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Muniz: O anacronismo do artigo 385 do Código de Processo Penal

O artigo aborda uma análise crítica do artigo 385 do Código de Processo Penal, que permite ao juiz proferir condenação mesmo diante de pedido de absolvição do Ministério Público. Examina a constitucionalidade dessa norma à luz das mudanças trazidas pela Constituição Federal de 1988, defendendo que, em um sistema acusatório, o juiz deve atuar como espectador, respeitando a função do MP e evitando condenações sem pedido acusatório. O texto destaca a necessidade de um processo penal que respeite o contraditório e a imparcialidade, e defende a revisão desse dispositivo, que remete a um contexto autoritário.

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O presente artigo tem por objetivo fazer uma análise crítica do artigo 385 do Código de Processo Penal brasileiro, que autoriza o juiz a proferir sentença condenatória a despeito de eventual pedido de absolvição formulado pelo representante do Ministério Público.

Entretanto, no julgamento do HC 623.598/PR, relatora ministra Laurita Vaz, a 6ª Turma do STJ manifestou-se pela constitucionalidade do artigo 385 do CPP ao concluir que a “manifestação do MP pela absolvição não impede a Justiça de condenar o réu”. Esse entendimento já havia sido consagrado no julgamento do REsp 1521239/MG, relator ministro Rogério Schietti Cruz, 6ª Turma, julgado em 9/3/2017, DJe de 16/3/2017.

Neste artigo, faremos um um cotejo crítico entre os fundamentos que embasam a tese da constitucionalidade do artigo 385 do CPP e as balizas que, de outra banda, servem de sustentáculo para adoção de entendimento oposto ao sufragado pela 6ª Turma do STJ.

Impende, inicialmente, ressaltar que o artigo 385 do CPP permanece com a redação inalterada desde a edição do nosso CPP em 1941, que foi inspirado, diga-se de passagem, no CPP italiano de 1930, também conhecido como Código Rocco, concebido em plena ditadura fascista de Mussolini. Esse dado revela o contexto histórico autoritário de criação do nosso CPP, que trouxe como consequência o fortalecimento do órgão estatal punitivo — no caso, o Estado-juiz, elevado à categoria de protagonista do processo penal em detrimento das partes. Por conseguinte, a pretexto do mito da busca da verdade real, inúmeros poderes foram concedidos ao magistrado, cabendo-lhe inclusive condenar o acusado, independentemente de pedido de absolvição do Ministério Público.

Conforme leciona Lenio Streck, com base na chamada “filosofia da consciência” [2], que embasou a ideologia do CPP brasileiro de 1941, vigorava uma noção de superioridade jurídica, política e intelectual do magistrado em relação aos demais atores do processo penal.

Todavia, o advento da Constituição Federal de 1988 e as posteriores reformas processuais penais reclamam dos juristas uma viragem de mentalidade, mormente porque se optou por um processo penal de modelo acusatório, no qual o juiz deve agir como espectador da atividade probatória das partes.

No sistema acusatório, ao magistrado incumbe a tarefa de julgar com imparcialidade o caso penal, tendo por parâmetros as provas lícitas produzidas pelas partes, ao passo que a função acusatória é de titularidade do Ministério Público (artigo 129, I, da CF). Por conseguinte, essencial que acusação e órgão julgador exerçam as inconfundíveis funções que lhe foram determinadas. Se o titular da ação penal conclui, finda a instrução criminal, que a solução jurídica adequada ao caso concreto é a absolvição do réu, não pode o magistrado, sob pena de violação ao sistema acusatório, condenar o acusado.

Importante esclarecer que não se defende que o pedido de absolvição feito por um representante do Ministério Público deve ser tratado como algo irrefutável. Até consideramos importante que existam possibilidades de revisão do posicionamento ministerial, mas o cerne da questão é que tal tarefa deveria ser de incumbência do próprio Parquet e ainda do assistente da acusação, caso presente no caso concreto, mas jamais do magistrado, que deve se manter equidistante das partes.

Situação análoga ocorre ao fim da fase pré-processual: diante dos elementos de informação colhidos na investigação — em regra, materializada por meio de inquérito policial —, o promotor de Justiça pode decidir pela realização de novas diligências, pelo oferecimento de denúncia ou acordo de não persecução penal ou ainda pelo arquivamento do feito.

Antes do advento do “pacote anticrime”, era tarefa do juiz homologar o pedido de arquivamento do inquérito policial feito pelo promotor de Justiça. Todavia, justamente com o objetivo de adequar o processo penal ao modelo acusatório, a nova redação do artigo 28 do CPP [3] — com vigência ainda suspensa — determina que o pedido de arquivamento seja homologado por instância de revisão ministerial.

É bem verdade que a ação penal pública é regida pelos princípios da obrigatoriedade (atualmente bastante mitigada) e indisponibilidade. Todavia, rechaçamos, em um sistema acusatório, que o juiz exerça a função anômala de fiscalizador do princípio da obrigatoriedade ou indisponibilidade. Ademais, conforme sustenta Roxin [4], a acumulação de poderes processuais pelo magistrado resvala em um processo penal autoritário.

Acrescenta-se ainda que os princípios da obrigatoriedade e indisponibilidade da ação penal pública não se sobrepõem aos princípios constitucionais da presunção de inocência e do devido processo legal. A atividade persecutória do Parquet condiciona-se, inclusive sob pena de configuração em tese do crime de abuso de autoridade [5], à existência de justa causa para o oferecimento/prosseguimento da denúncia.

