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Natureza jurídica do crime de apropriação indébita previdenciária

O artigo aborda a controvérsia sobre a natureza jurídica do crime de apropriação indébita previdenciária, destacando debates sobre sua classificação como crime material ou formal e a necessidade de constituição definitiva do crédito tributário para a ação penal. Os autores analisam decisões do STF e STJ, evidenciando a falta de uma jurisprudência pacífica e propondo uma interpretação que possa trazer mais segurança jurídica aos envolvidos. Além disso, ressaltam a importância de critérios dogmáticos na análise da questão.

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O julgamento do Tema nº 1.166 sobre a “natureza jurídica (formal ou material) do crime de apropriação indébita previdenciária, previsto no art. 168-A do Código Penal” [1] está pautado para esta terça-feira (17/10). A 3ª Seção do STJ apreciará o REsp nº 1.982.304/SP, de relatoria da ministra Laurita Vaz.

A controvérsia de fundo vai além do reconhecimento da natureza material ou formal do crime do artigo 168-A do CP encontrando questão sobre a necessidade de constituição definitiva do crédito tributário para o oferecimento de denúncia criminal.

Destaque-se que os crimes contra a ordem tributária do artigo 1º, I a IV da Lei nº 8.137/90 não se consumam antes do lançamento definitivo do tributo, como ficou assentado no HC nº 81.611 e na S.V. nº 24 [2]. Posteriormente, esse entendimento foi estendido pelo STF ao artigo 168-A do CP, conforme decidido no Inquérito nº 2.537/GO AgRg e consolidado no julgamento da ADI nº 4.980/DF, a qual reconheceu a constitucionalidade da nova redação do artigo 83 da Lei nº 9.430/96 [3] (alterada pela Lei nº 12.350/2010), lembrando que o STF já tinha reconhecido a constitucionalidade redação original na ADI nº 1.571.

A vasta quantidade de decisões dos Tribunais Superiores sobre a consumação do crime do artigo 168-A do CP não manifesta jurisprudência pacífica. O enfoque de análise parece ter sido mais sobre a necessidade de esgotamento da via administrativa como condição para o oferecimento da denúncia do que sobre o reconhecimento da natureza material ou formal da redação típica.

1. A natureza material da apropriação indébita previdenciária O critério de classificação dos crimes segundo o tipo de resultado jurídico de ofensa ao bem jurídico – dano ou perigo de dano ao bem jurídico – tem sido, por vezes, confundido com indicativo da existência ou não de resultado natural. O resultado natural pode ser definido como “a transformação mecânica do mundo físico perceptível por meio dos sentidos”, denominada de “evento” no direito penal italiano [4]. Assim, são crimes materiais os delitos em que é possível a constatação desse resultado material exterior a conduta.

Especificamente em relação ao artigo 168-A do CP, a questão diz respeito à existência de resultado material decorrente do não recolhimento da contribuição previdenciária e se esse resultado ocorreria antes do lançamento definitivo do tributo. É dessa questão que parte a solução para a pergunta se a consumação do crime de apropriação previdenciária depende ou não do esgotamento do processamento na via administrativa.

Os primeiros julgados do STF classificaram os delitos do artigo 168-A do CP e do artigo 2º, II da Lei nº 8.137/90 como formais [5]. Esse entendimento ganhou força com os julgamentos da ADI nº 1.571 e do HC nº 81.611. A ADI 1.571, que reconheceu a constitucionalidade da redação original do artigo 83 da Lei nº 9.430/96 e declarou a inexistência de condição de procedibilidade à atuação do Ministério Público. Isto é, não há impedimento ao Ministério Público na proposição da ação penal, caso disponha de outros indícios que não a Representação Fiscal para Fins Penais.

No julgamento do HC 81.611, que influenciou a edição da SV nº 24, destacou o ministro relator que os crimes do artigo 2º da Lei nº 8.137/90 são “realmente tipos formais, a cuja concretização bastam a conduta e a potencialidade danosa, não reclamando efetivação do prejuízo alheio possível” [6]. Posteriormente a abrangência da SV nº 24 foi estendida pelo STF ao artigo 168-A do CP, mudando o entendimento jurisprudencial com relação aos julgados anteriores e indicando novo reconhecimento da natureza típica em relação à espécie de resultado de crime formal para crime material [7].

O STF teve ainda recente oportunidade de consolidar posicionamento ao julgar a ADI nº 4.980, que reconheceu a constitucionalidade da nova redação do artigo 83 da Lei nº 9.430/96, todavia, deixou de pacificar o entendimento da questão. A ementa do acórdão é expressiva nesse sentido: “a validade da norma atacada independe da controvérsia relacionada à natureza dos delitos nela mencionados – se material ou formal –, notadamente o de apropriação indébita previdenciária” [8]. Apesar do entendimento consagrado no acórdão, seis ministros reconheceram natureza material do tipo do artigo 168-A do CP [9], como se evidencia, por exemplo, no voto do ministro Edson Fachin: “a jurisprudência desta Corte Suprema firmou-se no sentido de que o crime previsto no art. 168-A do Código Penal é omissivo material e não crime formal” [10].

O STJ, por sua vez, tem compreendido que os delitos dos artigos 168-A e 337-A do CP “ostentam natureza de delito material”, mas a consumação aconteceria “apenas na data da constituição definitiva do crédito tributário. Assim, a ausência de comprovação da constituição do crédito impede o reconhecimento da justa causa para a ação penal” [11].

