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Uma proposta inusual contra a corrupção: zerar o jogo e recomeçar

O artigo aborda a proposta de “zerar o jogo” como uma abordagem inovadora para combater a corrupção, sugerindo a anistia para práticas anteriores e o fortalecimento de mecanismos de controle, como o whistleblowing. Alexandre Morais da Rosa analisa a relação custo-benefício das decisões ilícitas e argumenta que a remoção do risco de punição por atos passados poderia reorientar o comportamento dos agentes corruptos, focando na conformidade futura. A proposta é controversa, mas defesa como uma possível solução para um problema complexo e arraigado na sociedade.

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A corrupção é um problema crônico e mundial, com diversas propostas de enfrentamento. O fomento da participação social nos mecanismos de controle e descoberta converge para a admissão da figura do whistleblowing [reportante; Lei 13.608/18], sob o pano de fundo da Análise Econômica do Direito. O tempo e a reflexão nos ajudam a rever pontos de vista, arrogâncias e ingenuidades. Embora tenha objetado contra a Análise Econômica do Direito no passado, atualmente, além de conviver com seus pressupostos, assumi diversas orientações associadas ao movimento da Análise Econômica do Direito, em especial na esfera criminal, ainda que mantenha objeções tópicas.

Se o pressuposto do “ato humano” é representado pelo prévio “cálculo mental” (contabilidade cognitiva) quanto à disposição de realizar a conduta ilícita, então é necessária a modelagem do processo decisório, isto é: como o agente humano decide? O processo decisório humano parte da noção de “agente racional”, orientado pelo critério “custo-benefício”, ou seja, da relação entre os “custos” (objetivos/subjetivos; tangíveis/intangíveis) quanto à realização da conduta e os “benefícios” esperados (objetivos/subjetivos; tangíveis/intangíveis). Entretanto, diante das limitações biopsicossociais dos agentes humanos, especialmente de processamento de dados/informações, nem sempre toma a melhor decisão dentre as alternativas disponíveis, especialmente quando ausentes as “competências” (conhecimentos; habilidades; experiências); as “atitudes” (motivação; interesse; engajamento subjetivo) e/ou “recursos necessários” (meios; artefatos; tempo; orçamento) necessários à obtenção do melhor desempenho possível.

Você já deve ter tomado decisões sem conhecimentos, habilidades, experiência ou ainda pressionado por prazos, situações em que, retrospectivamente, muitas vezes, comparece o arrependimento, a lamentação, dentre outros sentimentos de fracasso, por ter escolhido a alternativa errada, apesar de outras disponíveis, principalmente quando mobilizado por emoções, interesses, urgência ou erros evitáveis. Por isso, a tomada de decisão do agente racional baseia-se na relação custo-benefício, consistente na resposta à questão: se os benefícios estimados do comportamento forem maiores do que os custos, é racional agir.

A partir da “Análise Econômica do Crime” (na linha de Burrhus Skinner e Gary Becker), pode-se dizer que o agente (racional e econômico), ao decidir “se comete ou não” uma infração (processual e/ou penal, no caso, atos de corrupção), “estima o risco” (chances de ser descoberto) e o “preço” da realização da conduta (punição; pena), ou seja, qual a “consequência/sanção” (pena, multa, reputação etc.) e a “probabilidade” de ser efetivamente descoberto e punido. Segue-se que a ampliação do preço (punição) e os mecanismos de descoberta e efetiva punição tendem a extinguir o comportamento operante (atos de corrupção). Daí, o acerto da proposta de implementação de ferramentas hábeis ao uso da figura do “reportante” no contexto brasileiro.

