Discurso de ordem pública na segurança é típico de um estado de exceção
O artigo aborda a relação conturbada entre a ideia de “ordem pública” e a segurança no contexto brasileiro, enfatizando como essa noção, frequentemente vaga e indefinida, tem sido utilizada para justificar a suspensão de direitos individuais em cenários de exceção. O autor analisa a instrumentalização desse discurso pela histórica confusão entre segurança do Estado e proteção dos cidadãos, advogando por uma segurança pública que priorize a dignidade humana e os direitos fundamentais. A crítica abrange também a preocupação com os ecos do passado autoritário e os riscos de uma abordagem que revive práticas repressivas sob o disfarce da manutenção da ordem.
Artigo no Conjur
Em verdade, o sistema constitucional revela postura híbrida de tutela. Protege-se a “ordem pública” e a incolumidade individual e patrimonial. Não fica claro se a política de segurança é dirigida prioritariamente à manutenção do Estado, do governo ou das pessoas.[2] O modelo denota certa confusão, talvez até proposital, já que a nebulosidade constitucional tem possibilitado, diante do caso concreto, o afastamento de garantias individuais em nome de uma suposta tutela coletiva. Não raras vezes as agências estatais tem manejado a categoria “ordem pública” exatamente para afastar (ou violar) direitos fundamentais.
É inegável que a concepção de ordem pública ainda ocupa posição de absoluto destaque na segurança pública nacional. Há uma relação histórica de implicação mútua e íntima dependência entre essas categorias. Alguns autores chegam a sustentar a ideia de “ordem pública” como elemento fundante de todo o sistema brasileiro de segurança. Diogo de Figueiredo Moreira Neto, v.g., afirma que “segurança pública é a garantia da ordem pública”.[3] No mesmo sentido são as lições da “Escola Superior de Guerra”[4].
De fato, em face da atual redação do artigo 144 da Constituição, “procura-se preservar a grandeza da ordem pública e a segurança pública, sendo esta exercida em função daquela, como seu aspecto, seu elemento e sua causa”.[5]
O discurso de ordem pública é tradicionalmente explicado por ideais de tranquilidade social ou harmonia coletiva. Uma “situação de tranquilidade e normalidade que o Estado assegura – ou deve assegurar – às instituições e a todos os membros da sociedade”.[6] Afirma-se, como visto acima, que o objetivo é evitar perturbações ou desordem. Outro fim declarado seria o de assegurar a integridade das estruturas sociais.
Ocorre que o conceito de ordem pública é, acima de tudo, absolutamente vago. É tipicamente “indefinido, indeterminado, impreciso, elástico, plástico, instável etc.”[7] “Na verdade, nada mais incerto em direito do que a noção de ordem pública”.[8]
É justamente pela sua indefinição que tem sido utilizada como instrumento valioso ao “paradigma de governo dominante na política contemporânea”, a saber, “o estado de exceção”, entendido “como um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo”, instaurador “de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político”.[9]
Carl Schmitt, em 1932, já falava da “ordem” como elemento autorizador (e justificador) de uma guerra estatal interna:
“O Estado enquanto unidade política normativa concentrou em si mesmo uma imensa competência: a possibilidade de fazer guerra e, assim, dispor abertamente sobre a vida das pessoas (…) o desempenho de um Estado normal consiste, sobretudo, em obter dentro do Estado e de seu território uma pacificação completa, produzindo ‘tranquilidade, segurança e ordem’ e criando, assim, a situação normal (…) Em situações críticas, esta necessidade de pacificação intraestatal leva a que o Estado, como unidade política, enquanto existir, também determine, por si mesmo, o ‘inimigo interno’”.[10]
É preciso sublinhar que muita coisa tem sido feita em nome de uma suposta “ordem pública”, inclusive entre nós. A história recente do Brasil, com seus mais de 20 anos de regime militar, pode ser utilizada para demonstrar claramente o uso estratégico da categoria “ordem” para o afastamento de direitos fundamentais em típico regime de exceção.
O discurso do golpe militar não era outro senão o de “ordem”.[11] Os militares brasileiros, em nome da “restauração da ordem interna”, tomam o poder e afastam o sistema constitucional de garantias.[12]
A medida é, de certo modo, semelhante à postura adotada no Estado nazista, em 28 de fevereiro de 1933, ao promulgar o “Decreto para a proteção do povo e do Estado”, que suspendia os artigos da Constituição de Weimar relativos às liberdades individuais.[13]
Agamben[14] vai afirmar que o estado de exceção é, portanto, “a abertura de um espaço em que aplicação e norma mostram sua separação e em que uma pura força-de-lei realiza (isto é, aplica desaplicando) uma norma cuja aplicação foi suspensa”. Trata-se, em verdade, de “patamar onde lógica e práxis se indeterminam e onde uma pura violência sem logos pretende realizar um enunciado sem nenhuma referência real”.
Nesse sentido, pouca dúvida resta sobre a funcionalidade da “ordem pública” como dispositivo de típico estado de exceção. No mínimo, preocupante imaginar que o mesmo discurso utilizado pelo golpe civil-militar brasileiro venha a constituir o principal fundamento de segurança pública da chamada “Constituição Cidadã”.
O dilema histórico entre “poder e direito” não pode ser desprezado. É claro que o poder jurídico não é a única espécie de poder que atinge o “sujeito real”, sendo múltiplos e diferentes os mecanismos de exercício de poder e suas influências nas subjetividades contemporâneas. E, a respeito disso, Michel Foucault (“sociedade disciplinar”) e Gilles Deleuze (“sociedade de controle”) não deixam dúvidas.[15]
A questão que se coloca, por ora, no entanto, é a de como frear o discurso de “ordem pública”, previsto no arquétipo constitucional da segurança pública, a fim de garantir as liberdades individuais? Parece-nos que a limitação à “ordem pública” deve ser extraída do próprio núcleo do Estado Constitucional brasileiro, a saber, o rol de direitos e garantias fundamentais, que ocupam o âmbito do “não decidível” (verdadeiras “cláusulas pétreas” — art. 60, parágrafo 4º , IV, da CRFB)[16].
É necessário, portanto, pensar e efetivar uma segurança pública cidadã, que busque validade e legitimação constitucional em torno da incolumidade dos sujeitos – para além de uma suposta “ordem pública”. É preciso falar em cidadania (art. 1º, I, CF) e dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF) enquanto princípios fundamentais – e balizadores concretos da atuação – da República Federativa do Brasil.
Pensar de outro modo, liberando o poder estatal para agir segundo aquela concepção hobbesiana do “Leviatã”, em que o soberano tudo pode em nome da paz de seus súditos, significaria, neste caso, chancelar o mais irrestrito continuísmo do modelo ditatorial de 1964, com seus atos institucionais em nome da “ordem pública”. E, deste Brasil de exceção, definitivamente, saudades não há!
[1] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 5 de outubro de 1988. Disponível em:
Referências
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