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Judiciário policizado

O artigo aborda a crise institucional no Brasil, destacando como as disputas entre agentes de controle impactam o sistema de justiça e a persecução penal. Gabriel Bulhões ilustra a seletividade do sistema a partir do exemplo das prisões em flagrante, ressaltando a influência das versões apresentadas pela polícia nas decisões judiciais. Além disso, discute a importância das audiências de custódia como um avanço para a correção de distorções no processo penal.

Artigo no Empório do Direito

Por Gabriel Bulhões – 04/09/2016

A crise que vivenciamos hoje no cenário nacional se alastra por vários setores, do político ao econômico, do social ao cultural. Contudo, algumas de nossas crises são mais antigas do que outras, ou ainda mais profundas e/ou enraizadas. A cultura institucional, por exemplo, que é extremamente fortalecida no Brasil, possui severas distorções e reflete esse mister na sociedade que está inserida. Na verdade, culturas institucionais. Explico.

Presenciamos uma disputa institucional – às vezes sutil, outras nem tanto – que muito engessa ou desvirtua o funcionamento e o direcionamento que as instituições devem dar à sociedade brasileira, tanto no plano macro, quanto no micro. Zaffaroni (2012) nos traz que, invariavelmente, as agência de controle (notadamente na América Latina) buscam como objetivo primário imprimir as suas marcas urinárias no processo corrente. As interações entre essas instituições podem convergir, ou divergir a depender da soma dos fatores circunstanciais e conjunturais; mas a delimitação estrutural, em regra, já está definida.

Essa disputa, em algumas situações, se assemelha quase a uma disputa de egos, subjetivamente travada, porém, entre instituições públicas que possuem as mais valorosas e importantes missões, inclusive constitucionalmente atribuídas. Mas isso será tema para outro momento de discussão aqui.

Assim, desenvolvendo aquele raciocínio, e tomando como ilustração a persecução penal e o sistema de justiça criminal, observemos um caso de prisão em flagrante. Aliás, o exemplo adotado é o mais adequado, tendo em vista que a esmagadora maioria das prisões efetuadas no Brasil (e posteriormente convertidas em preventiva) são prisões em flagrante (isso denota a desproporcionalidade entre aquelas prisões fruto de uma política de segurança pública viaturizada e aquelas decorrentes de investigação policial).

Temos, assim, em um flagrante que a Polícia Militar, em regra, visualiza o cometimento de um crime (ou aborda alguém para o famoso “baculejo” em virtude de “atitude suspeita”) e dá voz de prisão ao cidadão (ou cidadã). Nesse momento, nós temos o calcanhar-de-aquiles da nossa política de segurança pública, a qual denota que o foco maior do combate ao crime não está relacionado aos delitos que mais impactam nossa sociedade, os quais envolvem com certeza pactos e reuniões que não se dão ao ar livre.

Aqui, nós temos a primeira e mais importante seletividade do sistema, a seletividade positiva que determina aqueles que vão ser inseridos na dinâmica e virar clientes do sistema penal. Aqui temos, também, a primeira marca urinária da persecução penal. Seria importante desenvolver a diferença prática do que sentimos em termos de violência objetiva e violência subjetiva, mas reservamos essa discussão para outro momento.

Voltando ao caso, teremos o encaminhamento da ocorrência para a Autoridade Policial (da Polícia Civil) para ser lavrado o procedimento necessário (em regra, trata-se do APF – Auto de Prisão em Flagrante). Nesse momento, temos a segunda marca urinária desse “processo” todo. Desde o tratamento dado ao flagranteado, até a forma como o interrogatório é conduzido e as palavras são transcritas, ipsis literis, pelo Escrivão como ditou o Delegado: tudo isso envolve a marca dessa agência no processo todo.

Eu peço licença para ressaltar a importância do recém-avanço da Política Judiciária e Criminal brasileira que é o Projeto Audiências de Custódia, incentivado pelo Min. Ricardo Levandowski enquanto gestor do CNJ. As audiências de custódias, hoje, permitem a constatação de qualquer distorção – entre outros fatores – apontados ou induzidos pelo entendimento até então prevalecente das Polícias Militar e Civil.

Digo prevalecente, pois, antes desse importante avanço, a versão firmada pela Polícia era suficiente para afastar qualquer possibilidade de contraposição – naquele momento inicial – pelo(a) magistrado(a) que iria verificar a legalidade daquele ato, tendo em vista que (por uma série de fatores que não cabem nesse texto) existia uma absoluta impossibilidade de verificar aquela situação apresentada no calhamaço frio de papeis (o APF) de que dispunha. Por isso, de fato, as prisões em flagrante eram mais convertidas em preventiva. Prendia-se mais; mas, não se prendia melhor. Isso por uma razão simples: prendia-se desnecessariamente por cautela e impossibilidade de verificar os motivos ensejadores da custódia cautelar, tendo-se como único elemento de referência os dados apresentados pela Autoridade Policial. Percebem, agora, a importância das marcas urinárias?

