Artigos Conjur – Eduardo Newton: Um elevador para chamar de meu!

Artigos Conjur
Artigos Conjur || Eduardo Newton: Um elevador…Início / Conteúdos / Artigos / Conjur
Artigo || Artigos dos experts no Conjur

Eduardo Newton: Um elevador para chamar de meu!

O artigo aborda a insatisfação com a recente inauguração de um elevador privativo para advogados e membros do Ministério Público no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em meio a uma crise sanitária grave. A análise destaca como esse episódio reflete uma mentalidade elitista e patrimonialista que ainda persiste na sociedade brasileira, perpetuando desigualdades ao invés de promover uma cidadania plena, questionando a exclusão e os privilégios imotivados dentro de um ambiente público. A crítica se conecta à história da Revolução Francesa e à luta por direitos universais, chamando atenção para a necessidade de transformação social.

Artigo no Conjur

O mês de julho é significativo para o Ocidente, pois no dia 14 de julho de 1789 se iniciava o processo revolucionário francês, que se mostrou responsável por questionar o exercício do poder absoluto pelo rei. Ao contrário das anteriores revoluções burguesas, a francesa se destacou pela sua ambição universal, vide o documento que a marcou a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão. O tempo demonstrou que o universalismo pregado pelos burgueses revolucionários não incluía as insurgências coloniais, vide o caso do Haiti, tampouco se mostrava capaz de ir além da literalidade, ou seja, somente os homens e cidadãos é que poderiam ser considerados como sujeitos de direitos. O objetivo deste texto é problematizar recente episódio ocorrido na cidade do Rio de Janeiro para saber se transcorridos alguns séculos não persiste uma mentalidade derrubada em solo francês no final do século XVIII.

Ainda com base na história francesa, mas com uma maior proximidade com a realidade brasileira, é sabido que o Rio de Janeiro foi invadido por franceses e que se fixaram na Ilha de Villegagnon. Ali foi estabelecida a França Antártica no século XVI. Hodiernamente, naquele mesmo local se encontra sediada uma unidade educacional da Marinha do Brasil e pode ser vista por qualquer pessoa que tramita pelo Aeroporto Santos Dumont.

Na véspera do aniversário da Queda da Bastilha, ou seja, no dia 13 de julho de 2020, em meio a uma grave crise sanitária provocada pelo novo coronavírus, que, inclusive, impedia o pleno funcionamento do Poder Judiciário fluminense, foi realizada uma tosca e bizarra cerimônia. No sítio eletrônico do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, a solenidade foi assim noticiada:

“O Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (…) inaugurou, nesta segunda feira (13/7), a obra de reforma do hall das Lâminas I, II e Central, no térreo do Fórum Central. Entre as intervenções, destacam-se: (…) designação de um elevador privativo para advogados e membros do Ministério Público, da Defensoria e das Procuradorias (…)” [1].

Nicolas Durand Villegagnon, sem sombra de dúvida, deve ter ficado orgulhoso, pois, ainda que seus patrícios tenham sido expulsos por portugueses aliados aos índios, conseguiu que a mentalidade de uma elite francesa alheia à realidade permanecesse na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. E o pior: essa continuidade se deu mediante autoridades que aplaudiram por agora poderem ter um elevador que pudessem chamar de seu. Um dado não pode ser ignorado, qual seja, já existia o elevador privativo dos magistrados. Os excluídos que não suportavam conviver com a plebe, enfim, obtiveram uma cabine própria. Em vez de se questionar a desigualdade imotivada, foi obtido um privilégio para si. Talvez seja essa a razão para a participação nesse bisonho cerimonial.

A cerimônia — com direito a placa, pois ninguém quer se sentir esquecido em um mundo que é sedento por celebridades — e, o mais grave, a existência de um elevador privativo em um ambiente público necessitam ser compreendidas pela mutação que o conceito de cidadania adquiriu em solo brasileiro.

José Murilo de Carvalho, em seminal obra sobre o processo que a cidadania adquiriu no solo brasileiro, realiza uma idealização em que o primeiro grupo social é composto por doutores, ou seja, os que têm a demanda por elevadores privativos. As considerações trazidas pelo imortal se mostram apropriadas:

“Do ponto de vista da garantia dos direitos civis, os cidadãos brasileiros podem ser divididos em classes. Há os de primeira classe, os privilegiados, os ”doutores’, que estão acima da lei, que sempre conseguem defender seus interesses pelo poder do dinheiro e prestígio social. Os ‘doutores’ são invariavelmente brancos, ricos, bem-vestidos, com formação universitária. São empresários, banqueiros, grandes proprietários rurais e urbanos, políticos, profissionais liberais, alto funcionários. Frequentemente, mantém vínculos importantes nos negócios, no governo, no próprio Judiciário. Esses vínculos permitem que a lei só funcione em seu benefício“ [2].

