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Eduardo Newton: Por uma nova Doutrina de Segurança Nacional?

O artigo aborda a relevância e os impactos da Doutrina de Segurança Nacional (DSN) no atual contexto político brasileiro, questionando sua adequação à nova ordem constitucional pós-1988. Os autores discutem as raízes históricas da DSN, sua utilização durante a ditadura militar e a persistência de sua legislação hoje, enfatizando a necessidade de redefinição desse conceito para um modelo que priorize a dignidade humana e a justiça social, conforme proposto por pensadores contemporâneos.

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No atual cenário político brasileiro, por incrível que pareça, é verificada uma verdadeira fixação por antigos fantasmas, vide a alardeada ameaça comunista que ronda a sociedade. Diante do reconhecimento desse pensamento retrógrado, não causa nenhum assombro o manejo de institutos próprios da Doutrina da Segurança Nacional (DSN). O presente texto visa a enfrentar o cabimento da DSN na atual ordem constitucional e com os olhos voltados para o futuro.

“A colonialidade é o lado obscuro da Modernidade. É a face trágica do eurocentrismo. O colonialismo — enquanto sistema de dominação política formal de uns Estados sobre outros — findou definitivamente após a Segunda Guerra Mundial, não perdendo, contudo, o seu aspecto material — que é isso que importa — de poder e dominação. Foi substituído, porém, por um novo tipo de imperialismo: a colonialidade.” [1]

Há, na Doutrina de Segurança Nacional, aspectos próprios da colonialidade do poder e do saber. Antes da Segunda Guerra Mundial, tal como aponta Hélio Bicudo [2], o conceito de segurança nacional possuía íntima relação com a defesa do território frente a uma ameaça externa. Essa é uma visão tradicional do conceito, que acabou por ser transformada e alargada após a derrocada dos regimes nazifascista com a posterior constituição de uma geopolítica bipolar. Os EUA, com o intuito de preservar as suas áreas de influência, entenderam que não só as ameaças externas representavam um perigo à segurança nacional, mas todas, inclusive as internas, que se voltassem contra o seu domínio. Os oficiais militares brasileiros estudaram por esse catecismo ideológico, inicialmente na América do Norte e depois replicaram na Escola Superior de Guerra (ESG) [3].

Diante do novo — e alargado — conceito de segurança nacional, não havia mais a necessidade de um fator externo para poder manejá-lo. A propaganda oficial do regime militar confere prova concreta desse novo significado da ideia de segurança nacional, vide o malsinado slogan utilizado pelo governo mais duro contra aqueles que foram considerados como inimigos — o governo Médici — Brasil: ame-o ou deixe-o.

Muito embora a Doutrina da Segurança Nacional possa ser compreendida como uma ideologia da guerra fria, não se pode desprezar o fato de que todo um conjunto de atos normativos foi por ela inspirado. O regime de força teve no Ato Institucional sua certidão de batismo — com o surgimento de outros atos é que ele ficou conhecido como AI-1 —, sendo certo que nele se encontra textualmente estampada a Doutrina da Segurança Nacional:

“Para demonstrar que não pretendemos radicalizar o processo revolucionário, decidimos manter a Constituição de 1946, limitando-nos a modificá-la, apenas, na parte relativa aos poderes do presidente da República, a fim de que este possa cumprir a missão de restaurar no Brasil a ordem econômica e financeira e tomar as urgentes medidas destinadas a drenar o bolsão comunista, cuja purulência já se havia infiltrado não só na cúpula do governo como nas suas dependências administrativas.” (destaquei)

Além disso, surgiram diversas leis ou atos do Executivo com força legal — os Decretos-Lei — que vieram a positivar os crimes de segurança nacional. O regime de exceção demonstrou intensa preocupação com a temática, o que pode ser verificado na existência de quatro atos legais (Decreto-Lei 314/67, Decreto-Lei 898/69, Lei 6620/78 e Lei 7170/83) sobre o assunto em curto período de tempo.

A ditadura civil-militar (1964-1985) saiu, em 15 de março de 1985, literalmente pela porta dos fundos da história, já que o último general-presidente se recusou a transmitir a faixa presidencial ao então vice-presidente José Sarney. No dia 5 de outubro de 1988, ocorreu a promulgação da Constituição da República e, assim, no plano formal, se deu a superação normativa de uma época de desvalor da democracia, da tolerância e da dignidade do ser humano. Diante desse novo horizonte jurídico, é necessário questionar se a Lei de Segurança Nacional (LSN) teria algum cabimento, ou seja, se foi recepcionada, bem como realizar uma reflexão maior sobre a existência de alguma utilidade da Doutrina de Segurança Nacional.

