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Crime e antecipação do castigo: a prática ilegal em favor de um bem maior

O artigo aborda a recente decisão do Superior Tribunal de Justiça no HC 666.035/SP, que permite a prisão preventiva com base em conceitos vagos como “garantia da ordem pública”. Os autores, Paloma Gurgel de Oliveira Cerqueira Bandeira e Antonio Belarmino Junior, criticam a mudança de paradigma que enfraquece a presunção de inocência, apontando que a liberdade deve ser respeitada e a prisão preventiva utilizada apenas em casos realmente excepcionais. Eles argumentam que a atuação do Judiciário tem fomentado uma cultura punitivista, em detrimento dos direitos fundamentais dos cidadãos.

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A recente decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça no âmbito dos autos AgRg no HC 666.035/SP definiu que é cabível a decretação da prisão preventiva com base na manutenção e preservação da garantia da ordem pública, conceito por demais aberto e vago presente no Código de Processo Penal.

Para aquele órgão, circunstâncias como a quantidade, variedade e natureza das drogas apreendidas, bem como a existência de inquéritos penais e/ou ações penais não transitadas em julgado em desfavor do agente seria suficiente para justificar a exigência legal constante do Código de Processo Penal acerca da garantia da ordem legal.

A 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em mais uma decisão contraditória, decidiu que inquéritos policiais e ações penais em curso justificariam a imposição de prisão preventiva para, supostamente, evitar a “reiteração delitiva”, e com isso garantir a controversa “ordem pública”.

Não é de hoje que os nossos Tribunais Superiores têm, infelizmente, tomado decisões nada ortodoxas em relação aos direitos e garantias constitucionalmente previstos a todos os cidadãos. A liberdade, como um dos principais direitos inerentes ao homem, não poderia, nesse interim, passar incólume por essa sanha punitivista que tem tomado de conta das decisões tomadas pelas Cortes Superiores, principalmente se tratando de matéria penal. Lamentavelmente, a decisão em epígrafe vem para consolidar um exacerbo da “justiça” penal em detrimento do direito das pessoas, no melhor estilo “bate primeiro, pergunta depois”.

Apesar da revolução promovida por nossa Carta Magna no âmbito dos direitos fundamentais, veem-se resquícios dos períodos inquisitoriais de outrora, especialmente no âmbito do processo penal. Inegável que o nosso Código de Processo Penal remonta à época do Governo Getúlio Vargas, com claras inspirações fascistas. Mesmo com todo o avanço promovido pela Constituição, e pelas diversas alterações legislativas promovidas ao longo de todos esses anos no CPP, o viés punitivista mantém-se forte em nossa sociedade, principalmente dentre aqueles que deveriam ser a última barreira de defesa dos direitos de todo cidadão frente à sanha de punir do Estado: os juízes.

É perceptível na ementa do julgado ora sob análise a mudança do paradigma constitucional de presunção de inocência. Se, por um lado, a Constituição assegura que todos são inocentes até que se prove o contrário, até que não caiba mais recurso dessa decisão, por outro o Superior Tribunal de Justiça entendeu que essa presunção não é tão presumível assim.

A prisão preventiva, enquanto instituto jurídico de medida cautelar, tem caráter eminentemente excepcional, devendo ser utilizada – obviamente – em situações excepcionais, legalmente delimitadas, que justifiquem a medida e que estejam de acordo com os preceitos da nossa Carta Magna. A sua aplicação, em qualquer cenário diferente do acima exposto, é flagrantemente inconstitucional devendo ser rechaçada não só pelos juízes e tribunais, mas por toda a sociedade.

A decisão proferida pela egrégia Corte revela uma mudança de paradigma constitucional, onde a privação da liberdade do indivíduo passa a ser vista cada vez mais como regra em detrimento da instrução processual penal. É justamente por isso que se faz importante uma análise detida das implicações legais e jurídicas da decisão exarada no julgamento do habeas corpus 666.035/SP.

As recentes inovações e convicções formadas no âmbito do processo penal vêm alterando substancialmente a essência do Direito à Liberdade consagrado na nossa lei maior. O Direito Processual Penal brasileiro vem, cada vez mais, tornando regra o que deveria ser exceção. As mudanças de paradigma ocorridas ao longo dos anos, principalmente recentemente, o clamor público pela punição exacerbada e o claro posicionamento conversador dos nossos julgadores tem revelado cada vez mais uma sanha punitivista.

Sucessivas alterações foram sendo feitas no instituto na prisão preventiva, inclusive com a retirada da prisão preventiva obrigatória em 1967. O avançado promovido através da lei 5.349/67, perdurou em nosso ordenamento, sendo ratificado posteriormente pela Constituição Cidadã de 88.

