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Burocracia processual penal é máquina louca que funciona sozinha

O artigo aborda a crítica ao sistema de Justiça penal, comparando-o ao universo kafkiano, onde a burocracia se torna opressora e confusa, levando o indivíduo a um estado de impotência diante de processos obscuros e arbitrários. Alexandre Morais da Rosa discute como as decisões judiciais muitas vezes carecem de fundamentação e coerência, refletindo uma opacidade que perpetua iniquidades. A obra sugere que a verdadeira transformação do processo penal requer uma postura democrática e constitucional, afastando-se da tradição inquisitória que ainda predomina.

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“Alguém devia ter caluniado a Josef K., pois sem que ele tivesse feito qualquer mal foi detido certa manhã.”[1] Assim Kafka começa a narrar a história de um cidadão comum apanhado pelas teias da enigmática Justiça descrita pela obra. Uma Justiça fugidia, opaca, opressora, claustrofóbica, contraditória, burocrática, da qual passa a ser um objeto de investigação, “sem que saiba do que é acusado, quem o acusou e como se dá seu processo”. Desde sua prisão, efetuada por funcionários que não sabem os motivos de seus atos, e durante a instrução de seu processo, pouco lhe é explicado.

O absurdo processual narrado por Kafka transcorre mediante a intervenção de assistentes inferiores sempre cientes de suas obrigações e alienados da dimensão do processo, da estrutura, mas cumpridores das ordens expedidas pelo Outro, também desconhecido, ausente, daí seu efeito cativante (Legendre). Apesar de estar detido, pôde manter suas obrigações perante o banco que trabalhava e a detenção lhe faz adentrar num universo de medo, desconfianças e compulsão para descobrir o que estava acontecendo e também como provar a sua inocência: “Não se alvoroce tanto com protestos de inocência porque isso causa má impressão.” Passa por interrogatórios que lhe fogem à compreensão, dizendo no primeiro: “O que eu pretendo é simplesmente tornar pública uma evidente situação de injustiça.” Mas suas tentativas são vãs.

Descobre os meandros dos rituais secretos, das indumentárias, das influências de advogados, intervenientes, e até estranhos — principalmente do poder das mulheres sobre os juízes —, das pequenas corrupções, da vontade dos subalternos de agradar os superiores com o fim de ascensão na carreira, convencendo-se, ao final, de que não vale a pena lutar: a condenação é inexorável. Presume-se condenado, acede ao comando mesmo sem saber os motivos e aceita a execução da decisão: “Mas as mãos de um dos senhores seguraram a garganta de K. enquanto o outro lhe enterrava profundamente no coração a faca e depois a revolvia ali duas vezes. Com os olhos vidrados conseguiu K. ainda ver como os senhores, mantendo-se muito próximos diante de seu rosto e apoiando-se face a face, observaram o desenlace. Disse: – Como um cachorro! – era como se a vergonha fosse sobrevivê-lo.”

Esse processo kafkiano não está longe do que aconteceu em passado recente e do que se dá no mundo da vida, sem meias palavras, daquilo que acontece nos foros em geral, principalmente no júri[2], dado que há um inescondível desconhecimento das regras do jogo, conquanto se mantenha a pose. Por força da (de)formação acadêmica, pouco se sabe da estrutura, mas os assistentes executam as regras com vontade, vontade de cumprir a missão que lhes fora confiada pelo Outro, deixou evidenciado Legendre[3]. Sustenta Zizek que “no cerne da máquina burocrática, existe apenas um vazio, o Nada: a ‘burocracia’ seria uma máquina louca que funciona sozinha.”[4] A ideologia para funcionar precisa ser cínica, não levando a si mesma muito a sério; os que a levam muito a sério, acabam representando uma ameaça. São, no fundo, estigmatizados como dissidentes de um projeto que precisa sobreviver com um discurso subliminar, aberto a poucos, em nome de outra coisa, mantida aos demais, na superfície. Para sobreviver, portanto, no espaço da política, é preciso certa dose de manipulação, de segredos de Estado. Ademais, no centro há um vazio que não pode ser dito, nem tolerado, sob pena de desfazer o fascínio que “a coisa” representa. O poder acaba se manifestando por rituais, contra os quais é preciso resistir, ambivalentemente.

Porque não se pode manejar o Processo Penal sem se estabelecer, antecedentemente, sobre o que se irá debruçar e, apesar de tal movimento absolutamente inarredável, normalmente, deixa-se de lado. Diz Zizek: “O Tribunal é lawless, sem lei, no sentido lógico-formal: é como se a cadeia da conexão ‘normal’ das causas e efeitos fosse posta entre parênteses. Qualquer tentativa de estabelecer o modo de funcionamento do Tribunal por raciocínio lógico está fadada ao fracasso”.

Muitos não se dão conta, por exemplo, de que os paradigmas penais do tipo de injusto são diversos[5] e, como tal, não podem ser utilizados sem um esclarecimento prévio, sob pena de se correr o risco — como de fato ocorre — de se tomar um pelo outro com a finalidade última de condenar, de se impor uma sanção. Dito de outra forma, as decisões no âmbito jurídico, para serem sérias, precisam explicitar os fundamentos: de onde se olham as condutas imputadas, afinal, as decisões deve(ria)m ser fundamentadas[6]. O problema é que, como diz Carcova[7], há patente opacidade do Direito (clique aqui para ler). Não se discute, em regra, a teoria de onde se olha. Coexistem paradigmas penais absolutamente incompatíveis, mas que são manejados retoricamente como se compatíveis fossem. E o pior: a maioria não discute! E quem não o faz não é sério[8], definitivamente. A luta por um mínimo de coerência é uma tarefa que os Tribunais Kafkianos fazem ouvidos moucos. As decisões não respondem ao pressuposto de coerência e integridade (Streck e Dworkin).

A velha tradição inquisitória e antidemocrática forjada (esta é a palavra) pelo pensamento totalitário da primeira metade do século passado se sustenta no dia-a-dia forense porque há uma resistência exacerbada em abandonar o lugar do mestre, a saber, de quem (acha que) sabe o que é melhor para a sociedade e possui o mandato terreno de defenestrar o “mal” na terra, em nome do “bem”, claro. Esquece-se, convenientemente, que muito do sangue derramado neste “açougue humano” chamado Direito Penal deu-se justamente na tentativa de purificar o mundo… e se continua. Por isso, o primeiro giro democrático deve acontecer com a assunção de uma postura constitucional do processo (cada um no seu quadrado), isto é: o julgador não pode produzir prova. Nunca. Qualquer doutrina democrática sabe disso, enquanto boa parte dos livros de todos os dias, “Manuais de caçadores de bruxas imaginárias”, claro, nada sabem. Nem querem saber, porque se acham o centro do mundo… O problema é que eles são quem (de)formam a graduação, são cobrados nos concursos públicos, e dá no que dá…

Se Kafka pode fazer sentido na descrição da realidade forense, então, a leitura do processo como um jogo, em que se pode antecipar as expectativas de comportamento dos jogadores e julgadores, diretos ou indiretos, pode ser uma via de atuação[9]. A grande diferença é que no processo penal os efeitos sem manifestam sobre terceiros, pessoas de carne e osso – iguais a nós mesmos – que se submetem a processos absolutamente kafkianos[10], em que, muitas vezes, o sentido gira sem lei.

Referências

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