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Eduardo Newton: Ternos e gravatas merecem uma discussão judicial?

O artigo aborda a discussão sobre a obrigatoriedade do uso de terno e gravata nas audiências judiciais, questionando a validade das normas impostas pelo Judiciário sobre a vestimenta dos advogados, sem respaldo legal. O autor, Eduardo Januário Newton, critica a falta de autonomia dos profissionais do direito e a discriminação que essa imposição pode gerar, especialmente ao excluir defensores públicos e membros do Ministério Público. A recente decisão do Conselho Nacional de Justiça, que suspendeu tais exigências, é destacada como um avanço na defesa dos direitos fundamentais e da dignidade profissional.

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Inicialmente, mostra-se necessário fazer uma importante advertência: o presente texto não prima pela neutralidade, quer seja pelo fato de somente os ingênuos ou portadores de má-fé acreditarem nela, quer seja pela própria experiência do subscritor, mais especificamente quando se viu impedido de fazer determinado ato processual — uma audiência — por não trajar um imprescindível adorno para o exercício de suas funções: a gravata.

Se é verdadeira a assertiva de que “o tempo é o senhor da razão”, a recente decisão liminar proferida pelo Conselho Nacional de Justiça nos autos do PCA 00000192-35.2015.2.00.0000 demonstrou o acerto daquele que se recusou a portar uma gravata como condição indispensável para a realização de uma audiência em uma “aprazível” comarca da Baixada Fluminense. Porém, afora a questão do ego ou vaidade saciados, é possível problematizar a dispensa do uso de terno e gravata a partir de outros prismas.

Conforme se depreende da leitura da citada decisão liminar proferida pelo CNJ, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e o Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região emitiram atos normativos que supostamente regulavam o uso de vestes no interior das dependências forenses.

Eis aqui o primeiro questionamento: cabe ao Poder Judiciário se imiscuir na autonomia do advogado? Atualmente, se depara com a questão dos trajes, mas o que impediria, por exemplo, limitar o tamanho dos cortes de cabelo, barbas ou, quiçá um profissional da área jurídica seja ardoroso fã do cineasta José Mojica Marins, o tamanho das unhas? Nesse instante, não são desprezados os costumes existentes; contudo, em razão da norma de eficácia contida prevista no artigo 5º, inciso XIII, Constituição da República, é de se indagar se há algum espaço para a referida invasão do poder público. O papel representativo da legalidade administrativa não pode ser esvaziado, ou seja, mesmo diante da chamada pós-modernidade, a limitação do exercício do poder público única e exclusivamente pela lei não pode ser olvidado.

A despeito da mora estatal em elaborar o Estatuto da Magistratura, vide o disposto no artigo 93, Constituição da República, a Lei Complementar 35/79 – Loman, que é oriunda do período da ditadura civil-militar, não traz qualquer preceito que confira o dever-poder aos órgãos judiciais para disciplinar vestes, sob pena de que atos processuais não sejam realizados.

Ademais, a partir de uma rápida pesquisa nas disciplinas legais de três profissões que atuam no Poder Judiciário — o advogado, o defensor público e o membro do Ministério Público, vide o contido, respectivamente, na Lei 8.906/94[1], Lei Complementar 80/94[2] e Lei Complementar 75/93[3] — verifica-se que a questão do uso de vestimentas é matéria disciplinada ou como prerrogativa institucional ou então como objeto de disciplina interna privativa, o que não alcançaria o Poder Judiciário.

Destarte, não é observado qualquer ato legal que confira poder ao TJ-RJ e ao TRT-1 para elaborar atos normativos que disponham sobre o modo que o advogado deve se trajar. Há, de plano, a visualização do exercício abusivo do poder, o que ensejou a provocação do CNJ pela Ordem dos Advogados do Brasil.

