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O julgamento da ADPF 334 e a desigualdade na Justiça penal

O artigo aborda o julgamento da ADPF nº 334 pelo Supremo Tribunal Federal, que declarou a inconstitucionalidade do tratamento diferenciado para presos provisórios com diploma de nível superior, evidenciando a seletividade penal e a perpetuação das desigualdades sociais no sistema de justiça. A autora discute como o princípio da igualdade deve ser revisitado para garantir que os desiguais sejam tratados de forma desigual, enfatizando a necessidade de reformas que respeitem a dignidade humana. Além disso, destaca a disparidade na aplicação das normas entre criminosos de alta e baixa renda, refletindo a falência do sistema penitenciário brasileiro.

Artigo no Conjur

Em 30/3/2023, no julgamento da ADPF nº 334, o Supremo Tribunal Federal formou maioria para declarar que a prisão (provisória) especial para pessoas portadoras de diploma de nível superior (artigo 295, VII do CPP) — norma antidemocrática, aprovada no governo autoritário de Getúlio Vargas — não foi recepcionada pela Constituição Cidadã.

O princípio da igualdade, em sua concepção formal, é um legado iluminista e assenta na ideia de que todos devem ser iguais perante a lei. Todavia, com a implementação paulatina do Estado social de Direito, percebeu-se que o tratamento igualitário de pessoas desiguais tem o condão de acentuar as disparidades ao invés de estabelecer um mesmo nivelamento. Surgiu então a necessidade de reformulação do princípio da igualdade para abranger também um aspecto material: os desiguais devem ser tratados de forma desigual, na medida de suas desigualdades.

O cerne da questão centra-se na determinação de um método capaz de auferir as possíveis desigualdades. Não se trata de tarefa simples, uma vez que qualquer critério eleito como termo de comparação não tem o condão de levar em consideração as especificidades de todos os agentes envolvidos e, por isso, em regra, não se pode falar em igualdade absoluta entre as pessoas. O princípio da igualdade constitui uma das diretrizes de atuação dos agentes públicos e, por isso, a legitimação de qualquer regra que preveja diferenciação entre as pessoas dependerá da existência de uma ligação razoável entre o parâmetro comparativo e o fim a que visa a norma [1].

Por que uma pessoa portadora de diploma superior, presa provisoriamente, merece tratamento especial em relação a um preso provisório sem escolaridade? A única resposta cabível, embora inaceitável, é a seletividade penal. A bem da verdade, uma pessoa diplomada tem mais chances de ingressar no mercado de trabalho, bem como melhores condições de avaliar o caráter ilícito de suas condutas. Não há, pois, explicação idônea para que essas pessoas recebam tratamento privilegiado em detrimento daquelas a quem o Estado negou, muitas vezes, oportunidades legítimas. A norma que prevê a prisão especial retroalimenta as injustiças sociais.

Nesse desiderato, colacionamos excerto do voto do ministro Alexandre de Moraes, relator da ADPF 334: “Não me parece existir qualquer justificativa razoável, à luz da Constituição da República, que seja apta a respaldar a distinção de tratamento a pessoas submetidas à prisão cautelar, pelo Estado, com apoio no grau de instrução acadêmica, tratando-se de mera qualificação de ordem estritamente pessoal que, por si só, não impõe a segregação do convívio com os demais reclusos. A meu ver, a previsão do direito à prisão especial a diplomados em ensino superior não guarda nenhuma relação com qualquer objetivo constitucional, com a satisfação de interesses públicos ou à proteção de seu beneficiário frente a algum risco maior a que possa ser submetido em virtude especificamente do seu grau de escolaridade”.

A população carcerária brasileira apresenta baixo nível de escolaridade: menos de 13% têm acesso à educação. Consoante pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de Justiça, em uma amostragem de mais de 700 mil presos, 70% não concluíram o ensino fundamental, e 92% não têm ensino médio completo. Menos de 1% tem diploma de ensino superior ou ingressaram na faculdade [2].

