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Esperança e Libertação na Negrópolis. Salve, Salve!

O artigo aborda a busca por esperança e libertação na vivência da população negra, discutindo a resiliência diante das adversidades sociais e raciais. O autor, Vinícius Assumpção, destaca iniciativas que promovem a transformação social e a luta contra a opressão, além de refletir sobre a construção de uma “negrópolis”, um espaço de resistência e identidade. Através de referências culturais e grupos atuantes, o texto enfatiza a importância de sonhar e cultivar ações que impulsionem um futuro melhor, celebrando a vida e a luta contínua pela justiça.

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LIBERTAÇÃO Eu não vou sucumbir Eu não vou sucumbir Avisa na hora que tremer o chão Amiga, é agora, segura a minha mão (Baiana System, Elza Soares feat. Virgínia Rodrigues)

Janeiro desenha seu fim, que é também começo do ano terceiro a nos comprovar nossa pequenez ante o imprevisível, esse portal que o vírus maldito potencializou. A ausência de controle sobre nossos futuros mostra que “temporalidade” é um marcador impalpável, e que talvez precisemos agarrar com as mãos outras referências que nos permitam projetar um amanhã melhor. Ante o cenário pouco animador (eufemismo presente), o colunista Saulo Mattos, professor, parceiro e irmão, entoa com cuidado e poesia a perturbadora pergunta: “A esperança é uma flor possível de existir nesse jardim desencantado?”1

Não há respostas fáceis para questões tão bem elaboradas. Recebo a indagação como um convite à ebulição do pensamento, transformo em energia e me ponho a passear por esse (nem tão) “jardim” (nem tanto) “desencantado”, à procura dessas flores-esperança, capazes de espalhar seu aroma dentro de nós e dar força para seguir. Nada além de um genuíno – não ingênuo! – desejo de libertação desse ser-negro-e-negra-ser-dor. Não é se iludir, não é se alienar. É viver para além do grilhão, apesar dele; é sonhar com os pés na terra das nossas ancestrais e ostentando o potente “bicão na diagonal” (Salve, Salve, Vilma Reis!)2, cumprindo o mantra de que “nós combinamos de não morrer”3. É lembrar que “a vida sempre vence”4. E como vence…

Com ações importantes desde 2015, a Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, mais conhecida como “Iniciativa Negra”5, cresceu consideravelmente em projeção e realizações nesses últimos anos. O coletivo, fundado por Dudu Ribeiro (Bahia) e Nathália Oliveira (São Paulo), conta com equipe formada por Belle Damasceno, Ana Carolina, Luciene Santana e Maria Clara D’Ávila, dentre outras. O cuidado e dedicação empregados na construção da Iniciativa se revelam na densidade dos seus trabalhos. O tempo de maturação faz com que hoje se possa ver ações e pesquisas decisivas para um debate público sério sobre segurança pública, desnudando, com narrativas, dados e análises, a violência estatal que se materializa no controle racializado de pessoas e comunidades. Uma das suas publicações mais recentes é o relatório “Mesmo que me negue sou parte de você: Racialidade, territorialidade e (r)existência em Salvador”6, um documento que desbanca o senso-comum ao demonstrar como as “dinâmicas de morte”7 se produzem a partir e em razão da raça e território. O título é uma alusão à icônica música “Alegria da Cidade”, do professor Jorge Portugal e Lazzo Matumbi, que canta retumbante “Apesar de tanta dor que nos invade, somos nós, Alegria da Cidade”8. Salve, Salve, Iniciativa!

O perfume vai subindo às narinas, largas por herança, enquanto a busca segue. Lembro do “Elas Existem”9, uma associação feminista interseccional composta por Caroline Bispo, Sandra Regina, Mariana Andrade, Érica Priscila, Nahyá Nogueira, Mayara Albino e Daiane Bally. Seu trabalho potente tem se espraiado pelo país, alcançando mulheres e adolescentes cis e trans. Em 2022, a Elas está desenvolvendo ações (também) no estado do Acre, tradicionalmente invisibilizado, enquanto seu grupo de leitura “Tecendo Caminhos” realizará atividades no Rio de Janeiro, Cuiabá e Porto Alegre – além do próprio Acre. Vão se tecendo caminhos, horizontes, futuros, num devir historicamente marcado pela desesperança. Um projeto que é resistência e revolução, ante a potência estatal que se dedica diariamente ao nosso silenciamento. Como entoa Luedji Luna, enquanto olhares brancos fitam essas mulheres, Elas Existem e provam que estão ali, vivas, ainda que não queiram10. Salve, Salve, Elas Existem!

