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As garantias na etapa pré-processual na Argentina

O artigo aborda as diferenças fundamentais entre os sistemas de justiça criminal do Brasil e da Argentina, especialmente na etapa pré-processual. Enquanto a Argentina adota um modelo acusatório que garante ao acusado o direito à assistência de um defensor público desde o início da investigação, o Brasil ainda mantém um sistema inquisitivo que nega essa proteção, refletindo a necessidade urgente de reformulação no país. Além disso, destaca a importância da celeridade nos processos e a proibição de confissões sem defesa, aspectos que fortalecem os direitos dos acusados na Argentina e que deveriam ser considerados pelo Brasil para garantir um sistema mais justo e eficiente.

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Não é fácil precisar os inúmeros motivos pelos quais o país ainda não reformou seu sistema de justiça criminal. O Brasil é o único país na América Latina que possui um sistema processual inquisitivo, conforme há anos aponta o Centro de Estudios de Justicia de las Américas (Ceja) [1].

Devido ao modelo acusatório já implementado em várias províncias argentinas e à figura do juiz de garantias, cuja implementação no Brasil foi suspensa pelo ministro Luiz Fux do Supremo Tribunal Federal (STF) em decisão proferida em 22 de janeiro de 2020, a etapa de investigação é diferente de como acontece no Brasil.

Equivalente ao nosso Inquérito Policial (IP), na Argentina a chamada Investigación Penal Preparatoria (IPP) poderá ser iniciada por decisão do Ministério Público Fiscal (MP) ou por ação da polícia. Caso seja iniciada pelo MP, contará com a colaboração da polícia que cumprirá com as ordens recebidas. Se for iniciada pela polícia, imediatamente o promotor responsável é comunicado para que ele possa controlar todo o procedimento e dar instruções.

Após o Ministério Público reunir elementos referentes à possibilidade de ser o acusado o autor do delito, irá citá-lo para uma audiência para que tome conhecimento acerca do (s) delito (s) imputado (s). Nesta audiência, chamada audiencia imputativa, será designado um defensor público ao acusado, caso ele não tenha um defensor particular. Não é permitida a realização dessa audiência sem a presença do defensor, já que será nela que se conhecerão os fatos e sua tipificação, as provas que embasam a intimação e seus direitos como investigado.

É neste aspecto que iniciamos as abissais diferenças na etapa pré-processual nos dois países. No Brasil, ao indiciado não lhe assiste o direito a um defensor público, pois nesta etapa não se assegura o contraditório nem a ampla defesa. Isso é um grave erro tendo em vista que, se o indiciado será submetido a um interrogatório, por consequência, deveria ter o direito de ser assistido por um defensor público, não podendo ficar sem defesa técnica frente a poderes como a polícia e Ministério Público [3].

Em Escobedo v. Illinois [4], a Corte Suprema dos Estados Unidos destacou que desde o momento em que o investigado se converte em foco de investigação, o direito de contar com um advogado para assisti-lo constitui exigência constitucional e que, na ausência do defensor, nenhuma declaração obtida em sede policial poderia ser usada durante o processo criminal.

Para Alberto Binder, a figura do defensor público é de extrema necessidade desde a etapa pré-processual e, ademais, correlaciona essa necessidade com o grau de formalização de culpa. Quanto menor for o grau de formalização da culpa, maior é a necessidade de defesa e, portanto, ela deve existir desde o momento que nasce uma acusação, por mais informal que ela seja [5].

O jurista ainda defende que o direito de defesa é inviolável, independentemente da fase processual, pois é o direito de defesa que irá assegurar todos os outros direitos. Sendo assim, seria errado pensar que o direito ao defensor e, portanto, à ampla defesa, só deve ser garantido a partir de determinada etapa processual, isto é, quando a acusação adquire mais robustez ou quando passa a ser uma acusação mais formal.

Binder salienta que embora esta não seja uma etapa que exista o contraditório como a fase de julgamento, deve-se permitir a ampla defesa, sendo possível propor diligências, participar de atos, dentre outros [6].

A defesa, para Ferrajoli, deve contar com a mesma dignidade e ter os mesmos poderes de investigação que o Ministério Público [7]. O enfraquecimento das garantias processuais nos sistemas inquisitivos pode levar ao esvaziamento da produção da prova e à falta de defesa — não apenas no sentido estrito, devido ao impasse da verdade processual, mas também no sentido amplo, devido à admissão de intervenções criminais sem qualquer satisfação da carga probatória pela acusação e sem qualquer controle por parte da defesa [8].

Além disso, ressalta-se que na Argentina o promotor não pode omitir uma prova a favor do acusado, ou seja, se existem elementos probatórios favoráveis ao acusado, o promotor deve disponibilizá-los à defesa, conforme o artigo 73 da Lei 14442 do Ministério Público [9], exatamente como expressado no caso Brady vs Maryland da Corte Suprema dos Estados Unidos [10] em que se estabeleceu que havendo prova que possa eximir a culpa do acusado, o promotor deve entregá-la à defesa (as chamadas provas exculpatórias).

Outro aspecto importante e que contribui para celeridade dos processos é o fato de que a etapa preparatória tem prazo (realmente) fatal. Em Buenos Aires, a IPP não pode durar mais de quatro meses e o processo todo não pode ultrapassar dois anos, conforme artigos 141 e 282 do Código Procesal Penal de Buenos Aires (CPP-BA), caso o investigado esteja preso. Não se concluindo a investigação neste prazo e não havendo indícios para mandar o caso a julgamento, o feito deve ser sobrestado, conforme artigo 323.6, CPP-BA. Havendo elementos de convicção, o promotor elaborará a requisitoria (equivalente à denúncia no Brasil).