E, no plano hipotético, até mesmo como forma de enriquecer o debate, mesmo que existisse esse permissivo legal, haveria de se questionar a sua compatibilidade constitucional, pois não há qualquer hierarquia entre o Poder Judiciário e as instituições que exercem as funções essenciais à justiça — advocacia pública ou privada, Defensoria Pública e Ministério Público. Ao contrário do que se possa ser visualizado no universo leigo[4], no processo há nítida divisão de trabalho entre os atores que atuam, não existindo qualquer supremacia entre eles. O poder de império de um magistrado somente poderá ser legitimamente exercido quando provocado, o que demonstra a complementariedade entre as funções exercidas por cada personagem.

Ora, se não é possível visualizar qualquer poder hierárquico, deduz-se que não caberia ao Judiciário determinar as vestes de um advogado, defensor público ou membro do Ministério Público. Todavia, o que poderia transparecer o óbvio nem sempre assim se materializa, ainda mais em uma sociedade com fortes traços de autoritarismo e que o “você sabe com quem está falando” infelizmente ainda persiste.

Sob o viés da possibilidade de disciplinar os trajes nas dependências forenses, a imposição, em si, do terno e gravata, ante a ausência de permissivo legal, já se mostra ilícita.

Por outro lado, há ainda um outro aspecto que deve ser ressaltado no agir daquele que deveria, até mesmo de maneira contramajoritária, zelar pelos direitos fundamentais: os órgãos jurisdicionais fluminenses, ao se voltarem exclusivamente para os advogados, adotaram preceito discriminatório sem que exista qualquer razão para tanto. A rigor, somente para os advogados existiria a disciplina legal oriunda do Judiciário, no que se refere especificamente ao uso de paletó e gravata. Aos defensores públicos e membros do Ministério Público restaria, portanto, o limbo normativo causado pela dúvida. Estariam, ou não, dispensados esses dois profissionais do direito dos adornos? E qual seria a razão, caso existisse a dispensa, somente para eles? Imagine-se uma audiência criminal em que advogado particular e defensor público atuem nas respectivas defesas técnicas dos réus, por que somente o advogado seria obrigado a trajar gravata e paletó?

Assim, visualiza-se o acerto do Conselho Nacional de Justiça, que, em sede liminar, suspendeu do universo jurídico a ilícita disciplina sobre trajes nas dependências forenses da justiça comum estadual e justiça do trabalho fluminenses.

No entanto, existe, ainda, um outro ponto a ser explorado e que consiste na análise de o órgão de classe ter se dirigido, mesmo defendendo a ilegalidade da medida administrativa, a uma instância estatal.

Afora a reportagem publicada em suplemento de conhecido jornal[5], não se tem conhecimento de quaisquer outras manifestações públicas da OAB e, principalmente, destinadas ao restante da população contrárias ao uso de terno e gravata nas dependências forenses do TJ-RJ e do TRT-1.

Dito de outra forma: apesar da crítica à disciplina dos trajes em determinados prédios de foros fluminenses, não se conhece qualquer campanha típica da desobediência civil contrária ao uso de terno e gravata. Quiçá por uma espécie de conservadorismo que marca os profissionais do direito, não foi realizado, por exemplo, qualquer dia de paralisação de audiências. Além do recurso ao Conselho Nacional de Justiça, nenhum ato coletivo, público e não-violento[6] foi empregado como forma de angariar a simpatia da opinião pública.

Se de um lado a provocação do Conselho Nacional de Justiça pode ter representado uma estratégica escolha, e que tem se mostrado exitosa, a falta de mobilização para a causa contrária à obrigatoriedade de terno e gravata pode denotar que ainda persiste a visão da cidadania como uma benesse, um favor que é concedido pelo Estado. Em vez de lutas, e a história dos direitos sociais no Brasil é rica nesse aspecto, recorre-se a uma instância estatal. A despeito de se mostrar uma ampliação do conceito de estadania[7] concebido por José Murilo de Carvalho, ainda é possível compreender a necessidade da intervenção estatal na luta por aquilo que determinados grupos se insurgem.

