar o tipo penal objetivo e, para o dolo eventual, que é consciência e assunção do advento do resultado, adotou a teoria do consentimento que, não deixa de ser volitiva também.

Não obstante, é bastante comum a jurisprudência dar muitas voltas argumentativas para justificar uma condenação dolosa quando ausente o elemento volitivo [1] apenas para evitar uma punição mais branda que se configuraria como uma injustiça. A nobreza da causa não justifica a solução adotada, posto que não cabe ao Poder Judiciário elaborar e realizar política criminal. Contudo, para além dessa questão política, o que se percebe é que o conceito volitivo de dolo é falho e gera respostas jurídicas inadequadas. Assim, Martinelli e de Bem apontam que modernamente as tradicionais teorias volitivas do dolo vêm sendo alvo de crítica, posto que “o centro de gravidade da reprovação do dolo não seria a vontade do agente, e sim sua consciência” [2]. Essa inadequação conceitual demanda uma reforma legislativa que, antes de vir a lume, impõe um amadurecimento do debate sobre os critérios para a construção de um dolo sem vontade [3], o que viria a evitar o continuísmo de uma equivocada prática judicial que, de fato, trabalha com um dolo sem vontade, mas argumenta e formalmente se agarra à defesa do elemento volitivo do dolo.

Para além da necessidade de se rediscutir o conceito de dolo, resta a necessidade imediata de que o profissional que atua no Tribunal do Júri consiga expor sua tese jurídica, seja da manutenção do tipo doloso ou da tese da desclassificação, de modo a que os jurados compreendam a interpretação jurídica da realidade exposta e, principalmente, concorde com a justiça da tese arguida. Aqui, reside a importância de se conhecer as técnicas para a construção de uma argumentação consistente e convincente que se mostre de fácil explicação no momento da formação da decisão pelo Conselho de Sentença.

Daí surge um outro e complexo problema: a edificação correta dos quesitos neste debate quanto a ocorrência do dolo eventual e da culpa consciente para a tomada de decisão pelos(as) jurados(as).

A primeira observação a ser feita é que a acusação estará adstrita ao que constar na pronúncia. Para isso, no entanto, o princípio da correlação entre acusação e decisão deve ser efetivamente observado e fiscalizado na primeira e na segunda fase do procedimento do júri. Neste ponto, a preocupação quanto à fundamentação da decisão de pronúncia se mostra necessária. Quando a acusação imputa um crime doloso, na modalidade eventual, deve descrever na denúncia todos os fatos e a assunção do risco pelo acusado de forma individualizada. No momento dos debates a mesma situação se mostra necessária. A correlação que se faz deve dizer respeito a todos (e apenas) os elementos da acusação admitidos na pronúncia (artigo 476, CPP): o fato penal, o elemento subjetivo do tipo, a autoria e/ou participação e eventuais qualificadoras e causas de aumento de pena. Caso não conste na decisão de pronúncia determinado ponto, independente do motivo da omissão, é ela que prevalecerá e que limitará a acusação em plenário do júri e às exposições quanto as teses afirmadas para o juiz natural, cabendo, também, ao juiz presidente o controle deste limite para que não haja violação ao princípio da correlação entre acusação e decisão a ser proferida pelo Conselho de Sentença (tema que já abordamos) [4]. A assunção dos riscos que caracteriza a imputação no homicídio por dolo eventual não foge a esta regra [5].

A segunda observação a ser feita está no próprio artigo que indica como devem ser estruturados os quesitos. O caput do artigo 482, CPP determina que o Conselho de Sentença será questionado sobre a matéria de fato e se o acusado deve ser absolvido. Na linha normativa, o parágrafo único dispõe que os quesitos serão redigidos em proposições afirmativas, simples e distintas, de modo que cada um deles possa ser respondido com suficiência clareza e necessária precisão. Muito embora os(as) jurados(as) apreciem questões fáticas, a cisão entre “questão de direito” e “questão de fato” se torna de difícil visualização. Todas as questões debatidas em plenário possuem conteúdo jurídico e, a dissociação deste fator aos(as) jurados(as) se mostra de grande dificuldade.

Independentemente desta análise, a questão sobre a forma de estruturação dos quesitos deve estar adequada aos dispositivos expressos que delineiam esses instrumentos decisórios (quesitos) e ao princípio da plenitude de defesa. Neste ponto, a observância ao princípio da correlação entre acusação e decisão se mostra presente nos debates, em que a acusação deve estar adstrita à pronúncia e, consequentemente, serão as fontes para a elaboração dos quesitos. Por isso, toda a preocupação no registro da ata de julgamento pelo juiz(a) presidente (artigo 495, XIV, CPP)

No seguimento da alusão à simplicidade dos quesitos e na sua forma afirmativa (artigo 482, parágrafo único, CPP), não há espaço para a quesitação do elemento normativo do tipo pela negligência. Não se quesita a culpa, mas o elemento intencional adstrito à imputação. Logo, se a discussão traçada em plenário diz respeito a existência do dolo eventual ou culpa consciente o debate estará pautado no primeiro: na acusação. A negativa quanto a ele, resulta, portanto, na desclassificação do fato, com o deslocamento da competência para o(a) juiz(a) presidente.

Em conclusão não exauriente, o que se discutia no grupo de advogados(as) que atuam no tribunal do júri era a dificuldade de explicação para o Conselho de Sentença quanto à diferença entre dolo eventual e culpa consciente. Contudo, não se pode olvidar, ainda, que a dificuldade de argumentação em plenário não é o ponto final deste eterno debate. Importa ratificar que a defesa não pode se descuidar do enfrentamento desse tema também no momento da elaboração e da fiscalização dos quesitos, para que não haja violação ao princípio da plenitude de defesa e, ao final, alcance uma correta tomada de decisão pelo Conselho de Sentença.

[1] Nesse tocante, merece ser lido o seguinte estudo: WUNDERLICH, Alexandre; RUIVO, Marcelo Almeida. Culpa Consciente e Dolo Eventual (Parecer Caso “Boate Kiss”: Santa Maria-RS). Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 161. ano 27. São Paulo, nov, 2019

[2] MARTINELLI, João Paulo; BEM, Leonardo Schmitt de. Direito Penal – Lições Fundamentais – Parte Geral. Belo Horizonte: D’Plácido, 2022. p.592.

[3] Sobre a temática, importa conferir a profunda análise realizada sobre o caso “Racha em Berlim”: VIANA, Eduardo; TEIXEIRA, Adriano. A Imputação Dolosa no Caso do “Racha em Berlim”. Comentários à Decisão do Tribunal de Berlim. Revista de Estudos Criminais, Ano XVIII, Nº 73, Porto Alegre, abr-jun, 2019.

[4] https://www.conjur.com.br/2022-mai-07/tribunal-juri-principio-correlacao-entre-acusacao-decisao-juri

[5] “O elemento volitivo também é submetido para decisão pelos jurados, por intermédio de uma pergunta específica submetida a eles. E o quesito sobre a intenção do agente, obrigatoriamente, precisa transparecer os indicadores objetivos para que se possa atribuir ao acusado ter agido com dolo ou com imprudência.” SILVA, Rodrigo Faucz Pereira. Reflexos da teoria significativa da ação no júri. https://www.conjur.com.br/2022-mar-12/tribunal-juri-reflexos-teoria-significativa-acao-juri

Referências

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