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Se jurista tem inconsciente, diálogo com a psicanálise é fundamental

O artigo aborda a intersecção entre psicanálise e literatura, destacando a influência de Freud e Lacan na compreensão do inconsciente como um aspecto crucial na leitura de textos literários. Alexandre Morais da Rosa explora como a subjetividade do leitor e a evasividade do significado nas obras literárias desafiavam interpretações objetivas, enfatizando que cada leitura é uma experiência singular moldada por contextos e desejos individuais. Nesse cenário, a literatura emerge como um meio potente para explorar as complexidades da condição humana e as angústias sociais, contribuindo para um entendimento mais profundo do indizível e do inconsciente.

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A partir de Freud[4] se deu os diálogos entre Psicanálise e Literatura. Homem de seu tempo, não tinha à disposição, ainda, as percepções decorrentes do giro linguístico, da importância da pragmática e, portanto, ainda indagava o ente. O perigo de indagar o ente (texto) é confundir os registros e se cair num falso dilema: entre objetivismo e subjetivismo[5]. Não há vontade do texto e muito menos vontade do autor. Porque para assim acolhermos, deveríamos acreditar, piamente, como quer a epistemologia da modernidade, no sujeito universal[6]. A eventual indicação de conteúdo manifesto, no caso do texto literário, não poderia jamais ser confirmado. Nem mesmo o autor poderia. Existe no texto uma outra cena que o próprio enunciador não domina. Logo, as pretensões de validade sobre o texto, no máximo, podem obter assentimentos. A verdade verdadeira é empulhação imaginária capaz, reconheçamos, de apaziguar muitos. Não é o caminho a se perseguir. A contingência e o inesperado nos seduzem, dado que a compreensão da realidade será sempre fragmentária e dinâmica, a partir de fluxos. Fluxos que dialogam desde a perspectiva do sujeito que olha o mundo e a tradição linguística da qual faz parte, ou seja, há uma imbricação entre o sujeito e o simbólico que o antecede. Daí que uma visão de mundo pressupõe a compreensão, articulando fronteiras com diversos saberes, sem a possibilidade de um todo consciente e completo, senão pela incompletude[7].

O campo psicanalítico não pode, assim, jogar-se nefelibatamente nas verdades duras do texto Literário, porque seria somente capaz de apaziguar a falta. A falta intransitiva de onde elegemos, com Lacan, nosso ponto de saída. A aproximação com a Literatura se dá, muitas vezes, para se buscar aquilo que a psicanálise não alcança. É bem verdade que alguns procuraram analisar o texto literário, supondo imaginariamente a existência de um desejo inconsciente do texto literário. Resgatando-se o sujeito, aponta-se o que foi semidito, balbuciado, na hiância. Acontece que, depois, se resgatou o leitor, porque o texto diz no limite em que é lido, por um outro. O texto como “fato gráfico” somente diz quando dito pelo leitor, porque, com Barthes[8], sabe-se que o sentido migra.

Discorrer-se sobre o sentido com a outra cena pressupõe falar sobre o inconsciente e, necessariamente, de um retorno a Freud, já que foi ele quem franqueou sua abertura/construção[9]. A leitura cruzada entre Direito e Psicanálise acontece em bases freudianas e lacanianas, com especial relevo para esta, que deu um passo a mais (sempre fiel à matriz freudiana, diga-se) no que se refere ao inconsciente freudiano, indicando os registros — Imaginário, Simbólico e Real (Lacan) — unidos pelo quarto elemento, a metáfora paterna (nó de borromeu). Então, o inconsciente, na perspectiva lacaniana, possui uma tripartição estrutural, composta por Real-Simbólico-Imaginário. Cabe destacar, por oportuno, que depois do dissenso na Sociedade Psicanalítica de Paris e a fundação da Sociedade Francesa de Psicanálise (1953), Lacan se sentiu livre para poder transmitir seu ensino. Os marcos de tal acontecer estão situados justamente nos discursos que pronuncia nesta nova sociedade sob o título ‘O Simbólico, o Imaginário e o Real’ e no Congresso de Roma — ‘Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise.’ A partir deles indica o registro do Imaginário defendendo, outrossim, um retorno a Freud. Desde então a linguagem passa a ter um papel de destaque no ensino lacaniano, dado que é no Simbólico que o sujeito é sacado do Imaginário — ‘Estádio do Espelho’ — e promove sua ligação ao laço social, bem onde aparecem os sintomas. Lacan propõe que o inconsciente é o capítulo censurado, mas não apagado, marcado por um branco e ocupado por uma mentira, o qual irrompe no simbólico, e a função do analista é a de decifrador do sintoma que está na linguagem. O inconsciente do sujeito clivado, pois, é o outro como se linguagem fosse, ou seja, o tesouro de significantes, por onde o sentido transita. Com esse pano de fundo, o sujeito do inconsciente é movido por um desejo que é antes de tudo um desejo de reconhecimento (Legendre[10] — Amor), e como o desejo é o desejo do Outro[11], situado no Real, de impossível acesso, o sujeito resta cindido e não pode conseguir a unidade. Está condenado a se articular a partir da falta.

