Artigos Conjur – O júri e a discussão do direito de posse e propriedade

Artigos Conjur
Artigos Conjur || O júri e a discussão do dir…Início / Conteúdos / Artigos / Conjur
Artigo || Artigos dos experts no Conjur

O júri e a discussão do direito de posse e propriedade

O artigo aborda a evolução histórica do Tribunal do Júri, destacando seu uso original em disputas civis relacionadas à posse e propriedade, antes mesmo de sua aplicação em casos criminais. Os autores explicam como os júris se tornaram instrumentos de justiça, permitindo que cidadãos locais decidissem sobre conflitos territoriais, promovendo a pacificação e evitando a violência. Além disso, discutem a importância dos writs e a transição do júri como prova para a solução de litígios possessórios, enfatizando seu papel crucial na promoção da justiça social.

Artigo no Conjur

Quando ouvimos falar algo a respeito do Tribunal do Júri, inconscientemente fazemos a ligação do tema a um julgamento de um crime, especialmente um crime doloso contra a vida. Porém, muitos desconhecem que historicamente os julgamentos populares eram — no direito inglês — utilizados para a solução de demandas cíveis, especialmente as conectadas com a posse e propriedade, estruturando-se antes mesmo da edificação dos júris para casos criminais [1].

As lides envolvendo disputas de terra entre vizinhos era algo extremamente significativo não apenas pela importância econômica da questão, mas acima de tudo porque as discussões poderiam evoluir para a prática de atos de violência caso não fosse pacificada de maneira célere. Ademais, originária de uma tradição germânica, era função do rei não apenas garantir a proteção do reino, mas igualmente promover a justiça e a paz entre os cidadãos. Daí a importância dos writs [2] — ordens que expressavam a vontade do rei — e da utilização de julgadores locais que conhecessem a terra objeto da disputa.

A administração da justiça feita diretamente pelo rei, numa forma de ordem executiva, era um meio muito mais rápido e eficaz do que acionar as cortes senhoriais e, apesar de estar largamente ligada a litígios de posse e propriedade, também abrangia a restituição de gado, peixe, a injusta cobrança de pedágios, dentre outras demandas. Outrossim, a expedição do writ envolvia o pagamento de uma taxa para a coroa, o que igualmente fomentava o interesse do rei nessa forma de administração da justiça.

O writ praecipe, reconhecido por muitos como a origem do common law writs and actions, tinha uma estrutura simples e expressava um comando real escrito e selado para a solução de uma pendência, sem a necessidade de uma justificação para a decisão proferida ou de um contraditório prévio:

Com o passar do tempo, o writ sofreu uma alteração na sua função, deixando de ser um instrumento de solução do caso, para se transformar num meio de convocação das partes para o início de uma demanda judicial perante uma corte real: “The writ became a jurisdictional device, a ticket of entry to the royal courts” [4].

Cada tipo de writ iniciava uma forma de ação que abraçava meios típicos de prova. O writ of right, por exemplo, utilizado para a discussão do direito de propriedade, se valia do duelo (trial by battle) para a solução do litígio. Nesse caso, de maneira diversa do que ocorria com a appeal of felony (procedimento utilizado para os casos criminais), nos pleitos cíveis as partes não lutavam pessoalmente, mas escolhiam seus campeões que atuam em seu lugar e muitas vezes chegavam a um acordo antes que a luta chegasse ao fim. O combate permaneceu sendo utilizado mesmo após a abolição das ordálias (1215) e, de acordo com Blackstone, o último duelo parece ter ocorrido na Inglaterra em 1638 [5].

Porém, com a grand assize (1179), Henrique 2º introduziu a possibilidade de o acusado se valer do júri para a solução de lides possessórias, introduzindo uma maior racionalidade e justiça nas decisões. Nesse caso, a parte demandada pelo writ of right acionava a justiça régia para escapar das cortes senhoriais e do trial by battle. Com isso, quatro cavaleiros eram convocados pelo sheriff para que escolhessem outros doze outros cavaleiros, os quais, sob juramento, afirmavam quem tinha o melhor direito, servindo o júri como um meio de prova [6]. Consoante Blackstone, a grand assize ou o great jury era então composto por dezesseis membros [7]. De fato, o jury trial se tornou o instrumento característico para fazer a melhor prova do direito de propriedade, proporcionando uma maior estabilidade nos conflitos envolvendo a terra:

“The Constitutions of Clarendon in 1164 provided the precedent for turning to twelve men of the countryside for a verdict on a question concerning property rights. Such questions, especially in relation to the possession and title of land, produced the most common and surely the most importante civil actions. For their solution Henry II gradually introduced what became the trial jury” [8].