A mesma divergência de orientações está presente no MPF. A PGR alegou, na petição inicial de propositura da ADI 4.980, que a apropriação indébita previdenciária seria um crime formal, “cuja consumação se constata na data de vencimento do prazo para recolhimento do valor da obrigação tributária, que já é conhecido pelo sujeito ativo do delito”[12]. Depois disso, a 2ª CCR do MPF publicou o Enunciado nº 79 indicando que os crimes dos artigos 168-A e 337-A do CP dependem “do término do procedimento administrativo e da consequente constituição definitiva do crédito tributário, indispensável condição de procedibilidade”.

A insegurança jurídica decorrente da falta de clareza e uniformidade da leitura do tipo incriminador pode ser solucionada por meio da atenção às categorias dogmáticas penais, analisando rigorosamente os seus conceitos, fundamentos, critérios e consequências jurídicas [13].

A redação do tipo incriminador do artigo 168-A do CP é de um crime material de dano. Veja-se que o não recolhimento contribuição previdenciária causa resultado perceptível no mundo exterior e verificável na diminuição da receita (prejuízo sofrido) da Seguridade Social. O esgotamento da via administrativa é o meio de reconhecimento do indício da prática do crime já praticado, dizendo respeito “a questões processuais de prova e de justa causa, e não à formação da conduta punível. Isto é, em nada difere ao ilícito realizado pelo agente se a instância administrativa o reconhece ou não: o fato terá sido o mesmo, no mesmo lugar e no mesmo tempo” [14].

3. Conclusão É possível que o julgamento do STJ siga o entendimento do STF na ADI nº 4.980 de que a apropriação indébita previdenciária é crime material com consumação após o encerramento da fase administrativa.

Os conceitos científicos permitem atentar melhor para as características do fenômeno descrito no tipo. A redação do crime de apropriação indébita previdenciária tem natureza material e se consuma antes do esgotamento do procedimento fiscal, que é a discussão administrativa sobre a eventual existência de infração tributária já consumada.

A 3ª Seção do STJ tem oportunidade de reconhecer e fundamentar tecnicamente o entendimento de que a comprovação da consumação da apropriação indébita – como crime material – exige a constatação do dano ilícito causado, o que é verificável por meio do lançamento definitivo do tributo. Assim, o STJ oferecerá mais segurança jurídica e previsibilidade aos contribuintes, qualificando o sistema de justiça criminal, de acordo com a tradição técnica dos conceitos da ciência penal.

[1] “Art. 168-A. Deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. § 1º Nas mesmas penas incorre quem deixar de: I – recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada à previdência social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a segurados, a terceiros ou arrecadada do público”.

[2] RUIVO, Marcelo Almeida. Os crimes de sonegação fiscal (arts. 1º e 2º, Lei 8.137/90). In: RUIVO, Marcelo Almeida; BOSSA, Gisele Barra (orgs.). Crimes contra ordem tributária: do direito tributário ao direito penal. São Paulo: Almedina, 2019, p. 444.

[3] Este artigo impede a remessa de representação fiscal para fins penais ao Ministério Público antes de determinado procedimento administrativo. Na prática, trata-se de impeditivo para o oferecimento de denúncia.

[4] RUIVO, Marcelo Almeida. Os crimes de sonegação fiscal (arts. 1º e 2º, Lei 8.137/90). In: RUIVO, Marcelo Almeida; BOSSA, Gisele Barra (orgs.). Crimes contra ordem tributária: do direito tributário ao direito penal. São Paulo: Almedina, 2019, p. 436.

[5] “[a apropriação indébita previdenciária] constitui-se em delito omissivo puro, infração de simples conduta, assim de natureza inconciliável com a apropriação indébita, que é crime de resultado”, STF, HC nº 76.978/RS, rel. min. Maurício Corrêa, j. 29 set. 1998. Na altura, a apropriação indébita era tipificada ao art. 95, d, da Lei n. 8.212/91.

[6] STF, HC n. 81.611/DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 10 dez. 2003. As semelhanças e diferenças entre a ADI 1571/DF, o HC 81.611 e a SV 24 são historiadas por VILARES, Fernanda Regina. A dinâmica do processo penal nos crimes contra a ordem tributária: o papel do processo administrativo fiscal e a necessária revisão da súmula vinculante nº 24 do STF. In: RUIVO, Marcelo Almeida; BOSSA, Gisele Barra (orgs.). Crimes contra ordem tributária: do direito tributário ao direito penal. São Paulo: Almedina, 2019. p. 217 ss.

[7] “A apropriação indébita disciplinada no artigo 168-A do Código Penal consubstancia crime omissivo material e não simplesmente formal”, STF, Inq. N. 2.537/GO AgR, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 10 mar. 2008.

[8] STF, ADI n. 4.980/DF, Rel. Min. Nunes Marques, j. 10 mar. 2022.

[9] Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Luiz Fux.

STF, ADI n. 4.980/DF, Rel. Min. Nunes Marques, j. 10 mar. 2022, fl. 123.

[10] STF, ADI n. 4.980/DF, Rel. Min. Nunes Marques, j. 10 mar. 2022, fl. 79.

[11] STJ, AgRg no REsp n. 1416220/MG, Rel. Min. Felix Fischer, j. 12 set. 2017.

[12] STF, ADI n. 4.980/DF, Rel. Min. Nunes Marques, j. 10 mar. 2022, fl. 123.

[13] SALTIEL, Ramiro Gomes von. A proteção penal da Seguridade Social: estudo sobre o crime de não recolhimento de contribuições previdenciárias. Londrina: Thoth, 2023, p. 234 e s.

[14] SALTIEL, Ramiro Gomes von. A proteção penal da Seguridade Social: estudo sobre o crime de não recolhimento de contribuições previdenciárias, p. 239-240.

Referências

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