A mirada psicanalítica deve se dar conta que navega no Simbólico, condicionada pela estrutura do sujeito (autor e leitor) sem que o sentido seja fixo. Nesta eterna luta de acesso ao Real, que o texto literário serve de instrumento. Não para representar, por impossível, mas para expor o sentido que advém do lido. Singularmente. Sem metalinguagem. Por isto não se pode querer desvendar o texto literário, mas o colocar no meio de uma cadeia significante, de onde, em diante, o sujeito leitor, desliza, sem saber tudo, nem onde irá chegar. O sujeito, clivado, por sorte, entra em cena quando enuncia o discurso que emerge do contato com o texto. Este contato, por sua vez, varia conforme os humores do dia. Claro. O que o texto desperta é algo que joga com a estrutura do sujeito leitor, da qual ele, de fato, pouco sabe. Por isto a leitura não pode ser objetiva justamente porque existe um sujeito implicado no texto e na leitura, sem que o emissor da mensagem, como autor, possa segurar o sentido, sempre singular, que dele advém. E podem ser muitos. Democraticamente. Joga-se com o texto e o sujeito, sendo que o deslizar do significante mostrado está para além do que o significado pode cercar. Os mecanismos que são chamados a compor o sentido não podem ser garantidos por qualquer metalinguagem, salvo imaginariamente. Resultado é que mesmo que o autor do texto represente algo em sua mente, o leitor não está compromissado com isto. Até porque, sabe-se, que se diz onde não se diz, ou seja, existe uma gama significante no silêncio, aponta Orlandi: “Se a linguagem implica silêncio, este, por sua vez, é o não-dito visto do interior da linguagem. Não é o nada, não é o vazio sem história. É o silêncio significante.”[12]

Como a psicanálise busca ouvir o inconsciente, onde ele escapa, as pretensões epistemológicas são o que sempre foram: ficções garantidas pelo eu. E o “eu” é da periferia, diz Agostinho Ramalho. Por isso, o leitor está implicado por sua fantasia nuclear, pelos restos do complexo de Édipo, enfim, sem sujeitos universais, mas singulares no tempo, espaço e contextos. A empulhação universal da leitura objetiva desconsidera a singularidade e que cada resposta ao texto será única, de acordo com nossas necessidades, defesas (in)conscientes e valores, no tempo e espaço. Nela se joga com a identificação, projeção, introjeção, transferência. Sem garantias. A cadeia de significantes não se inicia com o texto. O leitor, o autor, as condições, intervém no sentido. O sujeito precisa se acomodar com o que quer ver e o que pode ver, porque o seu desejo, sujeitado ao desejo do Outro, afeta mais o sentido do que o orgulhoso sujeito da modernidade pode aceitar. Norman Holland[13] chama isto de “leitura transativa”, na qual o enigma de cada interpretação individual joga com a singularidade e os fantasmas, defesas e fantasias próprias do leitor.