O mapeamento dos presos no Brasil demonstra empiricamente a existência de um Direito Penal seletivo e estigmatizante, cujas diferenças de tratamento se fazem presentes ao longo de toda a cadeia de atuação da Justiça penal, vale dizer: criação de leis desiguais e aplicação desigual das leis.

Esperamos que o julgamento da ADPF nº 334 impulsione o descortinamento de outras normas que também atestam a seletividade do sistema penal, porquanto a convivência harmônica entre democracia e ius punendi tem como pressuposto fundamental o respeito à dignidade da pessoa humana. Sem a pretensão de exaurir o tema, vamos lançar alguns exemplos.

A forma como a reparação do dano é tratada no ordenamento jurídico brasileiro evidencia a desigualdade de tratamento entre os ricos e os pobres. O Código Penal regulamenta o instituto do arrependimento posterior e assevera que a reparação do dano/ restituição da coisa, nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, tem o condão de reduzir a pena [3]. Em situação idêntica, mas com relação aos crimes tributários, que normalmente são cometidos por quem dispõe de boas condições financeiras, a consequência da reparação do dano é a extinção da punibilidade [4].

Não existe justificativa plausível para o tratamento paradoxal dado pelo legislador entre situações idênticas de violação ao bem jurídico patrimônio, mormente quando no caso dos sonegadores o desvalor da conduta é até maior, pois geram lesão ao erário, que, em última análise, é patrimônio de todos, e causam danos incalculáveis e irreparáveis a coletividade. Normas dessa natureza perpetuam a discriminação econômica ao reservar a punição para os menos favorecidos e assegurar a impunidade para os mais abastados. Enfatiza-se que a crítica recai sobre o tratamento desigual e não sobre a solução da questão penal por intermédio da reparação de danos, mormente quando se sabe da falência do sistema penitenciário brasileiro.

Situação também em que se opera gritante desigualdade diz respeito ao conteúdo da Portaria nº75/2012 do Ministério da Fazenda, que determina o não ajuizamento de execuções fiscais de débitos com a Fazenda Nacional, cujo valor consolidado seja igual ou inferior a R$ 20 mil. O conteúdo dessa portaria gerou um entendimento nos nossos tribunais de sobreposição de que dívidas até esse valor não devem ser abarcadas pelo Direito Penal em face do princípio da insignificância.

De outro lado, em se tratando de delito de furto comum, tem-se estabelecido o critério de um percentual do salário mínimo para fins de aplicação do princípio da insignificância [5]. Além disso, os tribunais superiores atrelam o reconhecimento da bagatela à existência de quatro requisitos: mínima ofensividade da conduta do agente, ausência de periculosidade social da ação; reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica causada.

A seletividade do sistema penal brasileiro resta patente quando à insignificância de pequenos delitos patrimoniais se impõe uma lista de obstáculos e à insignificância dos crimes tributários se concede uma módica margem de R$ 20 mil (STJ, REsp, 1.709.029/MG, julgado em 28/2/2018 sob o rito de recurso repetitivo), sem que haja necessidade de se perquirir sobre periculosidade social da ação e outros tecnicismos destinados a prender a marginalidade social.

A igualdade da lei penal — seja na sua confecção, seja na sua aplicação — constitui um ideal de sistema jurídico consubstanciado em um verdadeiro mito no contexto do ordenamento brasileiro, cujo descortinamento e crítica constituem pressuposto essencial para o resgate de um Direito Penal condizente com um Estado democrático de Direito.

[1] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2000, p. 428.

[2] Disponível em: https://observatorio3setor.org.br/noticias/70-dos-presos-no-brasil-nao-concluiram-o-ensino-fundamental/ , acesso em 1/4/2023.

[3] Prescreve o art. 16 do Código Penal Brasileiro: “Art. 16 – Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços”.

[4] Dispõe a Lei 9430/96, em seu art. 83, §4º: “Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos no caput quando a pessoa física ou a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento (Incluído pela Lei nº 12.382, de 2011)”.

[5] BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. 7ª ed. Saraiva: São Paulo, 2012, p.1252 e ss.

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