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Dividir competências não é suficiente evitar contaminação do juiz do processo

O artigo aborda a discussão sobre a figura do juiz das garantias no sistema penal brasileiro, destacando que a mera divisão de competências entre juízes nas fases de investigação e processo não elimina a contaminação do juiz do processo. Os autores, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho e Bruno Augusto Vigo Milanez, argumentam que a separação proposta não garante a imparcialidade necessária, devido ao caráter inquisitorial do procedimento, o que compromete a democratização do processo penal. Além disso, enfatizam que o juiz da fase de investigação pode atuar como um facilitador da acusação, prejudicando a proteção dos direitos do investigado.

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Em recente decisão cautelar, no âmbito da ADI 6.298-MC/STF, o ministro Dias Toffoli afirmou que a experiência do juiz das garantias existe no âmbito do processo penal brasileiro, mesmo antes da Lei 13.694/19:

“Ressalte-se, inclusive, que a figura do juiz das garantias não é nova no sistema jurídico pátrio. Na capital paulista, funciona, há décadas, o Departamento de Inquéritos Policiais (DIPO), o qual, nos termos do Provimento nº 167/1984, concentra ‘[t]odos os atos relativos aos inquéritos policiais e seu incidentes, bem como os pedidos de habeas corpus’ (artigo 2º). Portanto, em São Paulo já ocorre a cisão de competência determinada pela lei questionada, ficando a atividade de supervisão dos atos de investigação a cargo dos juízes especialmente designados para tanto, atuantes no Departamento de Inquéritos Policiais. O fato de os juízes do DIPO não serem competentes para o recebimento da denúncia não desnatura sua função, na essência, de juiz das garantias.”

É possível referir algumas experiências, no Brasil, em que se pretendeu fracionar as competências da persecução penal, em que um juiz atuaria na fase de investigação e outro durante o processo de conhecimento.

Assim, por exemplo, criou-se na Comarca de São Paulo, através do Provimento 167, de 27 de janeiro de 1984, o Serviço de Inquéritos Policiais. Na forma do artigo 2º, do Provimento 167/84, “todos os atos relativos aos inquéritos policiais e seus incidentes, bem como os pedidos de habeas corpus, serão processados perante o Juiz Corregedor e Juízes Auxiliares designados para o serviço ora criado. Aqueles incidentes compreendem, inclusive autos de prisão em flagrante, pedidos de restituição de coisas apreendidas e pedidos de prisão preventiva.”

A competência dos juízes do Serviço de Inquéritos Policiais, na forma da regra do artigo 6º, do Provimento 167/84, cessa “com a manifestação final do Ministério Público” nos inquéritos policiais, quando os autos “retornarão aos Distribuidores Criminais, para distribuição às Varas”.

Após o exercício do direito de ação, cessa a competência dos juízes da fase de investigação, cabendo ao juiz do processo realizar o juízo de admissibilidade (positivo ou negativo) da acusação.

Posteriormente, criou-se o Departamento de Inquéritos Policiais e Polícia Judiciária (DIPO), através do Provimento 233/1985, do Conselho Superior da Magistratura do TJ/SP, tendo-se repetido, na parte das funções jurisdicionais, o quanto disposto na regra do artigo 2º, do Provimento 167/84.

Em 2013, o DIPO é formalmente incorporado à organização judiciária de São Paulo, através da Lei Complementar Estadual 1.208/2013 (posteriormente alterada pela Lei Complementar Estadual 1.214/2013), que na regra do artigo 1º, caput, instituiu o Departamento Estadual de Inquéritos Policiais, mantendo-se a separação do juiz com atuação na fase de investigação preliminar em relação ao juiz da fase processual.

Em sentido análogo, criou-se através do Decreto Judiciário 543/93, a Central de Inquéritos Policiais na Comarca de Curitiba, “para controle de inquéritos policiais, demais peças informativas e outros feitos de natureza criminal ainda não distribuídos, de competência das Varas Criminais não especializadas e do Tribunal do Júri.”

Segundo a regra do artigo 6º, do DJ 543/1993, competia ao juiz da Central de Inquéritos, dentre outras funções, “decidir sobre matéria afeta ao plantão judiciário” (inc. II), “decidir a respeito de outras medidas judiciais em inquéritos policiais” (inc. III) e “determinar o arquivamento do inquérito, peça informativa ou outro feito de natureza criminal, na forma da lei, ou tomas as providências previstas no artigo 28, do CPP” (inc. IV).

A competência do juiz da Central de Inquéritos cessava com o oferecimento da denúncia ou queixa (artigo 4º, do DJ 543/1993), quando os autos do processo eram distribuídos a outro juiz de primeiro grau com competência criminal, para realizar o juízo de admissibilidade da acusação e, em caso de recebimento da inicial acusatória, prosseguir na presidência do processo de conhecimento.

Posteriormente, com a Resolução 70/2012, a Central de Inquéritos é renomeada para Vara de Inquéritos Policiais, com competência para “exercer o controle jurisdicional” dos inquéritos policiais “bem como peças informativas e outros feitos de natureza criminal prévios à ação penal” (artigo 8º, § 7º, I). No âmbito legislativo formal, as Varas de Inquéritos Policiais são inseridas na organização e divisão judiciárias do Estado do Paraná com a regra do artigo 254, d e k, da Lei Estadual 14.277/2013.