Por seu turno, o writ of novel disseisin (1166), ou, recent dispossession era utilizado para discutir o direito de quem foi desapossado de seus domínios, consagrando a premissa de que “ninguém poderia ser evicto ou desapossado de sua terra sem a aprovação pelo júri” [9]. Nessa hipótese, após a emissão tempestiva de um writ, um grupo de grupo de doze vizinhos (good and lawful men) deveria atestar perante um representante do rei (king’s justices) se o demandado teria realmente desapossado a terra de maneira injustificada. Em sendo a resposta positiva, a posse da área era restituída ao autor de maneira célere, sem uma discussão mais aprofundada:

“Henry II’s new action, the assize of novel disseisin, worked on these lines. One who had been ejected from his land was first of all to be restored. When he has been restored, and not until then, the rights and the wrongs of the case can be brought into question” [10].

O writ of novel disseisin não era o instrumento apropriado para a discussão do direito de propriedade, por isso, caso o demandado fosse obrigado a deixar a área, nada lhe impedia de ingressar com o writ of right e dar início a uma discussão envolvendo o direito de propriedade. Contudo, vemos que em ambos os writs, o júri era chamado para servir de prova para a melhor decisão a respeito dos fatos e do direito (propriedade e posse).

Por fim, na assize of mort d’ancestor (prevista em 1176 na Assize of Northampton), um júri composto por doze homens era convocado para atestar se o ancestral (restringindo-se a descendência ao pai, mãe, irmão, irmã, tio e tia) falecido era o proprietário da terra invadida e em disputa; se ele morreu depois de ter a terra invadida; e se o autor era o seu herdeiro. Concretamente relacionada com o direito hereditário, a assize of mort d’ancestor era uma barreira utilizada contra o senhor-feudal que não reconhecia o direito do sucessor à terra utilizada pelo seu vassalo.

Nesse contexto, resta evidenciada a importância do júri como um instrumento de prova, de julgamento e, acima de tudo, de pacificação social, pois a solução do caso era, em última análise, promovida por pessoas locais que conheciam melhor direito de posse e propriedade. Dessa forma, longe do arbítrio da imposição tirana de uma decisão real por quem desconhecia as minúcias de seu vasto domínio, o rito do júri foi sabiamente utilizado como a melhor maneira de promover justiça e legitimar a decisão real.

[1] “The trial jury in civil cases developed first, providing a model that could later be copied in criminal cases.” (LEVY, Leonard W. The Palladium of Justice. Origins of Trial by Jury. Chicago: Invan R. Dee, 1999, p. 13).

[2] O significado principal do termo writ (brevia) é simplesmente “writing” (escrita) (LANGBEIN, John H.; LERNER, Renée Lettow; SMITH, Bruce P. History of the Common Law. The Development of Anglo-American Legal Institutions. Estados Unidos: Aspen Publishers, 2009, p. 93). Conforme descreve Plucknett, eles eram originariamente ordens administrativas endereçadas para um suposto criminoso ou para um representante da coroa (sheriff) fizesse justiça no caso concreto, de tal maneira que o rei não mais precisasse se preocupar com a demanda. A desobediência a uma ordem real implicava numa punição administrada por uma corte régia caso uma justa causa não fosse apresentada. (PLUCKNETT, Theodore F. T. Inglaterra: A Consise History of the Common Law — obra digital — , 2010, posição 8.202).

[3] LANGBEIN, John H.; LERNER, Renée Lettow; SMITH, Bruce P. History of the Common Law. The Development of Anglo-American Legal Institutions. Estados Unidos: Aspen Publishers, 2009, p. 87.

[4] LANGBEIN, John H.; LERNER, Renée Lettow; SMITH, Bruce P. History of the Common Law. The Development of Anglo-American Legal Institutions. Estados Unidos: Aspen Publishers, 2009, p. 92.

[5] BLACKSTONE, William, Commentaries on the Laws of England. Vol. III Of Private Wrongs. Chicago & London: The University of Chicago Press, 2002, p. 146

[6] “Ranulf de Glanville, chief justice to Henry II, overpraised the procedure of the Grand Assize as a ‘royal benefit whereby life and property are so wholesomely cared for that men can avoid the chance of the combat and yet keep whatever they have in their freeholds’”. (LEVY, Leonard W. The Palladium of Justice. Origins of Trial by Jury. Chicago: Invan R. Dee, 1999, p. 15).

[7] BLACKSTONE, William, Commentaries on the Laws of England. Vol. III Of Private Wrongs. Chicago & London: The University of Chicago Press, 2002, p. 151.

[8] LEVY, Leonard W. The Palladium of Justice. Origins of Trial by Jury. Chicago: Invan R. Dee, 1999, p. 13.

[9] Id.

[10] PLUCKNETT, Theodore F. T. Inglaterra: A Consise History of the Common Law (obra ditial), 2010, posição 8281.

Referências

Relacionados || Outros conteúdos desse assunto
    Mais artigos || Outros conteúdos desse tipo
      Daniel Avelar || Mais conteúdos do expert
        Denis Sampaio || Mais conteúdos do expert
          Rodrigo Faucz || Mais conteúdos do expert
            Acesso Completo! || Tenha acesso aos conteúdos e ferramentas exclusivas

            Comunidade Criminal Player

            Elabore sua melhor defesa com apoio dos maiores nomes do Direito Criminal!

