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Eduardo Newton: Por uma ‘quaresma cívica’ já!

O artigo aborda a proposta de uma “quaresma cívica” como um período de reflexão sobre eventos históricos e atuais que evidenciam a persistência do autoritarismo no Brasil. A partir de acontecimentos marcantes, como a defesa do Ato Institucional nº 5 por um parlamentar e a postura do atual chefe do Executivo frente à crise sanitária, o texto destaca a necessidade urgente de rever a relação da sociedade com o poder e seus impactos nas liberdades civis. A proposta visa estimular uma análise crítica, reforçando a importância de um regime democrático autenticamente vivido, à luz do que ocorreu em 25 de abril de 1974, data da Revolução dos Cravos em Portugal.

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Na história luso-brasileira, existem eventos importantes que vão além do 7 de setembro de 1822. A abdicação de Pedro I em 7 de abril de 1831 é um exemplo, pois implicou em toda uma batalha pela coroa portuguesa. O dia 25 de abril de 1974 é outro episódio marcante, data da Revolução dos Cravos e da derrocada do regime salazarista. Em 2021, no Brasil o hino dos revolucionários — “Grândola, Vila Morena” — ainda se mostra atual.

Não se desconhece o fato de que o Estado é laico por imperativo constitucional, vide o disposto no artigo 19, inciso I; porém, até mesmo em razão da proximidade de mais um aniversário revolucionário, propõe-se a realização de uma “quaresma cívica”.

Essa proposta não pode ser compreendida como uma extravagância mental ou mesmo fruto de uma preocupação descabida com o cotidiano. Diversos exemplos atuais demonstram a necessidade urgente em se parar para refletir sobre eventos significativos ocorridos. Sem qualquer ambição de esgotar a enumeração de fatos graves e preocupantes, inicia-se a descrição e sucinta análise de tais fatos ocorridos em pleno ano de 2021.

Um parlamentar, o deputado federal Daniel Silveira, que obteve o mandato pelo voto popular — não se trata, portanto, da figura do parlamentar biônico existente na ditadura civil-militar após o chamado Pacote de Abril — defendeu publicamente o Ato Institucional nº 5. O referido ato foi o mais draconiano de todo o regime militar, tendo, inclusive, se originado de uma disputa travada entre o Executivo e o Legislativo sobre a cassação do mandato de Márcio Moreira Alves, que teria ofendido as Forças Armadas na tribuna da Câmara dos Deputados. A relevância do AI-5 para o regime autoritário pode ser constatada na forma como veio a ser noticiado o seu término pelo Jornal do Brasil, conforme relatado por Bernardo Braga Pasqualette:

“À meia-noite de hoje o Brasil sai do mais longo período ditatorial de sua história. Dez anos e 18 dias depois de sua edição, o Ato Institucional nº 5, que suspendeu liberdades individuais, eliminou o equilíbrio entre os Poderes e deu atribuições excepcionais ao presidente da República, encerra a sua existência. O presidente Ernesto Geisel, que governou com o Ato e comandou a distensão que o revogou, passa a última noite do ano — e do regime — na Granja do Riacho Fundo. O general Figueiredo, que receberá o governo sem poderes arbitrários, começará o ano na Granja do Torto, também em Brasília” [1].

A incapacidade de a sociedade brasileira aceitar os que são tidos como indesejáveis não constitui qualquer novidade, sendo mesmo possível articular com a pena de degredo existente no império português. É claro que esse cenário se agrava com o avanço da razão neoliberal. Essa não aceitação não se dá somente no plano da retórica, pois a arquitetura urbana hostil denunciada por Júlio Lancelotti indica que o espaço público não é destinado para todos. A postura crítica do mencionado religioso vem a demonstrar a perversa atualidade de um personagem de Chico Anysio. Ecoa na mente de muitos o bordão de Justo Veríssimo: “Eu quero que o pobre se exploda”.

O terceiro acontecimento, e sem sombra de dúvida o mais chocante, consiste na mais completa incapacidade do atual chefe do Executivo federal de demonstrar o mínimo de respeito pela dor de milhares de famílias que foram dilaceradas pela crise sanitária potencializada pela incúria estatal. É simplesmente inaceitável, daí a repercussão negativa na imprensa nacional e estrangeira, que um dirigente se volte para a população irresponsável que se aglomera e afirme:

“Vocês não ficaram em casa. Não se acovardaram. Temos que enfrentar os nossos problemas. Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar chorando até quando?” [2].

A perda de um familiar ou um amigo não possui qualquer valor para uma pessoa com um discurso desse. Trata-se de uma banalização do luto, de sentimentos e da própria existência humana. Talvez essa forma grotesca de pensar acredite que no Posto Ipiranga se possa simplesmente adquirir um pai, uma mãe ou um filho após a traumática perda provocada pela crise sanitária.

Outros eventos poderiam ser destacados, mas a relação aqui apresentada já se mostra suficiente para a proposta deste texto. No âmbito religioso, a quaresma se relaciona com um período de preparação e reflexão. Trata-se de uma verdadeira contagem regressiva para um fato importante. O episódio relevante apontado é o 25 de abril e ponderações podem — e devem — ser realizadas até a chegada da data marcante da Revolução dos Cravos.