Pois bem. Voltamos ao raciocínio e percebemos que após a lavratura do flagrante, espera-se que ocorra a audiência de custódia e daí se inicie a fase judicial da persecução, com a aguardada influência mais incisiva da defesa e a diligência incessante do Ministério Público, tudo sob a presidência de um Juiz (ou Juíza).

Por certo, a seletividade positiva levada a cabo pela Polícia é determinante para os rumos da persecução penal e com reflexos diretos no Sistema de Política Criminal e no Sistema Prisional que vivenciamos, os quais estão em deplorável estado ao ponto de alguns sequer os considerarem – na acepção genuína da palavra – sistemas. Estão assim por essa e outras razões, sem deixar jamais de fazermos, cada um, nossa mea culpa.

Assim, a depender da postura e do entendimento do Juízo, o qual está – aparentemente – completamente amparado pelo Princípio do Livre Convencimento Motivado, qualquer entendimento apresentado pela Polícia terá o condão de influenciar fortemente a decisão judicial, podendo ser descartado qualquer esforço da defesa sem muita argumentação para tal. Assim, as versões apresentadas pela Autoridade Policial, ou pelas equipes de investigação de alguma unidade especializada da nossa polícia judiciária, ou ainda pelo depoimento dos condutores (que em regra são os únicos testemunhos arrolados pela acusação durante a fase judicial, consistindo em um ou dois policiais militares que realizaram a diligência a qual culminou na prisão em flagrante que então se discute no processo) possuem peso indiscutível no Processo Penal, principalmente em algumas varas do Brasil afora.

No caso concreto, um imóvel invadido, por uma equipe de uma delegacia especializada em narcóticos, que não estava caracterizada e não se identificou aos vizinhos nem apresentou mandado ou ordem judicial (pois de fato não existia), que não estava com o morador presente, foi invadida e sob o pretexto de fundada suspeita revistaram o imóvel e supostamente encontraram meio quilo de maconha e quarenta comprimidos de ecstasy. A justificativa? A alegação de uma pessoa que tinha sido presa com maconha e tinha afirmado que ali era o imóvel de seu fornecedor. O que estranha? Essa pessoa supostamente delatora negou tal informação na lavratura do APF, na Audiência de Custódia e na Audiência de Instrução e Julgamento (AIJ); tendo afirmado, ainda, que durante sua prisão os policiais faziam perguntas induzidas sobre uma pessoa específica e afirmavam que “já sabiam que ele era o seu fornecedor”. Ainda, durante seu interrogatório na AIJ afirmou que havia um policial que sempre o ameaçava, que era inclusive o que havia tomado o seu celular e a senha de acesso forçada que resultou na conversa que marcou um encontro no Shopping mais movimentado da cidade e que resultou na prisão em flagrante (sic) do dono do imóvel no meio da praça de alimentação – ocasião na qual não foi encontrada nenhuma droga nem material suspeito com este.

No seu interrogatório, o dono do imóvel disse que não sabia da existência da droga, que foi abordado por policiais descaracterizados (no meio da praça de alimentação do Shopping) que não se identificaram, não informaram o motivo da sua prisão e o algemaram, conduzindo-o a um veículo também descaracterizado e seguindo até a delegacia, onde soube do que estava sendo acusado, pelo mesmo policial que havia o prendido uma vez por porte de uma pequena quantidade de droga, que incessantemente lhe dizia: “dessa vez você vai ver, vou dar um jeitinho de você passar 10 anos!”. E foi quase…

A prisão em flagrante (sic) foi considerada legal pelo Juízo competente e convertida em preventiva. Após a instrução, a versão da polícia prevaleceu, e o depoimento do Policial que havia sido responsável pela primeira prisão do dono do imóvel – aquele que achou a droga após invadir o imóvel sem mandado, suspeita real ou presença do morador – foi o sustentáculo da condenação. 6 anos de prisão. E agora isso me fez ter vontade sobre outra coisa: Injustiças da Justiça; mas, isso é tema para uma outra hora!

. . Gabriel Bulhões é Advogado criminalista militante, atual Presidente da Comissão dos Advogados Criminalistas da OAB/RN, especialista em Ciências Criminais e Professor de Processo Penal. .

Imagem Ilustrativa do Post: O GIGANTE ACORDOU 19/06/13 // Foto de: Maria Objetiva // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/mariaobjetiva/9090219974/

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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