Apesar das inúmeras mudanças legislativas e de entendimento sobre o tema, uma constante vinha se mantendo até os dias de hoje: a de que a prisão preventiva deve ser encarada como uma medida de exceção, somente aplicável em razão de fatos e circunstâncias graves que verdadeiramente justifiquem a sua decretação.

É, no mínimo curioso, observar que, em um Estado Democrático de Direitos, os principais requisitos para decretação da prisão preventiva sejam a “garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal.

Conceitos legais tão amplos como garantia da ordem pública e conveniência da instrução criminal não deveriam ser motivos suficientes para a retirada do status libertatis dos indivíduos. Problema maior ainda é perceber que o próprio Código de Processo Penal sequer esclarece o que seriam tais requisitos, deixando-os totalmente abertos ao livre arbítrio e entendimento do julgador.

Não à toa a nossa Constituição Federal vigente é chamada de Constituição Cidadã. Foi a primeira, em muito tempo, a definir e garantir expressamente uma série de direitos e garantias fundamentais. Apesar de podemos vê-los espalhados por todo o texto da constituição, a grande verdade é que tais direitos se concentram especialmente no artigo 5º da Carta Magna1. É nele que também estão as principais diretrizes sobre o direito fundamental à liberdade.

Conquistada à duras penas, a presunção de inocência é uma garantia constitucional que visa resguardar a liberdade do indivíduo enquanto houver a possibilidade de apresentar recursos processuais. É uma clara limitação à imposição da prisão cautelar como antecipação da prisão definitiva, que somente poderá ocorrer após o trânsito em julgado da ação penal.

Segundo consta do relatório proferido nos autos do AGRG HC 666.035/SP, o réu teria sido apreendido em flagrante delito pela suposta prática do delito descrito no art. 33 da lei de drogas.

Partindo-se da premissa de que todas as informações constantes da decisão são a verdade real – buscada ao longo de toda a instrução processual, ainda assim, não poderíamos afirmar que os fatos narrados ensejam a prisão preventiva do réu. Em nenhum momento da decisão ora analisada os julgadores explicitaram, de forma clara, quais os riscos envolvidos na garantia do direito de liberdade do réu. Pelo contrário, a todo momento induziram que a liberdade do indivíduo representaria um ”risco possível“, seja de reiteração delitiva, seja de ausentar-se da jurisdição penal estatal.

É sabido que o Direito Processual Penal, por se tratar da ultima ratio do Direito, não lida, ou pelo menos deveria lidar, com hipóteses, mas tão somente com certezas. Aliás, esse é justamente o espírito insculpido no princípio da presunção de inocência constitucionalmente assegurado.

Na decisão em comento, com os elementos dos autos noticiados, fica evidentemente claro que o indivíduo foi privado do seu direito à liberdade meramente com base em ilações. Supôs-se que ele iria praticar novos crimes. Supôs-se que ele iria fugir da justiça. Supôs-se, pelo menos implicitamente, até mesmo que ele fosse culpado de todas as acusações que estava enfrentando, afinal, só pode ”reiterar práticas delitivas“ a pessoa que se tem a certeza de que já praticou alguma.

Percebe-se, sem qualquer esforço cognitivo, que naqueles autos, uma pessoa teve a sua liberdade cerceada por meras inferências dos fatos e atos narrados nos autos. O que deveria ser a presunção de inocência tornou-se claramente a certeza da prática e culpabilidade delitiva do suposto agente.

É notória a inversão de valores sociais no atual momento em que estamos vivendo enquanto sociedade jurídica, uma vez que estamos transformando (ou mesmo aceitando a transformação de) um instituto jurídico que tem vez e fundamentos definidos em lei, para além dos parâmetros constitucionais, em algo voltado para a antecipação da pena. Não foi para isso que ele foi criado, mas tem sido para essa finalidade que ele tem sido infelizmente utilizado.

Ao final podemos concluir que a decisão exarada pelo Superior Tribunal de Justiça fere frontalmente os ditames legais e constitucionais da nossa sociedade, atacando diretamente o direito constitucionalmente assegurado a todos à liberdade..

Podemos concluir que o STJ inovou em nossa ordem jurídica, decidindo de forma totalmente descompassada e contrária ao que apregoa o núcleo fundamental do nosso ordenamento. A liberdade, direito tão caro e conquistado à duras penas ao longo de anos, e ao custo de vidas, vem sendo cada vez mais limitado, com o aval de órgãos e pessoas que teriam justamente a função contrária: proteger tais garantias.

1 Constituição Federal 1988

Referências

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