Sabemos que o standard probatório exigido para a condenação é mais robusto do que aquele exigido para o oferecimento da denúncia. Dessa feita, perfeitamente compreensível que o Parquet conclua, finda a instrução criminal, que os elementos informativos colhidos na fase investigatória não foram corroborados por provas de autoria e materialidade, para além de qualquer dúvida razoável.

Se o titular da ação penal, em sede de alegações finais, pugna pela absolvição do acusado, forçoso concluir que não existe mais pedido condenatório e, para além do sistema acusatório, eventual condenação do acusado violaria também os princípios da inércia da jurisdição e da correlação.

O princípio da inércia da jurisdição veda que o juiz decida algo que não foi pedido, e, por conseguinte, sob pena de termos uma sentença incongruente, também impede que o magistrado decida diversamente do que lhe foi pleiteado, até mesmo porque inconcebível que haja decisão em torno de questões que não foram objetos de debates entre as partes.

Importante também frisar que a defesa tem a prerrogativa de se manifestar por último no processo penal justamente para que possa, em nome do princípio da ampla defesa, rebater todas as questões fático-jurídicas apresentadas pela acusação. A partir do momento em que o promotor de Justiça pugna pela absolvição, a defesa acredita não existir pretensão acusatória a ser resistida e, portanto, pode, pela impossibilidade de prever argumentos que o magistrado possa usar para fundamentar eventual acusação, deixar de confrontar pontos relevantes para assegurar sua absolvição.

Como podemos considerar legítima, mormente em um Estado democrático de Direito, uma condenação assentada em argumentos que não passaram pelo crivo do contraditório?! Decerto, uma condenação nesses termos viola o tão almejado processo penal democrático e padece ainda do vício da nulidade. Com efeito, leciona Prado: “É nula a sentença condenatória proferida quando a acusação opina pela absolvição. O fundamento da nulidade é a violação do contraditório (artigo 5º, inciso LV, da Constituição da República)” [6].

Em outro giro, ponderamos ainda, com fulcro no princípio da razoabilidade, que se o juiz não pode o “menos” (exemplo: decretação de um prisão preventiva sem prévio requerimento da acusação), por óbvio, também não pode o “mais” (condenar sem pedido do Parquet). Outrossim, estaríamos diante de uma condenação “de ofício”, ou seja, uma pessoa seria considerada culpada mesmo diante da ausência de acusação.

Por oportuno, colacionamos lição de Colomer: “Há necessidade de uma acusação, formulada e mantida por pessoa distinta daquela que vai julgar, para que se possa abrir e celebrar o processo e, consequentemente, se possa condenar” [7].

Para fundamentar a desvinculação do magistrado ao pleito absolutório formulado pelo Ministério Público, invoca-se que a sentença judicial tem guarida no princípio do livre convencimento motivado. Essa argumentação não nos convence! A uma, esclarecemos que diz-se “livre” o convencimento judicial porque não vigora mais, como outrora, o sistema de prova legal ou tarifada, no qual havia prefixação do valor das provas. A duas, porque consoante os princípios da inércia da jurisdição e imparcialidade, o juiz deve firmar um convencimento em resposta ao que foi requerido pelas partes, e não em substituição à acusação.

Ademais, o regramento da mutatio libelli enaltece o nosso entendimento de que o princípio do livre convencimento judicial não legitima uma condenação sem prévio pedido da acusação. O artigo 384 do CPP [8] é enfático em determinar que, mesmo diante “de prova existente nos autos de elemento ou circunstância da infração penal não contida na acusação”, o juiz só pode condenar se houver aditamento da peça acusatória. Dito de outra forma: uma condenação imprescinde de pedido acusatório.

Em que pese a importância de todas as argumentações acima ventiladas, destacamos, mais uma vez, que o sistema acusatório exige nítida separação das funções de julgar e acusar. Esse é o busílis! O artigo 385 do CPP editado no contexto autoritário do Estado Novo não encontra guarida na vigência de um Estado democrático de Direito. Em processo penal democrático, é fundamental a consolidação da figura do juiz espectador em substituição à figura do juiz protagonista.

O poder punitvo estatal é condicionado à existência de um pleito acusatório de titularidade exclusiva, nas ações penais públicas, do Ministério Público, e o magistrado não é suplente do Parquet na função acusatória. Finalizamos o presente texto como um sábio ditado popular: “Quem tiver um juiz por acusador precisa de Deus como defensor”.

[1] Dispositivo com a vigência suspensa, em razão de decisão cautelar do inistro Luiz Fux, proferida nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6298, 6299, 6300 e 6305).

[2] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teoria discursiva. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p.06.

[3] “Artigo 28 – Ordenado o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer elementos informativos da mesma natureza, o órgão do Ministério Público comunicará à vítima, ao investigado e à autoridade policial e encaminhará os autos para a instância de revisão ministerial para fins de homologação, na forma da lei. (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)”.

[4] ROXIN, Claus. Derecho procesal penal. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2000,p.10.

[5] “Artigo 30 da Lei 13.869/19 – Dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente: Pena — detenção, de um a quatro anos, e multa”.

[6] PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p.116/117

[7] COLOMER, Juan-Luís Gómez. Introducción al Derecho Penal y al Derecho Penal Procesal. Barcelona: Editoral Ariel, 1989, p.230.

[8] “Artigo 384 – Encerrada a instrução probatória, se entender cabível nova definição jurídica do fato, em conseqüência de prova existente nos autos de elemento ou circunstância da infração penal não contida na acusação, o Ministério Público deverá aditar a denúncia ou queixa, no prazo de cinco dias, se em virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública, reduzindo-se a termo o aditamento, quando feito oralmente”.

Referências

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