Artigos Conjur – A aplicação das medidas protetivas de urgência aos casais homoafetivos do sexo masculino (parte 2)

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A aplicação das medidas protetivas de urgência aos casais homoafetivos do sexo masculino (parte 2)

O artigo aborda a omissão do legislador brasileiro em proteger a comunidade LGBTI+, especificamente no que tange à violência doméstica contra casais homoafetivos do sexo masculino. As autoras destacam que, apesar da ausência de uma lei específica, o STF decidiu aplicar as medidas protetivas da Lei Maria da Penha a essa população, ressaltando a função contramajoritária do Judiciário em garantir direitos fundamentais diante da inércia legislativa. A discussão sobre a adequação e eficácia dessa decisão gera debates no meio jurídico, refletindo sobre o papel do Judiciário na proteção dos vulneráveis.

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Em regaste ao debate iniciado semana passada, pontuamos que os parlamentares brasileiros são indiferentes à gritante (e inaceitável) escala de violência e ódio contra a comunidade LBGTI+, não tendo o compromisso de lhe garantir o exercício da cidadania plena.

Embora pesquisas realizadas no âmbito nacional e internacional indiquem uma quantidade expressiva de vítimas de violência doméstica dentre os integrantes da comunidade LBGTI+, inexiste lei específica para tutelar tal situação. Diante da inércia (injustificada) do legislador, a Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas (Abrafh) e Aliança Nacional LGBTI impetraram o MI nº 7.452/DF. Nossa Corte Constitucional tem o dever de zelar pela concretização dos direitos fundamentais, inclusive quando violados por instituições democraticamente constituídas como o Congresso Nacional.

Como para questões complexas existem soluções simples que não funcionam, poder-se-ia imaginar que, nas hipóteses de omissão inconstitucional do Poder Legislativo, deveria o STF limitar-se a constituir em mora o Congresso Nacional. De fato, a solução é juridicamente válida e até acertada, à luz do preconizado no §2º do artigo 103 da CF. Contudo, desprovida de efetividade, pois inexistem mecanismos de coercibilidade para que os parlamentares, de fato, editem normas que se fazem necessárias para tutela dos direitos fundamentais.

Ao lecionar sobre ação de inconstitucionalidade por omissão, Marinoni [1] lança uma reflexão importante:

“não há como compatibilizar o princípio da supremacia da Constituição com a ideia de que esta pode vir a falhar em virtude da não atuação legislativa. Isso seria, bem vistas as coisas, dar ao legislador o poder de fazer a Constituição desaparecer… o princípio da separação de poderes confere ao Legislativo o poder de elaborar as leis, mas, evidentemente, não lhe dá o poder de inviabilizar a normatividade da Constituição”.

O Poder Legislativo segue o fluxo majoritário, ainda que, para tanto, possa vir a desprezar os cânones constitucionais. Portanto, a mera constituição em mora do Congresso Nacional não se apresenta(ria) como solução idônea para concretização de direitos e garantias fundamentais.

Reserva legal

Decerto, o STF não pode exercer a anômala função de legislador, pois a própria Constituição determinou que tal tarefa só pode ser validamente exercida pelo Parlamento. Mas, de outra banda, justamente para assegurar o sistema de freios e contrapesos, no exercício da função contramajoritária, o STF deve salvaguardar as normas constitucionais, ainda que para isso precise rever ações ou omissões legislativas [2].Vale transladar os ensinamentos de Salgado: “por isso há um componente contramajoritário na atuação dos magistrados – em defesa do determinado pela norma constitucional, eventualmente podem afastar decisões tomadas pela maioria democraticamente manifestada”.

O STF tem jurisprudência pacificada no sentido de que, se o Congresso Nacional persistir no estado de omissão mesmo após certificado da sua mora, é cabível solução jurisdicional que concretize, enquanto a questão não for regulamentada pelos parlamentares, a norma constitucional de eficácia limitada. Assim foi feito, a título ilustrativo, com o exercício do direito de greve por servidores públicos civis.

Na esfera penal, entretanto, essa função legislativa atípica esbarra no princípio da reserva legal, de forma que não pode o Poder Judiciário tipificar delitos ou cominar sanções penais. Eis o nascedouro da problemática: o STF, na qualidade de guardião da Lei Maior, instado a se manifestar sobre a inércia do Congresso Nacional na concretização de imposições legiferantes fulcradas em cláusulas constitucionais de natureza penal, não pode legislar, mas precisa apresentar uma solução que faça valer a autoridade da Constituição.

A situação de mora legislativa pode se caracterizar na fase inaugural do processo legislativo (“mora agendi”), bem como na etapa de deliberação acerca das propostas já apresentadas (“mora deliberandi”), desde que a inércia seja manifestamente abusiva e inconstitucional [3]. No julgamento do MI nº 7.452/DF, concluiu o Plenário do STF, pelo reconhecimento da mora do Congresso Nacional, asseverando que a mera tramitação de projetos de leis sobre a temática não supre a omissão inconstitucional.

Raio de proteção

Outrossim, decidiu nossa Corte Suprema, enquanto perdurar a omissão legislativa, pela aplicação das medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) a travestis e transexuais com identidade social feminina, bem como aos casais homoafetivos do sexo masculino, desde que o homem vítima de violência esteja em uma posição de subordinação na relação.