A despeito dos posicionamentos que indicam a ausência de recepção da Lei de Segurança Nacional [4], é sabido que ela embasou o processo criminal que culminou com a prolação de sentença de absolvição imprópria de Adélio Bispo de Oliveira no atentado sofrido pelo candidato vitorioso da última campanha presidencial, bem como ter servido de lastro para o então ministro da Justiça e Segurança Pública, o sr. Sérgio Fernando, ter determinado a instauração de inquérito contra seu notório desafeto político [5].

A Lei de Segurança Nacional, que pode ser tida como a materialização da Doutrina de Segurança Nacional, possui os seus defensores em pleno regime democrático, sendo certo que projeto de lei que visa a sua revogação, quando apreciado por uma comissão temática da Câmara dos Deputados — Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado — teve parecer contrário aprovado, ou seja, aquele colegiado entendeu que deve persistir na ordem jurídica a referida lei. Esse cenário de resistência à revogação da LSN indica o peso de uma transição negociada para a via democrática e sem qualquer responsabilização dos agentes estatais responsáveis pelos ilícitos praticados

Considerando o viés retrô do atual governo federal, que nada mais é que um verniz para escamotear o seu projeto de poder autoritário e submisso aos interesses do capital, é relevante refletir como se pode conceber uma sobrevida da Doutrina de Segurança Nacional, desde que em conformidade com o Estado Democrático e de Direto instituído em 1988. Os olhos para o passado devem somente impedir que o arbítrio, a tortura e o extermínio caiam no esquecimento, o que representaria uma segunda violação a direitos de vários brasileiros. Ao se pensar no futuro, deve-se ter mente que o conceito da segurança nacional sofreu transformações após Segunda Guerra Mundial e poderá perfeitamente sofrer outra nesse “fluido” período chamado de globalização.

Frei Betto traz essa nova concepção de segurança nacional em sua mais recente obra literária:

“Segurança Nacional deveria significar distribuição de riqueza, renda básica a toda população, aprimoramento do SUS, ampliação da rede de educação com qualidade pública e gratuita. Nosso inimigo não é um governo estrangeiro, nem mesmo o terrorismo. É a desigualdade social, a fome, o desemprego, a escalada da violência. Nosso inimigo é a queimada, o desmatamento, a invasão de terras indígenas, o latifúndio improdutivo.” [6]

Diante de uma crise sanitária não só subestimada pelo Poder Público, mas que também é vista como uma chance única para o agronegócio, a reformulação do conceito de segurança nacional trazida por Frei Betto se enquadra perfeitamente ofício desenvolvido pelo profeta, isto é, denunciar os horrores da atualidade e alertar a sociedade para não naturalizar o absurdo. Outrossim, não há espaço para um conformismo com o atual estado das artes. Oportunas essas considerações, pois o governo deve salvar vidas, e não a economia ou o patrimônio de uma parcela já privilegiada da população. Segurança Nacional é, portanto, a valorização da vida, o que deveria impedir a propaganda de tratamentos médicos sem qualquer respaldo científico.

O dominicano não possui formação jurídica, soube muito bem o que era ser considerado como inimigo do regime e, por força da Doutrina de Segurança Nacional fruto da colonialidade, conheceu o cárcere. Porém, ao propor esse novo sentido para segurança nacional, “simplesmente” invocou os objetivos fundamentais da República e enumerou alguns direitos fundamentais. A “roda” não foi inventada por esse religioso, mas quem sabe por essa sua engenhosa forma de redefinição de um conceito de dolorosas lembranças, possam os eternos caçadores de inimigos entenderem que o único oponente a ser batido na ordem constitucional é aquele que viola a dignidade da pessoa humana, que é responsável pela criação e perpetuação da miséria e que impede a fruição de uma vida digna para todos. Para os apegados ao nome, Frei Betto trouxe uma nova e legítima forma para a segurança nacional. Contudo, caso o intento seja se mostrar mais antenado e abandonar o linguajar da guerra fria, basta pensar no cumprimento do Texto Constitucional.

[1] SANTOS JÚNIOR, Rosivaldo Toscano. A guerra ao crime e os crimes da guerra. Uma crítica descolonial às políticas beligerantes de justiça criminal brasileiro. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. p. 150.

[2]BICUDO, Hélio. Segurança nacional ou submissão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. p. 13.

[3] Brasil: nunca mais. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1985. pp. 69-70.

[4] Pareceres da OAB. Brasil deve abandonar o modelo vigente da LSN, dizem juristas. https://www.conjur.com.br/2020-set-22/brasil-abandonar-modelo-vigente-lsn-dizem-juristas

[5]Caçada desleal. Moro determina que a PF investigue Lula com base na Lei de Segurança Nacional. https://www.conjur.com.br/2020-fev-19/moro-determina-pf-investigue-lula-base-lei-seguranca

[6] FREI BETTO. Diário de quarentena. 90 dias em fragmentos evocativos. Rio de Janeiro: Rocco, 2020. p. 138.

Referências

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