A fuga dos franceses para o Rio de Janeiro demonstra, assim, a vinda de uma estratificação social que persiste mesmo após o transcurso de muitos séculos. O elevador privativo destaca ainda a figura do patrimonialismo, ou seja, a confusão do público como passível de apropriação. Ora, em uma ordem constitucional que prima pela igualdade, diferenciações sem sentido não deveriam ser toleradas e muito menos naturalizadas. Porém, os beneficiários dessa benesse compuseram a claque que tanto aplaudiu. No que se refere ao patrimonialismo, que também permite fornecer trilha explicativa para esse inusitado bem, mostra-se necessário recorrer aos ensinamentos de Lenio Streck e Marco Aurélio de Carvalho:

”Pelo patrimonialismo, as esferas públicas e privadas se misturam. Por isso, o desembargador acha que manda até no guarda de trânsito, que, por sua vez, manda no mais fraco.

É assim que a coisa funciona.

Assim, a impessoalidade e a imparcialidade vão pelo ralo“ [3].

Há o simbólico, ainda, a ser explorado nessa inusitada de elevador privativo em um prédio público (o acesso se dará mediante uma carteirada?). Esse evento se dá em um momento em que a racionalidade hegemônica é a neoliberal, já no final da década de 90, Frei Betto traz uma marca dessa nova época:

”Antigamente, a gente ouvia falar de marginalização. Você é marginalizado no seu emprego, mas ainda tem esperança de voltar para o centro. É marginalizado na sua escola, mas tem esperança de voltar. É marginalizado na sua Igreja, mas tem a esperança. Essa palavra — marginalização — foi abolida; a palavra, hoje, é ‘exclusão’ — e o excluído não tem esperança de volta. Porque o neoliberalismo é excludente“ [4].

O elevador privativo no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que ensejou surreal cerimônia enquanto famílias eram devastadas pela pandemia da Covid-19, é, portanto, uma mescla do que há de mais atrasado na sociedade brasileira com a atual concepção de um capitalismo predatório.

Patrimonialismo, estratificação e exclusão deveriam ser palavras de advertência no interior da cabine. Assim como se sucedeu em solo francês, essa lógica somente será extinta com a insurgência popular. Em um momento histórico marcado pela derrubada de estátuas, é chegado o momento de remover — eis a temida pena de ostracismo — placas inúteis e pôr fim a privilégios que não deveriam mais existir. No século XVIII, a população faminta não queria brioches. Já no XXI, os sedentos por justiça não veem a necessidade de elevadores privativos de magistrados ou de outras quaisquer outras autoridades. Passado e presente querem uma coisa só: a cidadania plena!

[1] Notícia disponível em: http://www.tjrj.jus.br/noticias/noticia/-/visualizar-conteudo/5111210/7397215

[2] CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil. O longo caminho. 15. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. p. 215

[3] ”Desembargador acha que manda até no guarda de trânsito“, destacam os juristas Lenio Streck e Marco Aurélio. Disponível em: https://www.brasil247.com/brasil/desembargador-acha-que-manda-ate-no-guarda-de-transito-destacam-os-juristas-lenio-streck-e-marco-aurelio

[4] BETTO, Frei. Crise da modernidade e espiritualidade. In: BETTO, Frei; BARBA, Eugenio & COSTA, Jurandir Freire. Ética. Rio de Janeiro: Garamon, 1997. p. 23.

Referências

Relacionados || Outros conteúdos desse assunto
    Mais artigos || Outros conteúdos desse tipo
      Eduardo Newton || Mais conteúdos do expert
        Acesso Completo! || Tenha acesso aos conteúdos e ferramentas exclusivas

        Comunidade Criminal Player

        Elabore sua melhor defesa com apoio dos maiores nomes do Direito Criminal!

        Junte-se aos mais de 1.000 membros da maior comunidade digital de advocacia criminal no Brasil. Experimente o ecossistema que já transforma a prática de advogados em todo o país, com mais de 5.000 conteúdos estratégicos e ferramentas avançadas de IA.

