Artigos Empório do Direito – Juristas colonizados?

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Juristas colonizados?

O artigo aborda a crítica ao que o autor chama de “juristas colonizados”, evidenciando a dependência da dogmática jurídica brasileira em relação a teorias importadas de países centrais. Através de quatro perspectivas teóricas, o texto discute a necessidade de construir uma teoria jurídica que respeite as particularidades socioeconômicas e culturais do Brasil, desafiando a utilização acrítica de modelos estrangeiros e promovendo a reflexão sobre a autenticidade das construções jurídicas locais.

Artigo no Empório do Direito

Por Rosivaldo Toscano Jr. – 09/03/2016

A partir desta semana iniciaremos um percurso visando embasar uma crítica ao modo como opera nossa dogmática jurídica. Criticaremos o que chamamos de “juristas colonizados” a partir de quatro pontos de vista diferentes: Teoria Impura/Transnacional do Direito (com Diego Medina), a Visão em Paralaxe (com Slavoj Žižek), a Ética da Libertação, (com Enrique Dussel) e Razão Cosmopolita (com Boaventura de Sousa Santos). Nosso intento é mostrar que não há, em ciências humanas e sociais e, em especial, no direito, verdades inabaláveis e universais, e que devemos dar vez e voz às nossas próprias construções teóricas. E em relação às teorias estrangeiras, discutiremos se há pertinência em se propor a construção de uma teoria da tradução jurídica adequada às realidades periféricas.

Considerações iniciais

Não obstante o Brasil ter assumido, de uns anos para cá, uma posição de maior projeção no cenário geopolítico mundial, continua periférico.[1] O sistema jurídico-criminal e as teorias que o sustentam são sintomáticos dessa condição. Ainda permanecemos caudatários das teorias e práticas oriundas dos chamados Estados centrais. A produção científica local costuma ser ignorada ou, pior, desprezada, em benefício de teses que pouco ou nada têm a ver com nosso cenário político, jurídico e social.[2]

Infelizmente, ainda soa cult ressoar teses e autores estrangeiros, que refletiram a partir de constructos sociais diversos do nosso e cujas conclusões e resultados seriam diferentes, antagônicos ou até mesmo contraditórios, se devidamente adaptados à nossa conjuntura. Esses saberes, importados como enlatados, desvinculados de seu contexto de origem – isto é, sem faticidade – e sem um juízo crítico acerca de sua compatibilidade com o nosso sistema jurídico-constitucional, ganham o status de dogma.

Assim, nossa dogmática jurídica data de 1827 (quando da criação dos primeiros cursos jurídicos no Brasil), mas continua a mesma: adota aqui as experiências ocorridas e as construções teóricas desenvolvidas nos países centrais como se fossem as únicas possíveis, como se fossem a representação da verdade. Quer explicar o que nos é interno somente a partir do exterior. O continente a partir do contingente, como se aquele não existisse e este fosse o real.

Os resultados, claro, não raras vezes terminam por gerar violência em face da desconsideração da alteridade, isto é, das peculiaridades locais. Buscaremos, aqui, desvelar alguns pontos que continuam encobertos por esse discurso hegemônico que esconde a existência de lugares de fala, de visões de mundo específicas, de paradigmas sobre os quais qualquer modo de pensar é concebido, edificado e executado. Um discurso ideológico, que tenta encobrir o fato de que as ciências sociais são uma construção humana geográfica e historicamente situadas.

No nosso foco neste estudo é revolver o chão desse costume centenário de, sem uma reflexão apurada, importar as teorias jurídicas vindas da Europa e, mais recentemente, também dos Estados Unidos, com pretensão de aplicação universal. Contudo, a acolhida de uma determinada teoria jurídica que parece ser uma solução para um determinado problema na Europa ou nos Estados Unidos pode ser, aqui, um gerador de mais problemas, de mais violência, diante da diversidade de tradições – das diferentes conjunturas social, jurídica, política e econômica.

Desde já advertimos que não nos opomos à importação de teses jurídicas, até porque as teorias não são necessariamente ruins pelo fato de terem sido criadas lá fora. Ademais, defender um direito com identidade própria não significa desprezar as demais práticas e construções teóricas. Seria negar a nossa formação histórica. Desde as Ordenações portuguesas, passando pelos Código Civil de 1916, praticamente uma cópia do BGB alemão; pela “Constituição Polaca” de 1937; em suma, pelo fato de que nosso sistema jurídico foi construído sobre um mesmo paradigma de Estado Liberal ocidental. Ignorar isso seria assumir uma postura revanchista e preconceituosa. Os direitos fundamentais são uma construção europeia, por exemplo. E nenhum sistema jurídico é uma ilha em si mesmo.

O pretendemos aqui é alertar sobre a importação automática, pontual ou, principalmente, em bloco, de soluções criadas em jurisdições alienígenas – o fenômeno do mimetismo – em que não há espaço para a diferença – incluindo o que é gestado pela nossa própria doutrina. Importa-se uma verdade. Passa-se, então, a se discutir a partir dela e não ela mesma. O discurso dessa verdade se torna um a priori. Um dogma. É aí onde está o reducionismo tão perigoso em um contexto complexo como o nosso: um país multicultural, multiétnico, de acentuadas desigualdades econômicas, sociais e regionais e de população e dimensão continentais.