‘Custos afundados’

Dito de outra forma: se a Estrutura de Incentivos (prêmios e punições) orienta as decisões dos agentes racionais a partir do critério custo-benefício, em que o “custo” de práticas criminalizadas depende da estimativa do benefício e da relação com o “preço” (punição) e a possibilidade efetiva de ser descoberto e punido, a criação e o fomento da Estrutura Estatal do “reportante” mostram-se, em princípio, eficientes. O enquadramento da questão, entretanto, é paradoxal porque desconsidera os “custos afundados” (continuar investindo em um projeto inviável pelo fato de já ter-se investido muito anteriormente — acontece muito na bolsa de valores, nas empresas e em relacionamentos: se está dando errado e é inviável, continuar ou dobrar a aposta é irracional). Explico.

Se o diagnóstico realizado é o de que as práticas de corrupção estão “enraizadas” na estrutura estatal, o aumento da “punição” e dos mecanismos de “descoberta”, dentre eles o de whistleblowing, em vez de diminuir, fomentam práticas de corrupção. A afirmação pode “chocar” por ser “contrafactual”, mas é lógica. Se o agente “já está” envolvido em práticas ilícitas e os riscos de ser descoberto e punido se ampliam, a ação racional orienta-se pela “esquiva”, ou seja, de prevenir ou evitar a descoberta e a punição. O ato corrupto já foi realizado. O esforço agora é o de impedir a responsabilização.

Em consequência, o objetivo do agente racional que já realizou atos de corrupção será o de evitar a descoberta e a punição, por meio da manutenção e/ou da ampliação da “rede de proteção”. Logo, exigirá maiores investimentos e a constante cooptação de autoridades, agentes públicos e privados, quando não o silenciamento dos possíveis “reportantes”. Se a atividade de autoproteção será necessária, os custos também se ampliam, exigindo a canalização de mais recursos econômico-financeiros. Dito de outro modo: se os mecanismos aumentam o “risco de ser descoberto e punido”, o comportamento lógico do agente racional que já praticou o crime será o de impedir a descoberta e a punição. O tempo não retroage. O ato ilegal está realizado. As ações do agente racional se orientarão exclusivamente à redução das “chances” de ser descoberto e punido (redução de danos). Mas precisará de mais e mais recursos.

A hipótese que parece ilógica encontra precedentes. A Lei 12254/2016 instituiu o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (Rerct), com a finalidade de obter a declaração voluntária de recursos, bens ou direitos de origem lícita, não declarados ou declarados com omissão ou incorreção em relação a dados essenciais, remetidos ou mantidos no exterior, ou repatriados por residentes ou domiciliados no país. A lógica foi a de criação de incentivos à regularização de bens e/ou direitos mantidos no exterior. Embora tenha excluído os valores obtidos ilicitamente, o importante do movimento estatal foi alterar a Estrutura de Incentivos, com o fomento à conformidade.

A remessa ou a manutenção de dinheiro no exterior por brasileiros era uma realidade. O comportamento ilícito (do ponto de vista tributário-fiscal) já estava realizado. A Estrutura de Incentivos então existente impedia a “repatriação” de recursos porque implicaria em “punição” (administrativa, tributária, fiscal e penal). Por isso, a lógica dos Programas de Repatriação de recursos mantidos no exterior conferiu mecanismos de “imunidade parcial”, isto é, dentro de determinado prazo, sem os riscos de punições severas, considerando o detentor de recursos no exterior como agente racional, a tendência foi a de repatriamento, ainda que com pagamento de tributos. A hipótese consolidou-se de modo robusto, com volume significativo de valores repatriados.

O exemplo pode servir de analogia ao enfrentamento da corrupção. Para que a Estrutura de Incentivos (prêmios e punições) possa operar de modo eficiente, seria necessária a criação de um marco temporal de “grau zero”, em que todas as condutas anteriores à data “x” estariam “anistiadas para fins penais”, ainda que se possa criar “multa” para adesão. O efeito imediato seria o de permitir que os “agentes corruptos”, mas “racionais” não tenham que investir recursos no looping infinito contra a descoberta do que “fizeram no verão passado”. Sem o risco de punição pelos eventos pretéritos, com novos e robustos mecanismos de controle, dentre eles o whistleblowing funcionando em paralelo, a resposta coletiva à corrupção tenderia a obter melhores resultados globais (eficiência).