Inicialmente, havia apenas uma Vara de Inquéritos Policiais em Curitiba/PR. Com o artigo 254, k, da Lei Estadual 14.277/2013, determinou-se a criação da 2ª Vara de Inquéritos Policiais, a qual foi instalada em 2013, nos termos da Portaria 1.279/2012. Contudo, com a Resolução 82/2013, a competência da 1ª e 2ª Vara de Inquéritos Policiais passou a abranger não apenas o controle dos inquéritos policiais e peças informativas (artigo 8º, § 1º, II), mas também o processo e julgamento de ações penais e seus incidentes (artigo 8º, § 1º, I, a).

Em termos práticos, o ato normativo extinguiu a separação entre o juiz da fase de investigação e o juiz do processo. A repartição de competências é retomada, no plano formal, com a Resolução 197/2018, que inseriu a regra do artigo 139-A, na Resolução 93/2012, novamente contemplando a competência da 1ª e 2ª Varas de Inquéritos Policiais exclusivamente para exercer o controle jurisdicional sobre inquéritos policiais e demais peças informativas (caput), prevendo-se ainda que, “oferecida a denúncia, os inquéritos policiais serão remetidos à Vara Criminal para a qual constou a prévia distribuição” (§ 2º). Em termos práticos, porém, ainda não se retomou a repartição de competências, dado que a regra do artigo 9º, da Resolução 197/2018, prevê a suspensão da eficácia do artigo 139-A “enquanto não instaladas as 1ª e 2ª Varas de Inquéritos Policiais”

Ainda que tais experiências, de São Paulo e Curitiba, evidenciem a separação entre o juiz da fase de investigação e o juiz da fase processual, servem elas para demonstrar que — diferentemente do que sugere o Min. Dias Toffoli — a simples repartição de competências jurisdicionais, inseridas no âmbito de um modelo inquisitorial, quase nada contribuem para a democratização processual penal. Mais do que isso, a simples separação não equivale à figura do juiz das garantias, que deve ser pensado não apenas a partir de um critério topográfico, mas em um critério sistêmico, vale dizer, dentro da lógica maior que rege o sistema acusatório e seus consectários de publicidade, oralidade e vedação da iniciativa de ofício do juiz.

A experiência da repartição de competências entre o juiz da investigação e o juiz do processo, havida em casos pontuais no Brasil, não se equipara à figura do juiz das garantias por inúmeros fundamentos.

Em primeiro lugar, pois o modelo de investigação preliminar segue baseado no inquérito policial ou nos procedimentos administrativos conduzidos pelo órgão do Ministério Público, sendo os atos investigativos realizados de forma eminentemente sigilosa (artigo 20, do CPP) e escrita (artigo 9º, do CPP), sem qualquer intervenção da defesa ou participação do investigado, que segue sendo pensado como mero objeto da investigação.

Nunca houve, na sistemática do CPP/1941 a possibilidade de participação dialética e contraditória do investigado na formação dos atos investigativos, limitando-se a sua atuação, no mais das vezes, ao conhecimento dos atos investigativos, após formalizados nos autos escriturados do inquérito, e à possibilidade de ser interrogado (ou permanecer em silêncio) no interrogatório extrajudicial.

Mais do que isso, a referida repartição de competências nunca veio acompanhada de regra específica a vedar a iniciativa probatória de ofício do juiz da fase investigativa. Ao revés, a regra do artigo 156, I, do CPP — fruto da reforma parcial promovida pela Lei 11.690/2008 — faculta ao juiz, de ofício, “ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida”.

Assim, o juiz da fase de investigação, ao ter a prerrogativa de ordenar diligências investigativas de ofício, atua como verdadeiro auxiliar — ou mesmo protagonista — dos órgãos de investigação, colaborando ativamente com a produção de elementos de conhecimento que, posteriormente, podem ser utilizados na formação da opinio delicti do órgão de acusação, bem como em eventual juízo positivo de admissibilidade da inicial. Tem-se aqui um verdadeiro juiz investigador e não um juiz das garantias.

Mais do que isso, a deturpação das funções do juiz da fase investigativa e a demasiada aproximação e auxílio aos órgãos de investigação contribuem para que a função de garantidor dos direitos do cidadão investigado, em sistemas inquisitoriais, possa se converter em mera chancela de requerimentos dos órgãos de investigação ou até mesmo em instância jurisdicional de ratificação de diligências de constitucionalidade e legalidade duvidosas.

Isso sem descurar para o fato de que a almejada maximização da imparcialidade do juiz da fase processual, que em modelos acusatórios não tem contato direto com os elementos informativos produzidos na fase investigativa, é fortemente reduzida — senão anulada — com a previsão do artigo 12, do CPP, de acordo com a qual “o inquérito policial acompanhará a denúncia ou queixa, sempre que servir de base a uma ou outra”.

A originalidade cognitiva do juiz do processo, havida em modelos acusatórios, é impossível no sistema inquisitório, mesmo quando promovida a repartição de competências, dado que absolutamente todos os elementos produzidos na fase investigativa, perante o juiz do inquérito, são amplamente cognoscíveis pelo juiz da fase processual, ante a inexistência de regra que preveja a exclusão física dos autos do inquérito policial, após o juízo positivo de admissibilidade da acusação pelo juiz das garantias.

Em outras palavras, mesmo que o juízo de admissibilidade da acusação seja realizado pelo juiz da fase investigativa, haverá contaminação do juiz do processo pelos atos investigativos se estes seguirem encartados nos autos do processo.

Referências

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