Patrícia Vanzolini, criminalista

Esse aresto gerou uma discussão acalorada na comunidade jurídica no que diz respeito à inclusão dos casais homoafetivos do sexo masculino no raio de proteção da Lei Maria da Penha, ainda que restritivamente às medidas protetivas de urgência. Alguns criticaram a decisão do STF sob a pecha de indevido ativismo judicial. Para outros, a Corte Constitucional valeu-se da técnica de interpretação conforme para fazer valer os direitos fundamentais dos integrantes do grupo LBGTI+.

A institucionalização da técnica de interpretação conforme à Constituição, defendida no caso analisado nesta investigação, e também da inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, por intermédio da Lei 9.868/1999, implicou no reconhecimento pelo Legislativo de que o Judiciário pode realizar adaptações e adições aos textos legais quando do exercício do controle da constitucionalidade [4].

Portanto, com o advento da referida lei, o próprio Legislativo rompeu com aquilo que se convencionou chamar “liberdade de conformação do legislador”. Dito de outra forma: o próprio Congresso Nacional reconheceu que o Judiciário, na atividade de controle da constitucionalidade, não está adstrito ao papel de “legislador negativo”, o que não significa, obviamente, que lhe foi outorgado o papel de “legislador positivo” [5].

Analogia in malam partem

A tarefa do STF de interpretar a Constituição Federal não se embaralha com o processo de produção normativa/elaboração legislativa. A interpretação jurídica é sempre um processo dinâmico e construtivo. Ao ampliar, restringir ou até mesmo limitar a aplicação de uma norma, não se pode afirmar que o tribunal está legislando. Pelo contrário, ao harmonizar o texto legal com a Constituição por meio dos diversos métodos interpretativos disponíveis, o magistrado ou o tribunal apenas cumpre sua função de garantir a conformidade das leis com a ordem constitucional [6]:

Rodrigo Brandão, ao se referir à técnica de interpretação conforme à Constituição, enfatiza que a noção de ratio legis não é restrita às escolhas feitas conscientemente pelo legislador, mas engloba também os princípios constitucionais que encontrarem guarida na lei. Portanto, nas hipóteses de interpretação conforme à Constituição, “há desenvolvimento judicial do direito imanente à lei” [7].

Uma parcela de juristas criticou ainda a solução apresentada pelo STFMI nº 7.452/DF, sob a argumentação de que a aplicação das medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) aos casais homoafetivos do sexo masculino configura analogia in malam partem, vedada na seara penal. Discordamos dessa concepção, na medida em que o STJ, ao julgar o Tema 1.249 [8], firmou entendimento no sentido de que as medidas protetivas de urgência têm natureza jurídica de tutela inibitória (caráter extrapenal).

Não obstante, justamente pela vedação da analogia in malam partem, cabe alertar, que, em se tratando de casais homoafetivos do sexo masculino, o descumprimento das medidas protetivas de urgência configura o crime de desobediência (CP, artigo 330). Na hipótese de mulheres travestis ou transexuais, logicamente o descumprimento de tais medidas configura o delito previsto no artigo 24-A da Lei 11.340/06

Em arremate, entendemos constitucionalmente acertada a decisão do STF de autorizar a aplicação das medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) aos casais homoafetivos do sexo masculino e às mulheres travestis ou transexuais nas relações intrafamiliares.

Em um Estado Democrático de Direito, as minorias não podem ser subjugadas pela vontade hegemônica da maioria. Para assegurar que isso não aconteça, a própria Constituição relegou ao Judiciário o exercício da função contramajoritária em contrapartida ao papel majoritário exercido pelo Legislativo, como forma de assegurar o equilíbrio entre os poderes. Do contrário, se o STF fosse condescendente com o descaso dos parlamentares em relação às pautas dos setores vulnerabilizados da nossa sociedade, teríamos um regime democrático meramente formal.

O fato de entendermos acertada a decisão ora analisada não significa dizer que reconhecemos ao STF competência para criar tipos penais, logicamente que não. Apenas sustentamos que, na ausência de um diálogo profícuo entre o Congresso Nacional e a Corte Suprema, é dever desta proferir decisões aptas a garantir a autoridade da Constituição, porquanto a comunidade LGBTI+ – assim como outros setores vulnerabilizados da nossa sociedade – não pode ser refém da boa vontade do legislativo, que tem uma pauta inegavelmente populista.

[1] SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p.1195.

[2] SALGADO, Eneida Desiree. Populismo judicial, moralismo e desprezo à Constituição: a democracia entre velhos e novos inimigos. In Revista Brasileira de Estudos Políticos, nº117. Belo Horizonte: UFMG, 2018, pp. 193-217 (doi: 10.9732/p.0034-7191.2018v117p193), p.200.

[3] AGRA, Walber de Moura. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 679.

[4] STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 389.

[5] Ibidem, p.389

[6]Ibidem, p.390.

[7] BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia Judicial versus Diálogos Constitucionais: a quem cabe a última palavra sobre o sentido da Constituição. 3 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022, p. 191-192.

[8]STJ, REsp 2.071.109-MG, Rel. ministro Joel Ilan Paciornik, Rel. para acórdão Ministro Rogerio Schietti Cruz, Terceira Seção, julgado em 13/11/2024.

Referências

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