Escreve-se para dar sentido à vida. Parece que pouco mais resta do que isso. Não é pouco, todavia. Poder dizer o que não se pode, eis a angústia. Só que a mensagem, exprimível no Simbólico, nunca diz, por impossível, o real, que escapa. Ao nominar, dizia Lacan, fundamentado, dentre outros, em Wittgenstein[14], se vela. O desvelar se produz, no limite do possível, num diálogo intermitente do sujeito com o outro e o outro. Desde o giro linguístico, plenamente acolhido nesta comunicação, a interpretação não pode ser mais vista de forma objetiva, apesar de ser sedutora a hipótese, dado que permaneceria no registro do imaginário. Não tem mais sentido, pois, indagar-se qual o significado de uma palavra, já que a resposta estaria assentada na falsidade da premissa, ou seja, na (im)possibilidade de uma resposta definitiva e única. Ela depende dos jogos da linguagem, da maneira dinâmica pela qual será empregada na praxis da linguagem, não se podendo mais se buscar significações cristalinas e ideais. As proposições, pois, não dão mais a segurança lógica da Matemática ou da Metafísica, estando desde sempre incluídas na linguagem, única via de acesso ao significado provisório e sujeito a modificações, havendo, assim, a necessidade de se buscar unidades de outra ordem, outros critérios, indicados como sendo os usos que se faz da linguagem nas diversas formas de vida. É no campo do uso da linguagem que a proposição ganha destaque e significado, não podendo residir numa aldeia ideal. O significado das proposições, então, decorre dos usos que se realizam a partir deles próprios, tendo caráter fragmentário, aderidos ao ‘veja’, expressão que se refere à multiplicidade do mundo da vida, revés da consciência plena, do sentido pleno. Decorrência disto é que a linguagem vem superar a divisão entre mundo real e representação, tido o mundo real como referência de consistência lógica; essa segurança desaparece pela mudança de perspectiva, agora restam opções de sentido. Não se trata mais de descobrir como funciona a linguagem, mas de como se emprega. Essa retirada do referencial estático, eterno, modifica a maneira pela qual se pode significar, a despeito, pois, dos fatos. É na multiplicidade dos usos da linguagem que deverá se situar o mecanismo do referencial, não mais absoluto, mas relativo, correspondendo aos usos possíveis. Em síntese: a linguagem declara sua independência em relação aos fatos.

Na perspectiva democrática os acordos intersubjetivos são importantes, sem que se caia, por evidente, nos universalismos ilusórios habermasianos. Para além do assentimento sincero, existem mecanismos inconscientes que roubam a cena, conforme deixa evidenciada a psicanálise. Por isso procedem as críticas de Bento Prado Jr.[15] acerca do projeto habermasiano, no sentido de que a leitura da psicanálise a partir da psicologia do eu efetuada por Habermas, renegou o silêncio e o inconsciente na formulação do consenso intersubjetivo.

O perigo da interpretação objetiva é reputar que o não-dito desimporta[16]. Pelo contrário. A leitura cruzada com a Psicanálise sabe da importância das reticências… A linguagem é da ordem do não-todo. Provém do real, de impossível acesso. Nesta angústia de dizer o todo, de bom grado, a Literatura é um coadjuvante importante. Não para psicanalizar o autor e muito menos para se detectar um ilusório inconsciente do leitor. Toda leitura é individual, articulada no tempo, espaço, contexto e, sempre, deslizando entre os significantes que não seguram. A Verdade verdadeira, a verdade que se esconde por detrás do texto, herança da Filosofia da Consciência, não se sustenta após o giro linguístico, na lição de Lenio Streck. Desta falta como significante um é que emerge o sujeito, na hiância do possível. O feliz para sempre é impossível. Até porque o paraíso está perdido. Nesta busca por sentido, o sujeito está perseguindo seu objeto a, que permite, se houver desejo, flanar pela existência em busca de suas paixões. Na ânsia de ir ao encontro do que se perdeu, por sorte. Este sujeito dividido pela linguagem pode escrever para buscar tocar a borda do Real. Nesse movimento, por certo, o que enuncia significa, para o outro, algo que não pode segurar, nem garantir. Se vamos deslizar na cadeia significante que o façamos em busca do nosso desejo em face do Mal Estar que a Civilização necessariamente impõe (Freud)[17]. E a literatura, assim, pode, quem sabe, nos ajudar a dar sentido ao mundo (jurídico).

Referências

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