Artigos Conjur – Você confia na sua memória? O processo penal depende dela (parte 2)

Artigos Conjur
Artigos Conjur || Você confia na sua memória?…Início / Conteúdos / Artigos / Conjur
Artigo || Artigos dos experts no Conjur

Você confia na sua memória? O processo penal depende dela (parte 2)

O artigo aborda o reconhecimento pessoal no processo penal, destacando a necessidade de formalidades e cuidados ao conduzir tais identificações. O autor, Aury Lopes Jr., critica as práticas informais que ignoram garantias legais e discute como fatores psicológicos e sociais podem distorcer a memória das vítimas e testemunhas, levando a identificações imprecisas. Além disso, salienta a importância de um protocolo rigoroso para preservar a credibilidade dessa prova, a fim de evitar injustiças que podem surgir de reconhecimentos mal realizados.

Artigo no Conjur

Agora, o foco será o ‘reconhecimento pessoal’. Como explico na obra Direito Processual Penal (11ª edição, editora Saraiva, 2014), o reconhecimento pessoal é um ato através do qual alguém é levado a analisar alguma pessoa ou coisa e, recordando o que havia percebido em um determinado contexto, compara as duas experiências.[1] Quando coincide a recordação empírica com essa nova experiência levada a cabo em audiência ou no inquérito policial, ocorre o reconhecer. Partimos da premissa de que é reconhecível tudo o que podemos perceber, ou seja, só é passível de ser reconhecido o que pode ser conhecido pelos sentidos. Nessa linha, o conhecimento por excelência é o visual, assim previsto no CPP. Contudo, silencia o Código no que se refere ao reconhecimento que dependa de outros sentidos, como o acústico, olfativo ou táctil. Carecemos de um dispositivo similar ao artigo 216 do Códice di Procedura Penale italiano, que prevê:

Art. 216. Altre Ricognizioni 1. Quando dispone la ricognizione di voci, suoni o di quanto altro può essere oggetto di percezione sensoriale, il giudice procede osservando le disposizioni dell’art. 213 [que trata do reconhecimento de pessoas], in quanto applicabili. [2]

O reconhecimento de pessoas e coisas está previsto nos artigos 226 e seguintes do CPP, e pode ocorrer tanto na fase préprocessual como também processual.

Antes de entrar no tema, sublinho que entendo que o reconhecimento somente pode ocorrer com o consentimento do imputado. Não existe dever de participar e ele está protegido pelo nemo tenetur se detegere, ou seja, não é obrigado a participar do ato e não pode ser compelido. Sem embargo, reconheço que existem autores e entendimentos diversos. Mas minha posição é muito clara: o imputado não está obrigado a participar. Feito esse esclarecimento, sigamos.

O ponto de estrangulamento é o nível de (in)observância por parte dos juízes e delegados da forma prevista no Código de Processo Penal. Trata‑se de uma prova cuja forma de produção está estritamente definida e, partindo da premissa de que — em matéria processual penal — forma é garantia, não há espaço para informalidades judiciais. Infelizmente, prática bastante comum na praxe forense consiste em fazer “reconhecimentos informais”, admitidos em nome do princípio do livre convencimento motivado. É um absurdo quando um juiz questiona a testemunha ou vítima se “reconhece(m) o(s) réu(s) ali presente(s) como sendo o(s) autor(es) do fato”. Essa “simplificação” arbitrária constitui um desprezo à formalidade do ato probatório, atropelando as regras do devido processo e, principalmente, violando o direito de não fazer prova contra si mesmo. Por mais que os tribunais brasileiros façam vista grossa para esse abuso, argumentando às vezes em nome do “livre convencimento do julgador”, a prática é ilegal e absurda.

Na Espanha, “la diligencia de reconocimiento en rueda” (reconhecimento pessoal) está previsto nos artigos 368 e seguintes da LECrim e é considerada uma prova típica da fase préprocessual, sendo “atipica e inidónea para ser practicada en el plenário o acto del juicio oral” (as primeiras sentenças do Tribunal Supremo nesse sentido são de 7 de dezembro de 1984 e 5 de março de 1986). Argumentam que a identificação do acusado é uma função típica da investigação preliminar, sem a qual não se pode produzir a acusação. Por outro lado, há uma preocupação muito grande (e incrivelmente desconsiderada pelo sistema judiciário brasileiro) de que a repetição dessa prova em juízo é extremamente problemática, pois é praticamente inviável repetir em juízo a “roda de reconhecimento” com as mesmas pessoas que estavam presentes na fase preliminar. Logo, a única pessoa cuja presença estaria sendo repetida em ambos os atos seria o réu, e isso constitui um inequívoco induzimento ao reconhecimento. Na sentença de 24 de junho de 1991, o Tribunal Supremo da Espanha alertou ainda da dificuldade de repetir o reconhecimento quando da primeira vez foi realizado de forma incorreta, pois “existe o grave perigo de que a pessoa que na primeira ocasião reconheceu mal, porque a diligência estava mal constituída, siga reconhecendo não ao partícipe do fato criminoso, senão a quem foi defeituosamente identificado”.[3]

Tais questões são da maior relevância, mas nunca mereceram qualquer atenção por parte da doutrina ou jurisprudência brasileira… Daí por que há uma errônea cultura de simplificação das formas, que ao informalizar o ato reduz a esfera de garantias fundamentais.