Com olhos na Bahia, Ceará, Maranhão, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo, a Rede de Observatórios da Segurança11, um “coletivo de coletivos”, tem atuado para ir além dos dados oficiais sobre segurança pública, violência e direitos humanos. A “Rede” tem sido fundamental para compreender não apenas, mas principalmente, aquilo que escapa, expondo a realidade sobre letalidade policial, agressões a mulheres no país, violência contra policiais, prisões e Covid. Destaca-se, contudo, um relatório “atípico”, que traz algo de que costumamos esquecer, marcadas que somos pela vivência de vilipêndio às nossas subjetividades. “A vida resiste: para além dos dados da violência”12 é um trabalho sensível da Rede de Observatórios que está recheado de narrativas de um mundo que o noticiário não conhece e não deseja, da vida que se reinventa para manter acesa a sabedoria que nos foi legada, que nos permitiram chegar aqui – e ir além. Salve, Salve, Rede!

O grupo “Corpos Indóceis e Mentes Livres” é outra bela flor desse jardim. Com mil pétalas, é uma Organização de mulheres negras em defesa da vida de pessoas encarceradas; um coletivo abolicionista que surgiu em 2013 e, como todo projeto que se propõe a construir caminhos para a libertação sob a vigência de um estado genocida, tem sua trajetória marcada por uma série de dificuldades. Apesar disso, sua continuidade e vivacidade são mais uma prova de que sim, podemos esperançar. Em 2021, pudemos acompanhar via Youtube o projeto “Diálogos Abolicionistas”13, encontros potentes voltados à remição da pena de mulheres sentenciadas na Bahia, com participação de Eliana Alves Cruz, Ana Maria Gonçalves, Miriam Alves, Conceição Evaristo, Itamar Vieira Jr. e outras referências da literatura romancista “con(tra)temporânea” do Brasil. Salve, Salve, profa. Denise Carrascosa, coordenadora do projeto!

Há outras flores tantas! Com Juliana Sanches, Joel Luiz Costa e Djeff Amadeus à frente, o Instituto de Defesa da População Negra14 tem se firmado como uma estratégia articulada, bem definida e eficiente de enfrentamento às perseguições criminais forjadas no racismo antinegro do sistema de justiça criminal. O trabalho vem se agigantando, agregando mais e mais profissionais dispostas/os a estar no embate contra o genocídio da população negra (vide atuação na “Chacina do Jacarezinho”). O crescimento do IDPN faz brilhar os olhos pela concreta possibilidade de mudança! Salve, Salve, IDPN!

Em janeiro de 2021, foi nomeada, pela primeira vez na história do Brasil, uma Comissão de Juristas Negras e Negros, composta por vinte grandes nomes15. A Comissão assumiu um trabalho hercúleo e entregou seu relatório final com nada menos que 610 páginas de análises e contribuições propositivas voltadas a combater o racismo institucional16. Uma ação voltada à revisão dessa nossa legislação tecida para a manutenção das desigualdades instauradas pelo processo escravista colonial e reatualizada pelos herdeiros e herdeiras de um rosário de privilégios.

A caminhada se aproxima do fim e encontramos Jaime Amparo Alves, nascido em Ipiaú/BA, afropessimista17 declarado, que escreveu um artigo em que propõe três categorias importantes18. A proposição não surgiu aleatoriamente, mas fruto de longo percurso acadêmico e imersões em diferentes realidades em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Bogotá (Bolívia) e Santiago de Cali (Colômbia). Para ele, há três dimensões políticas, não necessariamente atreladas a um continuum geográfico/espacial. A primeira delas é a biópolis (cidade onde há vida), “esfera da vida civil habitada por pessoas brancas”, ou não-negras, que se funda e depende da antinegritude19 para existir. A segunda é a necrópolis (cidade da morte), “espacialidade física e ontológica habitada por pessoas negras despossuídas de sua vida (civil) plena”. Refina-se mais ainda a definição quando Amparo destaca que “a cidade negra é uma zona onde não há distinção entre passado e futuro (…) porque é uma cidade sob a ordem colonial permanente”.