Soma-se, ainda, que a taxa de descoberta e de punição dos atos de corrupção é reduzida, prolongando no tempo os custos da esquiva. Com a exclusão da possibilidade de punição por “fatos puníveis pretéritos”, a Estrutura do Estado poderia se focar em garantir a conformidade “ex nunc”, até porque a apuração de condutas pretéritas custa dinheiro e concorre com as investigações atuais. Trata-se de um “salto para o futuro”.

Do ponto de vista moral, a proposta tende a ser considerada reprovável, talvez “absurda”. No entanto, um pouco de pragmatismo e heterodoxia promoveriam alterações significativas no atual estado da arte. Não existe a postura “meio pragmática”. Por mais que as práticas de whistleblowing sejam relevantes, necessárias e acolhidas em boa parte do mundo, compõem parcela da solução que, isoladamente, acaba exigindo mais recursos dos já corrompidos que precisam manter a estrutura de esquiva.

Segue-se que os programas de whistleblowing, nos moldes do Brasil e nos EUA, a partir dos pressupostos da Análise Econômica do Direito, teriam maior impacto se “zerassem a conta”, atribuindo aos eventos ilícitos pretéritos a condição de “custos afundados”. A retirada do risco de ser descoberto por eventos passados reorienta a Estrutura de Incentivos do agente racional.

Aliás, a Igreja Católica bem aplica o mecanismo porque, além da confissão individual, o Papa, anualmente, confere meios de “zerar os pecados”. O ato papal ou dos sacerdotes cria as condições de retorno dos pecadores que, mesmo “inconfessos”, podem retornar às atividades religiosas. Se a Igreja mantivesse a punição eternamente, com os riscos do purgatório e/ou do inferno, as “indulgências” seriam vedadas. Mas o comportamento é, no fundo, mecanismo potente para a manutenção do poder em nome da “reconciliação”. Aliás, a diretriz de “amar e fazer amar o censor” é uma constante no exercício do poder, demonstrou Pierre Legendre.

Enfim, se a corrupção é um “custo afundado” e a construção efetiva de mecanismos de controle e responsabilização, com efeitos “ex nunc”, é racional e tende à eficiência, perseverar na lógica do aumento do preço, paradoxalmente, fomenta a corrupção que se pretende reduzir. É ineficiente e irracional.

Se você ficou pensativo sobre a proposta “inusual” e “contrafactual” apresentada, talvez tenhamos algo em comum. Mas se você rejeitou a proposta, entendo perfeitamente. Assumir os pressupostos da AED exige certo grau de coerência e de pragmatismo, nem sempre disponíveis. Em qualquer das hipóteses, associada ou não a outras propostas, a efetivação de mecanismos hábeis de whistleblowing se mostra como condição de possibilidade ao controle social efetivo.

Termino com Richard Feynman:

“Quando um cientista não sabe a resposta de um problema, ele é ignorante. Quando tem um palpite de qual seja o resultado, está incerto. E quando tem uma baita certeza de qual será o resultado, tem alguma dúvida. Descobrimos que, para progredir, é importantíssimo admitir a ignorância e deixar espaço para dúvidas. O conhecimento científico é um corpo de afirmativas com graus variados de certeza: algumas muito incertas, outras quase certas, nenhuma absolutamente certa. Mas nós, cientistas, estamos acostumados com isso, e partimos do pressuposto de que é perfeitamente coerente não ter certeza, que é possível viver sem saber. Mas não sei se todo mundo percebe que isso é verdade”.

A construção de um futuro mais ético e transparente passa pelo reconhecimento da complexidade do comportamento humano e pelas estratégias que incentivam a conformidade e, talvez, por iniciativas inusuais e pragmáticas.

Dia 31 zeramos o jogo e recomeçamos o ano, com esperança renovada. Feliz 2025.

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