        Converse com IAs treinadas nos acervos de Aury Lopes Jr, Alexandre Morais da Rosa, Rodrigo Faucz, Gabriel Bulhões, Cristiano Maronna e outros gigantes da área. Explore jurisprudência do STJ com busca inteligente, análise de ANPP, depoimentos e muito mais. Tudo com base em fontes reais e verificadas.

        Ferramentas Criminal Player

        Ferramentas de IA para estratégias defensivas avançadas

        • IAs dos Experts: Consulte as estratégias de Aury Lopes Jr, Alexandre Morais da Rosa, Rodrigo Faucz, Gabriel Bulhões e outros grandes nomes por meio de IAs treinadas em seus acervos
        • IAs de Jurisprudência: Busque precedentes com IAs semânticas em uma base exclusiva com mais de 200 mil acórdãos do STJ, filtrados por ministro relator ou tema
        • Ferramentas para criminalistas: Use IA para aplicar IRAC em decisões, interpretar depoimentos com CBCA e avaliar ANPP com precisão e rapidez
        Ferramentas Criminal Player

        Por que essas ferramentas da Criminal Player são diferentes?

        • GPT-4 com curadoria jurídica: Utilizamos IA de última geração, ajustada para respostas precisas, estratégicas e alinhadas à prática penal
        • Fontes verificadas e linkadas: Sempre que um precedente é citado, mostramos o link direto para a decisão original no site do tribunal. Transparência total, sem risco de alucinações
        • Base de conhecimento fechada: A IA responde apenas com conteúdos selecionados da Criminal Player, garantindo fidelidade à metodologia dos nossos especialistas
        • Respostas com visão estratégica: As interações são treinadas para seguir o raciocínio dos experts e adaptar-se à realidade do caso
        • Fácil de usar, rápido de aplicar: Acesso prático, linguagem clara e sem necessidade de dominar técnicas complexas de IA
        Comunidade Criminal Player

        Mais de 5.000 conteúdos para transformar sua atuação!

        • Curso Teoria dos Jogos e Processo Penal Estratégico: Com Alexandre Morais da Rosa e essencial para quem busca estratégia aplicada no processo penal
        • Curso Defesa em Alta Performance: Conteúdo do projeto Defesa Solidária, agora exclusivo na Criminal Player
        • Aulas ao vivo e gravadas toda semana: Com os maiores nomes do Direito Criminal e Processo Penal
        • Acervo com 130+ Experts: Aulas, artigos, vídeos, indicações de livros e materiais para todas as fases da defesa
        • IA de Conteúdos: Acesso a todo o acervo e sugestão de conteúdos relevantes para a sua necessidade
        Comunidade Criminal Player

        A força da maior comunidade digital para criminalistas

        • Ambiente de apoio real: Conecte-se com colegas em fóruns e grupos no WhatsApp para discutir casos, compartilhar estratégias e trocar experiências em tempo real
        • Eventos presenciais exclusivos: Participe de imersões, congressos e experiências ao lado de Aury Lopes Jr, Alexandre Morais da Rosa e outros grandes nomes do Direito
        • Benefícios para membros: Assinantes têm acesso antecipado, descontos e vantagens exclusivas nos eventos da comunidade

        Assine e tenha acesso completo!

        • 75+ ferramentas de IA para estratégias jurídicas com base em experts e jurisprudência real
        • Busca inteligente em precedentes e legislações, com links diretos para as fontes oficiais
        • Curso de Alexandre Morais da Rosa sobre Teoria dos Jogos e Processo Penal Estratégico
        • Curso Defesa em Alta Performance com Jader Marques, Kakay, Min. Rogério Schietti, Faucz e outros
        • 5.000+ conteúdos exclusivos com aulas ao vivo, aulas gravadas, grupos de estudo e muito mais
        • Fóruns e grupos no WhatsApp para discutir casos e trocar experiências com outros criminalistas
        • Condições especiais em eventos presenciais, imersões e congressos com grandes nomes do Direito
        Assinatura Criminal Player MensalAssinatura Criminal Player SemestralAssinatura Criminal Player Anual

        Para mais detalhes sobre os planos, fale com nosso atendimento.

        Quero testar antes

        Faça seu cadastro como visitante e teste GRÁTIS por 7 dias

        • Ferramentas de IA com experts e jurisprudência do STJ
        • Aulas ao vivo com grandes nomes do Direito Criminal
        • Acesso aos conteúdos abertos da comunidade

        Já sou visitante

        Se você já é visitante e quer experimentar GRÁTIS por 7 dias as ferramentas, solicite seu acesso.