Para além disso, o reconhecimento pessoal tem que ser problematizado à luz dos recentes estudos de psicologia social, especialmente em relação a memória e sua deturpação.

Tomando por ponto de partida os estudos de Real Martinez, Fariña Rivera e Arce Fernandez,[4] que necessariamente devem ser complementados pelas lições de Loftus,[5] devese considerar a existência de diversas variáveis que modulam a qualidade da identificação, tais como o tempo de exposição da vítima ao crime e de contato com o agressor; a gravidade do fato (a questão da memória está intimamente relacionada com a emoção experimentada); o intervalo de tempo entre o contato e a realização do reconhecimento; as condições ambientais (visibilidade, aspectos geográficos etc.); as características físicas do agressor (mais ou menos marcantes); as condições psíquicas da vítima (memória, estresse, nervosismo etc.); a natureza do delito (com ou sem violência física; grau de violência psicológica etc.), enfim, todo um feixe de fatores que não podem ser desconsiderados.

A presença de arma distrai a atenção do sujeito de outros detalhes físicos importantes do autor do delito, reduzindo a capacidade de reconhecimento. O chamado efeito do foco na arma é decisivo para que a vítima não se fixe nas feições do agressor, pois o fio condutor da relação de poder que ali se estabelece é a arma. Assim, tal variável deve ser considerada altamente prejudicial para um reconhecimento positivo, especialmente nos crimes de roubo, extorsão e outros delitos em que o contato agressorvítima seja mediado pelo uso de arma de fogo.

Também se devem considerar as expectativas da testemunha (ou vítima), pois as pessoas tendem a ver e ouvir aquilo que querem ver e ouvir. Daí por que os estereótipos culturais (como cor, classe social, sexo etc.) têm uma grande influência na percepção dos delitos, fazendo com que as vítimas e testemunhas tenham uma tendência de reconhecer em função desses estereótipos (exemplo típico ocorre nos crimes patrimoniais com violência — roubo — em que a raça e perfil socioeconômico são estruturantes de um verdadeiro estigma).[6]

Ainda que o criminoso nato de Lombroso seja apenas um marco histórico da criminologia, é inegável que ele habita o imaginário de muitos (principalmente em países com profundos contrastes sociais, baixo nível cultural e, por consequência, alto índice de violência urbana como o nosso). Assim, um dos estereótipos mais presentes, apontam os autores, é o de que “lo que es hermoso es bueno”(o que é bonito, é bom). Um rosto mais bonito e atraente possui — aos olhos de muitos — mais traços de uma conduta socialmente desejável e aceita, do que uma cara feia…

Cicatrizes, principalmente na face ou em lugares visíveis, são consideradas anormais, indicando uma conduta também anormal. Elementar que tudo isso é um absurdo a nossos olhos, mas basta que olhemos em volta, para ver que tais pensamentos habitam o imaginário de muita gente.

Outra variável é a “transferência inconsciente”, quando a testemunha ou vítima indica uma pessoa que viu, em momento concomitante ou próximo àquele em que ocorreu o crime, dentro do crime, geralmente como autor. Citam os autores[7] o estudo de Buckhout, que simulou um roubo na frente de 141 estudantes e, sete semanas depois, pediu-lhes que reconhecessem o assaltante em um grupo de 6 fotografias. Sessenta por cento dos sujeitos realizaram uma identificação incorreta. Entre eles, 40% selecionaram uma pessoa que viram na cena do crime, mas que era um inocente espectador. LOFTUS obteve resultados similares em experiências do gênero.

O “efeito compromisso” (Gorenstein e Ellsworth) é definido quando ocorre uma identificação incorreta (por exemplo, quando a pessoa analisa muitas fotografias e elege erroneamente o sujeito) e posteriormente realiza um reconhecimento pessoal.