A última categoria é a que nos interessa hoje, porque organiza e qualifica nosso jardim. É a “negrópolis” (cidade negra). Jaime a define como um “projeto quilombista que surge nas ruas, nas favelas”; que não está necessariamente vinculado a uma organização coletiva e estratégica consciente; e que tem uma certeza: a de que “a lealdade a ordem jurídico-política equivale ao nosso suicídio, porque a cidade é uma construção fundamentalmente antinegra”.

Entre a biópolis e necrópolis, apesar da biópolis e a necrópolis, para romper com a biópolis e a necrópolis, está o nosso jardim. A negrópolis é nosso roseiral, nosso pomar, nosso pedaço de terra em que estamos plantando as sementes que hemos de colher pelas mãos dos que virão. São as estratégias, mais ou menos institucionais, mais ou menos silenciosas, coletivas sempre (ainda que se expressem no ato de uma só pessoa) que nos permitem erigir a humanidade que nos é subtraída, esse poço fundo no qual as diversas formas de morte impostas pela branquitude nos quer eternizar.

Inebriado – e sempre atento! – pelos horizontes de esperança, caminho com meu interlocutor, parceiro de jornada, enquanto respiramos a voz potência-revolução da nossa agora ancestral, Elza Soares. Trovoadas ressoam a nos abraçar, dizendo que “Nós não vamos sucumbir, não vamos sucumbir! Avisa na hora que tremer o chão. Agô agô agô é libertação!”20. Salve, Salve, Elza Soares!

_____

1 (Mais um grande) Texto do irmãozinho Saulo Mattos. Disponível aqui.

2 Disponível aqui.

3 A gente combinamos de não morrer, em Olhos D’água, livro de contos de Conceição Evaristo.

4 Ordem Natural das Coisas, canção de Emicida. Disponível aqui.

5 Saiba mais sobre a Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas. Disponível aqui.

6 Relatório “Mesmo que me negue sou parte de você: Racialidade, territorialidade e (r)existência em Salvador”. Disponível aqui.

7 Expressão especialmente destacada na fala da pesquisadora Luciene Santana. Disponível aqui.

8 Canção “Alegria da Cidade”, composta pelo Professor Jorge Portugal e imortalizada nas grandes vozes de Lazzo Matumbi e Margareth Menezes. Disponível aqui.

9 Sobre o elas existem, ver mais aqui.

10 Canção “Um corpo no mundo, da artista baiana Luedji Luna”. Disponível aqui.

11 Saiba mais sobre a Rede aqui.

12 “A vida resiste: para além dos dados da violência” e outros relatórios da Rede disponíveis aqui.

13 Canal no Youtube do “Corpos Indóceis e Mentes Livres”. Disponível aqui.

14 Saiba mais sobre o IDPN nas redes aqui e aqui.

15 Integraram a Comissão de Juristas: Min. Benedito Gonçalves, João Benedito da Silva, Maria Ivatônia Barbosa dos Santos, Silvio Luiz de Almeida, Adilson Moreira, Ana Claudia Farranha Santana, André Costa, André Luiz Nicolitt, Chiara Ramos, Cleifson Dias Pereira, Dora Lúcia de Lima Bertulio, Elisiane Santos, Fábio Francisco Esteves, José Vicente, Karen Luise Vilanova Batista de Souza, Lívia Casseres, Lívia Santana e Sant’anna Vaz, Rita Cristina de Oliveira, Thiago Amparo e Thula Rafaela de Oliveira Pires.

16 Disponível aqui.

17 Recomendamos esta entrevista com reflexões sobre o Afropessimismo. Disponível aqui.

18 Artigo de Jaime Amparo Alves publicado em espanhol, com título: “Biópolis, necrópolis, negrópolis: notas para um novo léxico político nos estudos sócio-espaciais sobre o racismo”. As passagens seguintes são extraídas dessa produção acadêmica. Disponível aqui.

19 A propósito da “antinegritude”, os textos do prof. João Costa Vargas são essenciais. Sugestão de leitura aqui.

20 Libertação, Composição de Russo Passapusso, cantada por Elza Soares, e BaianaSystem – (Feat. Virgínia Rodrigues). Disponível aqui.

Referências

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