Artigos Migalhas – A Constituição está ultrapassada para o processo penal? Uma provocativa reflexão “dos Miranda Coutinho”

Artigos Migalhas
Artigos Migalhas || A Constituição está ultrapa…Início / Conteúdos / Artigos / Migalhas
Artigo || Artigos dos experts no Migalhas

A Constituição está ultrapassada para o processo penal? Uma provocativa reflexão “dos Miranda Coutinho”

O artigo aborda a reflexão provocativa sobre a atualidade da Constituição em relação ao processo penal, destacando a importância de alinhar o Código Penal e o Código de Processo Penal aos princípios constitucionais. Os autores discutem como a superação das normas ultrapassadas e a influência da Constituição são essenciais para garantir direitos fundamentais e um sistema de justiça efetivo e humano, especialmente diante da realidade do sistema prisional brasileiro. A análise critica ainda a espetacularização do processo penal e a necessidade de um rigoroso respeito à lei e à Constituição para preservar a democracia.

Artigo no Migalhas

Este foi o título de uma conferência1 proferida em 26/05/23 no XX Congresso Internacional de Direito Constitucional, realizado em Florianópolis.

A áspera provocação causou (e causa) estranheza, justamente pelo fim em si ou, ainda, àquilo que a Constituição da República e o Processo Penal se destinam e representam; ou deveriam.

Apesar de incômoda, tal reflexão vai ao encontro do que já disse Clarice Lispector: “O óbvio é a verdade mais difícil de se enxergar”.

O tema permeia a ideia de que, por estabelecer os princípios fundamentais que regem a organização do Estado e os direitos e garantias dos cidadãos, a Constituição da República é a lei máxima de um país e, por ser o documento basilar do ordenamento jurídico, possui uma relação intrínseca com o Código de Processo Penal. É pela aplicação deste que melhor se mede a efetivação daquela e, portanto, o grau de civilidade de um povo, como já ensinaram tantos grandes autores.

Não obstante, a Carta Cidadã de 1988 consolidou uma série de direitos e garantias aplicáveis ao Processo Penal. Ela desempenha, assim, uma função essencial ao estabelecer as bases e os limites para o exercício do poder punitivo do Estado, garantindo a observância dos direitos individuais e, sobretudo, o devido processo legal.

Nesta senda, percebe-se a clara e impositiva influência constitucional no funcionamento do sistema de justiça criminal. Destacam-se o direito à ampla defesa, ao contraditório, à presunção de inocência, ao devido processo legal, ao princípio do juiz natural e à inadmissibilidade das provas ilícitas, dentre outros.

Além disso, a Constituição estabelece que a prisão antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória deva ser medida excepcional, reservada aos casos de extrema necessidade, respeitando-se o princípio da presunção de inocência.

Neste avançar, outro aspecto importante diz com a organização e competência dos órgãos responsáveis pela condução do processo penal onde, constitucionalmente, estabelece-se a divisão de competências entre a União, os Estados e o Distrito Federal. Define-se, também, quais são os órgãos responsáveis para cada etapa da chamada persecução penal, como a Polícia, o Ministério Público e o Poder Judiciário.

Todavia, ante o atual momento punitivista e de ultrajante espetacularização do Processo Penal brasileiro (Casara), tudo aquilo narrado até aqui (seja nos parágrafos anteriores ou desde 1964), soam como utópicos; ou meramente “de uso tópico”.

Por isso, a provocação, com ares de afirmação: “A Constituição está ultrapassada para o Processo Penal?”

A resposta renderia um livro, mas em pura síntese, consiste em pensar uma proposta de Código Penal e de Código de Processo Penal alinhados com a Constituição e não o contrário. Não se deve olvidar que o Código Penal é de 1940, e foi construído para servir de controle às novas relações de trabalho que se impunham à época.

Porém, o chamado “código das penas” está desatualizado socialmente e dogmaticamente. Prova disto é o reflexo da persecução penal visto no sistema prisional: superlotado, desumano e ineficaz; enfim, um “estado de coisas inconstitucional”, como já declarou o STF. Ou seja, é uma imagem insana de que a sociedade atual permaneceria inalterada desde 1940.

Em contrapartida, o correto seriam Códigos Penal e Processual Penal cidadãos, alinhados com a – tida – Constituição cidadã; a mesma que impõe a dignidade da pessoa humana, o devido processo legal e o estado democrático de direito.

No entanto, basta uma rápida olhada no “retrovisor” a partir da “Lava-Jato” e outras que seguem fazendo estrada por aí afora. Afinal, não se pode preterir um lado para “preferir” outro, em um – mafioso – “girar de metralhadora”, passando por cima da lei e da Constituição da República. “A isonomia, porém, não faz distinção entre os cidadãos e isso é imprescindível para se deitar a luz constitucional sobre todos”2.