Antes de qualquer coisa, o Brasil precisa acertar contas com o autoritarismo. A despeito de formalmente ter sido instituído um regime democrático em 5 de outubro de 1988, a verdade é que a mentalidade autoritária persiste e cada vez mais com mais vigor. O cenário jurídico, aliás, constitui um ótimo exemplo dessa incongruência entre o que é estabelecido pela ordem jurídica e aquilo que é vivenciado na realidade fática. Anualmente, as diversas faculdades de Direito formam um considerável número de bacharéis., o que pressupõe o pleno conhecimento dos direitos e garantias fundamentais. Porém, o que se vê é a assunção de uma visão instrumental do Direito, o que se mostrou, inclusive, tão marcante na ditadura civil-militar (1964-1985) e destacado por Danilo Pereira Lima:

“A partir da relação dos juristas com a ditadura militar (1964-1985), foi demonstrado que o desenho institucional do regime de exceção estava baseado numa cultura jurídica autoritária, pela qual o direito assumiu um caráter instrumental para servir os donos do poder, e não para construir mecanismos de defesa das liberdades civis, políticas e sociais” [3].

As conversas reveladas na operação “spoofing” são estarrecedoras e não podem simplesmente implicar na anulação de processos que não contaram com um magistrado imparcial. É preciso, a partir dela, refletir sobre o que há de errado e como impedir que eventos como esse se repitam.

Somente com a tentativa de superação da mentalidade autoritária é que se mostrará possível sepultar — e sem direito a ressurreição — o sistema de injustiça criminal. Os crimes, ou melhor, o acionamento das agências que compõem a persecução penal deixará de se dar pela cor ou pela classe social da pessoa.

A necessidade dessa proposta de “quaresma cívica” implicará ainda na constatação de que subsistem administradores públicos que simplesmente não sabem — talvez não queiram — conviver com as críticas. A partir dessa aferição serão desveladas as retaliações que são adotadas como soluções destinadas aos que criticam os efêmeros detentores do poder. Considerando a influência religiosa na sugestão apresentada neste texto, é cabível invocar a reação adotada por Helder Câmara diante de um relato feito por um de seus assessores sobre um culto luterano que criticou duramente a Igreja Católica. Eis o relato de Marcelo Barros que aponta para a tolerância diante da crítica:

“Quantas vezes, a nossa Igreja condenou e massacrou essas pessoas (os luteranos)? Aquele pastor tem suas razões para estar revoltado (…) Se queremos trabalhar pela unidade (ecumênica), vamos ter de suportar que nos joguem na cara o que, no passado remoto e também recente, nós, católicos, fizemos de arrogante, injusto de antievangélico” [4].

É claro que não se está a defender o uso irresponsável da crítica, tal como se deu em um dos eventos relatados neste texto. A ideia patrocinada é que o exercício da isegoria, quando implicar em descontentamentos nos detentores do poder e não configure qualquer ilícito civil, administrativo ou penal, não permite a imposição de qualquer sanção.

Essa “quaresma cívica” sugerida não possui qualquer natureza ambiciosa, pois, a partir do reconhecimento da existência de um cotidiano autoritário, o que se visa é valorizar e vivenciar o regime democrático estabelecido legitimamente em 1988. Quiçá se está a defender o óbvio, mas Darcy Ribeiro demonstrava a enorme dificuldade em enxergá-lo [5]. Apesar da apropriação religiosa, a “quaresma cívica” demonstrará que a sociedade brasileira não necessita de qualquer Messias. A “salvação” se dará única e exclusivamente com a irrestrita observância do texto constitucional. Simbolicamente, o 25 de abril de 1976 foi marcado com cravos, que chegaram a ser colocados nos canos de fuzis. Júlio Lancelotti, após exercer o direito de resistência, lançou flores nos ambientes que deixaram de ser hostis. Tomara que em 25 de abril de 2021, ao término da “quaresma cívica”, os brasileiros possam compreender a atualidade do hino revolucionário lusitano e, assim, experimentem a mensagem contida naqueles versos:

“Em cada esquina um amigo Em cada rosto igualdade Grândola, vila morena Terra da fraternidade”.

[1] PASQUALETTE, Bernardo Braga. Me esqueçam – Figueiredo: a biografia de uma presidência. Rio de Janeiro: Record, 2020. p. 18.

[2] “Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar chorando até quando?”, diz Bolsonaro ao criticar medidas de restrição em meio a recorde de mortes por COVID-19. Disponível em: https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2021/03/04/bolsonaro-chega-a-sao-simao-para-inauguracao-de-trecho-da-ferrovia-norte-sul.ghtml

[3] LIMA, Danilo Pereira. Legalidade e autoritarismo. O papel dos juristas na consolidação da ditatura militar de 1964. Salvador: JusPodivm, 2018. p. 263.

[4] BARROS, Marcelo. Dom Helder Câmara. Profeta para os nossos dias. São Paulo: Paulus, 2011. p. 162.

[5] RIBEIRO, Darcy. Sobre o óbvio. Disponível em: http://www.biolinguagem.com/ling_cog_cult/ribeiro_1986_sobreoobvio.pdf

Referências

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