Em um Estado que sequer conseguiu superar a modernidade, o discurso importador a partir de modelos de países que se encontram em patamares diversos em termos institucionais, sociais e econômicos, é perigoso quando se trata, principalmente, de restrição a direitos fundamentais.[3]

Assim, firmado na práxis forense, esse modo de agir vai sendo aceito como algo natural, mas que, na realidade, impõe-se sem dialética, sem crítica, por falácias como a do “argumento de autoridade” ou do “progresso”. Aliás, sempre há quem busque ser o pioneiro na importação e reprodução das referidas teorias sem, antes, balizá-las. Há uma ilusão de que isso é ser vanguardista. Embora até traga prestígio e venda (a imagem e os livros) damos a esses importadores, revendedores e consumidores o epíteto de juristas colonizados.

O problema da importação acrítica é que ela anestesia, naturaliza, embrutece, pois se perde na cotidianidade, no senso comum teórico dos juristas.[4] E como diz Heidegger, não há nada mais distante de nós, na cotidianidade, do que nossos próprios óculos.[5] Nossa abordagem, assim, busca retirar os véus, sair dessa cotidianidade a partir da reflexão acerca da naturalização desse costume.

Para tanto, traremos, aqui, quatro pontos de vista diferentes mas que têm uma mesma intenção: a de mostrar que não há, em ciências humanas e sociais e, em especial, no direito, verdades inabaláveis e universais. Tratam-se das reflexões de Diego Medina (teoria transnacional do direito), Slavoj Žižek (visão em paralaxe), Enrique Dussel (ética da libertação) e Boaventura de Sousa Santos (razão cosmopolita).

Por fim, discutiremos se há pertinência em se propor a construção de uma teoria da tradução jurídica adequada às realidades semiperiféricas.[6] Eis o desafio. E sejamos honestos e modestos: não ofereceremos uma solução definitiva para esse problema, até porque não seria, jamais, a pretensão de um artigo jurídico. Nosso propósito é a fixação de uma ideia geral. Daremos um primeiro passo em busca da solução, firmando, tão somente, o norte da bússola.

Semana que vem apresentaremos o primeiro prisma. Isso se dará com os aportes de Diego Eduardo Lopes Medina e a Teoria Impura do Direito. Até lá.

Notas e Referências:

[1] Para alguns, semiperiférico. Trata-se de uma longa discussão – que não cabe no recorte que fazemos. Remetemos o leitor a Immanuel Wallerstein e seus desenvolvimentos sobre a Teoria do Sistema Mundo. Da mesma maneira, Theotonio dos Santos e a Teoria da Dependência.

[2] O tema é bem tratado por Lenio Streck. Cf. STRECK, Lenio Luiz. O Direito brasileiro e a nossa síndrome de Caramuru. Consultor Jurídico. Senso Incomum. Disponível em: . Acesso em: 15.03.2013.

[3] Embora procuremos não nos restringir a casuísmos, de tempos em tempos o discurso da redução da maioridade penal retorna. E não faltam exemplos de países “desenvolvidos” cuja imputabilidade penal é de 16 ou até mesmo 14 anos. O discurso reducionista se funda na falácia progressista (“devíamos fazer como na Inglaterra, nos EUA, na Alemanha…”). Ao mesmo tempo, não se discute como é o contexto estrangeiro em termos de proteção social à infância e à juventude (educação, saúde, transporte, alimentação, lazer etc.). O reducionismo também omite da discussão a estrutura carcerária de lá e como se dá o cumprimento da pena, por exemplo.

[4] É esclarecedor o apontamento feito por Luis Alberto Warat, que cunhou a expressão “senso comum teórico dos juristas”, quando diz que “Nas atividades cotidianas – teóricas, práticas e acadêmicas – os juristas encontram-se fortemente influenciados por uma constelação de representações, imagens, pré-conceitos, crenças, ficções, hábitos de censura enunciativa, metáforas, estereótipos e normas éticas que governam e disciplinam anonimamente seus atos e decisão e enunciação. […] Um máximo de convenções linguísticas que encontramos já prontas em nós quando precisamos falar espontaneamente para retificar o mundo, compensar a ciência jurídica de sua carência” (WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito I: interpretação da lei: temas para uma reformulação. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994, p. 13).

[5] “Para quem usa óculos, por exemplo, que, do ponto de vista do intervalo, estão tão próximos que os ‘trazemos no nariz’, esse instrumento de uso, do ponto de distante do vista do mundo circundante, acha-se mais distante que o quadro pendurado na parede em frente.” (HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Tradução Márcia de Sá Cavalcante. 8ª ed. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 155).

[6] Consideramos o Brasil como país semiperiférico de acordo com os estudos de Boaventura de Souza Santos (SOUSA SANTOS, Boaventura de. Para uma revolução democrática da justiça. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2011). No mesmo sentido, o pesquisador mexicano Jaime Preciado, para quem o Brasil, em face de sua influência na América do Sul, pela posição de liderança na UNASUL, de independência frente aos Estados Unidos e pela tentativa de fortalecer os laços nas relações Sul-Sul e dentre os BRICS, “demarca claramente as características de um poder regional, e procura, com crescente sucesso, seu posicionamento como um superpoder (…) O papel do Brasil como semiperiferia ativa, na América Latina, não somente se consolidou, mas incrementou, além disso, aspirações na procura de seu posicionamento como potência global”. (PRECIADO, Jaime. América Latina no Sistema-Mundo: questionamentos e alianças centro-periferia. In: Caderno CRH, Salvador, v. 21, n. 53, p. 253-268, Maio/Ago. 2008, p. 262).

. Rosivaldo Toscano Jr. é doutorando em direitos humanos pela UFPB, mestre em direito pela UNISINOS, membro da Comissão de Direitos Humanos da Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB, membro da Associação Juízes para a Democracia – AJD e juiz de direito em Natal, RN. . .

Imagem Ilustrativa do Post: Books // Foto de: Adan Garcia // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/adangarcia/4766636681

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Referências

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