É preciso, então, levar a lei a sério (Dworkin), fazendo-a viva e, de tal modo, marcando a isonômica máxima: todo mundo entra no jogo se preciso for, mas sempre conforme a lei. E se por qualquer razão alguém admitir que o jogo seja à margem da lei, depois não poderá reclamar se tal “força estranha” vier contra seus interesses. A Lava-Jato e o que se tem passado hoje são bons exemplos. Durante a Lava Jato (visivelmente dirigida a um escopo político), alguns aplaudiam e outros choravam e reclamavam. Girada a roda da vida, mudado o ambiente político, os que aplaudiam agora choram e reclamam. Resta – disso tudo – uma conclusão bem clara! Se todos (os dois lados) reclamam, não é possível que estejam todos errados e, de fato, não estão. Portanto, o holofote deve iluminar a fonte das reclamações: a decisão fora da Constituição e da lei, em espaço de exceção, como ponto fora da curva, fruto de mera interpretação criativa (Ferrua) e solipsista (Streck). Isso, como sabem todos, tem sido insuportável. Afinal, produz desconforto e grande insegurança jurídica.

Doutra parte, sob as linhas traçadas em 2021, “neste escopo, afloram-se aqui as semelhanças com os tempos experienciados no Brasil, onde a clara cizânia ideológica entre os poderes constituídos, no constante atrito entre normas pelo conflituoso uso de princípios do direito para justificar, ou arguir, ‘razões desarrazoadas’, que o aviltamento a preceitos basilares de uma democracia não parecem ser meras coincidências às características do ‘Teatro do Absurdo’. Afinal, como pode tamanha voracidade em dar sentido às próprias interpretações do texto legal no afã de provar justamente o contrário do que se fala? Descumprir a Constituição alegando estar defendendo-a é, no mínimo, inquietante!3

Em conclusão, não há espaço para a democracia fora do respeito à Constituição e à lei, mormente em se tratando da jurisdição, ”ossia potere dei giusdicenti“4. Há, atrás disso e para além da ideologia, algo demais importante e que deve ser lembrado sempre. A lei protege o juiz e lhe serve de escudo, como sempre se soube. Está em Alberto Camon, ao falar de Massimo Nobili, grande catedrático de processo penal de Bologna, então falecido (trata-se da publicação da obra póstuma):

”Quem lhe conheceu e teve condição de falar com ele desses temas, entende imediatamente que o autor – juiz na república de San Marino – aqui está reservando o fruto de uma experiência pessoal: a lei processual, frequentemente considerada pela nossa magistratura como uma intolerável diminuição dos poderes superiores, era, ao contrário, vivida pelo Nobili-juiz como um conforto capaz de aliviar um fardo pesado demais.“5

Há de se esperar que o exemplo do Nobili-juiz seja acolhido por todos e praticado por aqueles que desejam a democracia.

__________

1 Tal conferência foi proferida pelo prof. Dr. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, da qual se faz aqui uma pequena síntese.

2 MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. Revista de Informação Legislativa do Senado Federal, v. 46, n. 183, p. 114, jul./set. 2009.

3 MIRANDA COUTINHO, Thiago de. O ”Teatro do Absurdo constitucional“ e seus novos episódios à brasileira; a previsibilidade do hoje ante o epílogo do óbvio. Migalhas, 27/04/2022. Disponível aqui. Acesso em: 30/05/2023.

4 CORDERO, Franco. Guida alla procedura penale. Torino: UTET, 1986, p. 109: ”Ou seja, poder do juiz (de dizer o direito)“ (Tradução livre).

5 CAMON, Alberto. In NOBILI, Massimo. Processo penale e ricerca della verità. In Scritti inediti. Alberto Camon (a cura di). Milano: Wolters Kluwer-CEDAM, 2021, p. 91.

Referências

Relacionados || Outros conteúdos desse assunto
    Mais artigos || Outros conteúdos desse tipo
      Jacinto Coutinho || Mais conteúdos do expert
        Acesso Completo! || Tenha acesso aos conteúdos e ferramentas exclusivas

        Comunidade Criminal Player

        Elabore sua melhor defesa com apoio dos maiores nomes do Direito Criminal!

        Junte-se aos mais de 1.000 membros da maior comunidade digital de advocacia criminal no Brasil. Experimente o ecossistema que já transforma a prática de advogados em todo o país, com mais de 5.000 conteúdos estratégicos e ferramentas avançadas de IA.