A existência de uma sociedade excludente e autoritária, que, inclusive, é reconhecida constitucionalmente por meio dos objetivos fundamentais impõe enormes desafios ao Poder Público e aos profissionais que militam na área jurídica. Os chamados “doutores” deveriam estar a debater questões complexas para a superação de um processo histórico que envergonha, e não discutir sobre a imprescindibilidade do uso de ternos e gravatas nos cálidos dias de verão fluminense.

[1] “Art. 58. Compete, privativamente, ao Conselho Seccional:

(…)

XI – determinar, com exclusividade, critérios para os trajes dos advogados, no exercício profissional.”

[2] “Art.128. São prerrogativas dos membros da Defensoria Pública do Estado, dentre outras que a lei local estabelecer:

(…)

IV – usar vestes talares e as insígnias privativas da Defensoria Pública;”

[3] “Art. 18. São prerrogativas dos membros do Ministério Público da União:

I- institucionais:

(…)

b) usar vestes talares”;

[4] O defensor público José Augusto Garcia de Sousa traz um relato impactante, que demonstra a visualização de uma supremacia do magistrado na cena processual. “Já faz um bom tempo, certamente mais de 10 anos. Era uma sexta à tardinha quando surgiu no prédio da Defensoria Pública, ao lado do Fórum da avenida Erasmo Braga, uma senhora muito aflita, prestes a ser despejada. A atribuição não era minha (…) mas o colega a quem tocava o caso não estava mais presente. Tratando-se de situação emergencial, que não poderia esperar a passagem do final de semana, pus-me a atender a senhora. Verifique então que talvez nem fosse tão difícil sustar despejo. Fiz uma petição rápida e fui ao Fórum despachá-la. Felizmente, o juiz responsável por aquele processo de despejo ainda se encontrava lá. Voltei ao prédio da Defensoria triunfante. O despejo estava sustado. A senhora, uma pessoa bastante humilde, ficou extremamente agradecida, como era de se esperar. Passou a dizer-me que iria rezar muito por mim e pela minha família. Mais ainda: em sinal de sua profunda gratidão, iria rezar fervorosamente para que um dia eu me tornasse juiz. De maneira delicada, tentei ponderar que a Defensoria me realizava completamente e que jamais ambicionara a magistratura. Mas nada abalava o projeto judicante que a minha nova assistida se dispunha generosamente a viabilizar junto às forças celestiais. Já um pouco impaciente com as minhas esquivas, ela soltou, com magnífica espontaneidade: ‘Não, o senhor não vai ficar só nisso não, Deus não vai deixar! …’”(SOUSA, José A. G. A defensoria pública. In: ABREU, Alzira A. (org.). Caminhos da cidadania. Rio de Janeiro: FGV, 2009. p. 69).

[5] Tribunal de Justiça libera advogados da obrigatoriedade do uso de terno e gravata. Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/verao/tribunal-de-justica-libera-advogados-da-obrigatoriedade-do-uso-de-terno-gravata-15060809 Acesso em 23 de Janeiro de 2014.

[6] Essas três características no verbete “desobediência civil” elaborado por Douglas César Lucas. IN: LUCAS, Douglas C. Desobediência Civil. BARRETO, Vicente Paulo (coord.). Dicionário de filosofia do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 205-208.

[7] A rigor, o conceito de estadania se refere à inserção da pessoa, mais especificamente o homem, nas instituições públicas para ter seus direitos reconhecido os seus direitos. “Bacharéis desempregados, militares insatisfeitos com baixos salários e com minguados orçamentos, operários do Estado em busca de uma legislação social, migrantes urbanos em busca do emprego, todos acabavam olhando para o Estado como porto de salvação. A inserção de todos eles na política se dava mais pela porta do Estado do que pela afirmação dos direitos de cidadão. Era uma inserção que se chamaria com maior precisão de estadania.” (CARVALHO, José Murilo. Pontos e bordados. Escritos de história e política. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 1999. p. 96-97)

Referências

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