Destaca-se que na província de Neuquén, desde o início das investigações na IPP até o veredicto dos jurados e um possível recurso da defesa, a duração estimada desse processo é de oito meses [11].

O caso González Medina da Corte Interamericana de Direitos Humanos descreve a importância da celeridade na etapa investigativa: “[…] o passar do tempo é diretamente proporcional à limitação — e em alguns casos, à impossibilidade – de obtenção das provas e/ou testemunhos, dificultando e até mesmo tornando nula ou ineficaz a prática de diligências probatórias que visam a esclarecer os fatos da investigação, identificar os possíveis autores e partícipes, e determinar as eventuais responsabilidades criminais. Sem prejuízo disso, as autoridades nacionais não estão isentas de fazer todos os esforços necessários para cumprir sua obrigação de investigar” [12].

A proibição da confissão em delegacia é outro aspecto relevante do sistema processual argentino [13]. Em um caso de grande repercussão na província de La Plata devido a uma prisão injusta ainda em fase preliminar, um homem inocente foi acusado de homicídio e ficou preso por quatro anos até que os jurados o absolvessem.

A prisão se deu devido a uma confissão feita na delegacia e sem a presença de um advogado. Conforme ressaltou o defensor do acusado posteriormente: “A declaração de um acusado em sede policial está proibida. Para que uma declaração seja válida, o acusado deve ter a possibilidade de conversar com um defensor, deve ser realizada na presença do promotor e, ainda, devem ler seus direitos” [14].

Desta forma, vemos que alguns elementos destacados da legislação Argentina já na etapa preliminar como a possibilidade de contraditório, a obrigatoriedade de assistência de um defensor público, o estabelecimento de um prazo para conclusão e o controle em caso de confissão em delegacia [15], constituem uma rede de garantias que visam concretizar os direitos e garantias convencionais de maneira efetiva. Já passou da hora do Brasil também se adequar ao modelo acusatório e, finalmente, fazer cumprir integralmente valores tão importantes para um Estado democrático.

[1] GONZÁLEZ, Leonel; FANDIÑO, Marco. Balance y propuestas para la consolidación de la justicia penal adversarial en América Latina. In La Justicia Penal Adversarial en América Latina. Hacía la gestión del conflicto y la fortaleza de la ley. Chile/Santiago, 2018. https://biblioteca.cejamericas.org/handle/2015/5621 Acesso em 05 de dezembro de 2022.

[2] HARFUCH, Andrés. El veredicto del jurado. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2019. p. 696.

[3] Este tema é consonante ao disposto no artigo 8.2.“e” da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) — artigo 8.2: Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas. e) direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei.

[4] Escobedo v. Illinois, 378 U.S. 478 (1964) — U.S. Supreme Court.

[5] BINDER, Alberto M. Introducción al derecho procesal penal. Ad-Hoc — Buenos Aires 1999, p. 156.

[6] BINDER, Alberto. Iniciación al proceso penal acusatorio (Para auxiliares de la Justicia). Publicaciones del Instituto de Estudios Comparados en Ciencias Penales y Sociales (Inecip), 2000.

[7] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón — Teoría del garantismo penal. Madrid: Editorial Trotta, 1995. p 583.

[8] FERRAJOLI, op cit. p. 99.

[9] Capítulo IV – Reglas de actuación — ARTÍCULO 73. — Criterio de actuación. El agente fiscal desarrollará su tarea actuando con criterio objetivo, sin ocultar elementos de prueba favorables a la defensa.

[10] Os réus Brady e Boblit foram acusados de assassinato em primeiro grau e condenados à morte por matar William Brooks, porém o julgamento deles foi realizado separadamente. Brady admitiu sua participação no crime, mas alegou que foi seu parceiro, Boblit, quem realmente cometeu o assassinato. Durante os debates, o advogado de Brady admitiu sua culpa, mas pediu ao júri que desse um veredicto que não fosse tão severo quanto a pena de morte. Antes do julgamento, seu advogado havia pedido à acusação que lhe permitisse examinar as declarações feitas por Boblit que foi julgado primeiro. Foram disponibilizadas várias dessas declarações, mas especificamente a declaração em que Boblit realmente admitiu o assassinato foi retirada pela acusação, só chegando ao conhecimento de Brady depois que ele foi condenado e após sua condenação ter sido mantida pelo Tribunal de Apelação de Maryland. Após o recurso de Brady, o Tribunal considerou que a omissão de provas pela acusação violava o devido processo legal e remarcou o caso para um novo julgamento sobre a questão unicamente da pena, que foi reduzida à prisão perpétua. Brady v. Maryland, 373 U.S. 83 (1963).

[11] Em Neuquén, a IPP tem um prazo máximo de quatro meses e caso não se termine a investigação, extingue-se a ação penal e o feito deve ser sobrestado Arts. 158 e 160.7 del Código Procesal Penal de la Provincia del Neuquén.

[12] Corte IDH — Caso González Medina y Familiares vs. República Dominicana (Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones Y Costas), Sentencia de 27 de febrero de 2012 (considerando 218).

[13] Artigo 8.3, CADH: “A confissão do acusado só é válida se feita sem coação de nenhuma natureza”.

[14] Disponível em: http://www.juicioporjurados.org/2019/09/la-plata-masiva-repercusion-en-el-pais.html Acesso em 06 de dezembro de 2022.

[15] Mais detalhes em: PANZOLDO, Lisandra. O Tribunal do Júri no Brasil e na Argentina. Estudo Comparado. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022.

Referências

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