        Converse com IAs treinadas nos acervos de Aury Lopes Jr, Alexandre Morais da Rosa, Rodrigo Faucz, Gabriel Bulhões, Cristiano Maronna e outros gigantes da área. Explore jurisprudência do STJ com busca inteligente, análise de ANPP, depoimentos e muito mais. Tudo com base em fontes reais e verificadas.

        Ferramentas Criminal Player

        Ferramentas de IA para estratégias defensivas avançadas

        • IAs dos Experts: Consulte as estratégias de Aury Lopes Jr, Alexandre Morais da Rosa, Rodrigo Faucz, Gabriel Bulhões e outros grandes nomes por meio de IAs treinadas em seus acervos
        • IAs de Jurisprudência: Busque precedentes com IAs semânticas em uma base exclusiva com mais de 200 mil acórdãos do STJ, filtrados por ministro relator ou tema
        • Ferramentas para criminalistas: Use IA para aplicar IRAC em decisões, interpretar depoimentos com CBCA e avaliar ANPP com precisão e rapidez
        Ferramentas Criminal Player

        Por que essas ferramentas da Criminal Player são diferentes?

        • GPT-4 com curadoria jurídica: Utilizamos IA de última geração, ajustada para respostas precisas, estratégicas e alinhadas à prática penal
        • Fontes verificadas e linkadas: Sempre que um precedente é citado, mostramos o link direto para a decisão original no site do tribunal. Transparência total, sem risco de alucinações
        • Base de conhecimento fechada: A IA responde apenas com conteúdos selecionados da Criminal Player, garantindo fidelidade à metodologia dos nossos especialistas
        • Respostas com visão estratégica: As interações são treinadas para seguir o raciocínio dos experts e adaptar-se à realidade do caso
        • Fácil de usar, rápido de aplicar: Acesso prático, linguagem clara e sem necessidade de dominar técnicas complexas de IA
        Comunidade Criminal Player

        Mais de 5.000 conteúdos para transformar sua atuação!

        • Curso Teoria dos Jogos e Processo Penal Estratégico: Com Alexandre Morais da Rosa e essencial para quem busca estratégia aplicada no processo penal
        • Curso Defesa em Alta Performance: Conteúdo do projeto Defesa Solidária, agora exclusivo na Criminal Player
        • Aulas ao vivo e gravadas toda semana: Com os maiores nomes do Direito Criminal e Processo Penal
        • Acervo com 130+ Experts: Aulas, artigos, vídeos, indicações de livros e materiais para todas as fases da defesa
        • IA de Conteúdos: Acesso a todo o acervo e sugestão de conteúdos relevantes para a sua necessidade
        Comunidade Criminal Player

        A força da maior comunidade digital para criminalistas

        • Ambiente de apoio real: Conecte-se com colegas em fóruns e grupos no WhatsApp para discutir casos, compartilhar estratégias e trocar experiências em tempo real
        • Eventos presenciais exclusivos: Participe de imersões, congressos e experiências ao lado de Aury Lopes Jr, Alexandre Morais da Rosa e outros grandes nomes do Direito
        • Benefícios para membros: Assinantes têm acesso antecipado, descontos e vantagens exclusivas nos eventos da comunidade

        Assine e tenha acesso completo!

        • 75+ ferramentas de IA para estratégias jurídicas com base em experts e jurisprudência real
        • Busca inteligente em precedentes e legislações, com links diretos para as fontes oficiais
        • Curso de Alexandre Morais da Rosa sobre Teoria dos Jogos e Processo Penal Estratégico
        • Curso Defesa em Alta Performance com Jader Marques, Kakay, Min. Rogério Schietti, Faucz e outros
        • 5.000+ conteúdos exclusivos com aulas ao vivo, aulas gravadas, grupos de estudo e muito mais
        • Fóruns e grupos no WhatsApp para discutir casos e trocar experiências com outros criminalistas
        • Condições especiais em eventos presenciais, imersões e congressos com grandes nomes do Direito
        Assinatura Criminal Player MensalAssinatura Criminal Player SemestralAssinatura Criminal Player Anual

        Para mais detalhes sobre os planos, fale com nosso atendimento.

        Quero testar antes

        Faça seu cadastro como visitante e teste GRÁTIS por 7 dias

        • Ferramentas de IA com experts e jurisprudência do STJ
        • Aulas ao vivo com grandes nomes do Direito Criminal
        • Acesso aos conteúdos abertos da comunidade

        Já sou visitante

        Se você já é visitante e quer experimentar GRÁTIS por 7 dias as ferramentas, solicite seu acesso.