            Junte-se aos mais de 1.000 membros da maior comunidade digital de advocacia criminal no Brasil. Experimente o ecossistema que já transforma a prática de advogados em todo o país, com mais de 5.000 conteúdos estratégicos e ferramentas avançadas de IA.

            Converse com IAs treinadas nos acervos de Aury Lopes Jr, Alexandre Morais da Rosa, Rodrigo Faucz, Gabriel Bulhões, Cristiano Maronna e outros gigantes da área. Explore jurisprudência do STJ com busca inteligente, análise de ANPP, depoimentos e muito mais. Tudo com base em fontes reais e verificadas.

            Ferramentas Criminal Player

            Ferramentas de IA para estratégias defensivas avançadas

            • IAs dos Experts: Consulte as estratégias de Aury Lopes Jr, Alexandre Morais da Rosa, Rodrigo Faucz, Gabriel Bulhões e outros grandes nomes por meio de IAs treinadas em seus acervos
            • IAs de Jurisprudência: Busque precedentes com IAs semânticas em uma base exclusiva com mais de 200 mil acórdãos do STJ, filtrados por ministro relator ou tema
            • Ferramentas para criminalistas: Use IA para aplicar IRAC em decisões, interpretar depoimentos com CBCA e avaliar ANPP com precisão e rapidez
            Ferramentas Criminal Player

            Por que essas ferramentas da Criminal Player são diferentes?

            • GPT-4 com curadoria jurídica: Utilizamos IA de última geração, ajustada para respostas precisas, estratégicas e alinhadas à prática penal
            • Fontes verificadas e linkadas: Sempre que um precedente é citado, mostramos o link direto para a decisão original no site do tribunal. Transparência total, sem risco de alucinações
            • Base de conhecimento fechada: A IA responde apenas com conteúdos selecionados da Criminal Player, garantindo fidelidade à metodologia dos nossos especialistas
            • Respostas com visão estratégica: As interações são treinadas para seguir o raciocínio dos experts e adaptar-se à realidade do caso
            • Fácil de usar, rápido de aplicar: Acesso prático, linguagem clara e sem necessidade de dominar técnicas complexas de IA
            Comunidade Criminal Player

            Mais de 5.000 conteúdos para transformar sua atuação!

            • Curso Teoria dos Jogos e Processo Penal Estratégico: Com Alexandre Morais da Rosa e essencial para quem busca estratégia aplicada no processo penal
            • Curso Defesa em Alta Performance: Conteúdo do projeto Defesa Solidária, agora exclusivo na Criminal Player
            • Aulas ao vivo e gravadas toda semana: Com os maiores nomes do Direito Criminal e Processo Penal
            • Acervo com 130+ Experts: Aulas, artigos, vídeos, indicações de livros e materiais para todas as fases da defesa
            • IA de Conteúdos: Acesso a todo o acervo e sugestão de conteúdos relevantes para a sua necessidade
            Comunidade Criminal Player

            A força da maior comunidade digital para criminalistas

            • Ambiente de apoio real: Conecte-se com colegas em fóruns e grupos no WhatsApp para discutir casos, compartilhar estratégias e trocar experiências em tempo real
            • Eventos presenciais exclusivos: Participe de imersões, congressos e experiências ao lado de Aury Lopes Jr, Alexandre Morais da Rosa e outros grandes nomes do Direito
            • Benefícios para membros: Assinantes têm acesso antecipado, descontos e vantagens exclusivas nos eventos da comunidade

            Assine e tenha acesso completo!

            • 75+ ferramentas de IA para estratégias jurídicas com base em experts e jurisprudência real
            • Busca inteligente em precedentes e legislações, com links diretos para as fontes oficiais
            • Curso de Alexandre Morais da Rosa sobre Teoria dos Jogos e Processo Penal Estratégico
            • Curso Defesa em Alta Performance com Jader Marques, Kakay, Min. Rogério Schietti, Faucz e outros
            • 5.000+ conteúdos exclusivos com aulas ao vivo, aulas gravadas, grupos de estudo e muito mais
            • Fóruns e grupos no WhatsApp para discutir casos e trocar experiências com outros criminalistas
            • Condições especiais em eventos presenciais, imersões e congressos com grandes nomes do Direito
            Assinatura Criminal Player MensalAssinatura Criminal Player SemestralAssinatura Criminal Player Anual

            Para mais detalhes sobre os planos, fale com nosso atendimento.

            Quero testar antes

            Faça seu cadastro como visitante e teste GRÁTIS por 7 dias

            • Ferramentas de IA com experts e jurisprudência do STJ
            • Aulas ao vivo com grandes nomes do Direito Criminal
            • Acesso aos conteúdos abertos da comunidade

            Já sou visitante

            Se você já é visitante e quer experimentar GRÁTIS por 7 dias as ferramentas, solicite seu acesso.