Nesse caso, o agente tende a persistir no erro, advertindo os autores de que não se deve proceder ao reconhecimento pessoal depois do reconhecimento por fotografias, pois há um risco muito grande de que ele mantenha o compromisso anterior, ainda que tenha dúvidas. Afirmam ainda que “isso é muito perigoso, dado que a polícia, na sua investigação, utiliza esse tipo de estratégia com as testemunhas presenciais.[8]

Muitas vezes, antes da realização do reconhecimento pessoal, a vítima/testemunha é convidada pela autoridade policial a examinar ‘álbuns de fotografia’, buscando já uma pré-identificação do autor do fato. O maior inconveniente está no efeito indutor disso, ou seja, estabelece-se uma “percepção precedente”, ou seja, um pré-juízo que acaba por contaminar o futuro reconhecimento pessoal. Não há dúvida de que o reconhecimento por fotografia (ou mesmo quando a mídia notícia os famosos ‘retratos falados’ do suspeito) contamina e compromete a memória, de modo que essa ocorrência passada acaba por comprometer o futuro (o reconhecimento pessoal), havendo uma indução em erro. Existe a formação de uma imagem mental da fotografia, que culmina por comprometer o futuro reconhecimento pessoal. Trata-se de uma experiência visual comprometedora.

Portanto, é censurável e deve ser evitado o reconhecimento por fotografia (ainda que seja mero ato preparatório do reconhecimento pessoal), dada a contaminação que pode gerar, poluindo e deturpando a memória. Ademais, o reconhecimento pessoal também deve ter seu valor probatório mitigado, pois evidente sua falta de credibilidade e fragilidade.

Elementar que a confiabilidade do reconhecimento também deve considerar a pressão policial ou judicial (até mesmo manipulação) e a inconsciente necessidade das pessoas de corresponder à expectativa criada, principalmente quando o nível sociocultural da vítima ou testemunha não lhe dá suficiente autonomia psíquica para descolar‑se do desejo inconsciente de atender (ou de não frustrar) o pedido da “autoridade” (paicensor).

Malpass e Devine, citados pelos autores, realizaram uma simulação interessante. Montado o reconhecimento, foi informado aos presentes (aqueles que deveriam proceder à identificação) que o autor do delito estava provavelmente presente (quando na verdade não estava). Setenta e oito por cento dos sujeitos reconheceram erroneamente o agressor. Mas quando avisaram que o autor podia não estar presente, o índice de reconhecimento caiu para 33%. Definitivamente, a forma como é conduzido e montado o reconhecimento afeta o resultado final, de forma muito relevante.

A situação é mais preocupante quando verificamos que a imensa parcela dos reconhecimentos, no Brasil, é feita sem a presença de advogado, sem oportunidade de recusa por parte do imputado (pois preso temporariamente ou até ilegalmente conduzido coercitivamente), no interior de delegacias de polícia, sem qualquer controle. Não menos grave é a rotineira prática judicial de, em audiência, simplesmente perguntar à testemunha/vítima: “a senhora reconhece o réu ali sentado como sendo o agressor?”.

O absurdo é total.

O reconhecimento pessoal é uma prova que poderá ser decisiva em um julgamento, especialmente quando a tese é negativa de autoria. Por isso, há um alerta mundial sobre a forma como deve ser feito e as diversas cautelas que se deve ter para não deturpar essa prova. O problema brasileiro começa na parca disciplina legal (especialmente em relação ao número de participantes), na forma utilizada (reconhecimento simultâneo e não sequencial (trataremos disso na próxima coluna)) e, principalmente, na falta de um preparo específico da polícia judiciária para máxima preservação da originalidade da memória da testemunha/vítima. A cautela para não haver induções e tampouco a poluição/defraudação da memória é crucial para que se possa dar credibilidade ao reconhecimento pessoal, sob pena de continuarmos a cometer graves erros judiciários, infelizmente tão comuns na nossa realidade judiciária.

Referências

Relacionados || Outros conteúdos desse assunto
    Mais artigos || Outros conteúdos desse tipo
      Aury Lopes Jr || Mais conteúdos do expert
        Acesso Completo! || Tenha acesso aos conteúdos e ferramentas exclusivas

        Comunidade Criminal Player

        Elabore sua melhor defesa com apoio dos maiores nomes do Direito Criminal!

        Junte-se aos mais de 1.000 membros da maior comunidade digital de advocacia criminal no Brasil. Experimente o ecossistema que já transforma a prática de advogados em todo o país, com mais de 5.000 conteúdos estratégicos e ferramentas avançadas de IA.

        Converse com IAs treinadas nos acervos de Aury Lopes Jr, Alexandre Morais da Rosa, Rodrigo Faucz, Gabriel Bulhões, Cristiano Maronna e outros gigantes da área. Explore jurisprudência do STJ com busca inteligente, análise de ANPP, depoimentos e muito mais. Tudo com base em fontes reais e verificadas.

        Ferramentas Criminal Player

        Ferramentas de IA para estratégias defensivas avançadas

        • IAs dos Experts: Consulte as estratégias de Aury Lopes Jr, Alexandre Morais da Rosa, Rodrigo Faucz, Gabriel Bulhões e outros grandes nomes por meio de IAs treinadas em seus acervos
        • IAs de Jurisprudência: Busque precedentes com IAs semânticas em uma base exclusiva com mais de 200 mil acórdãos do STJ, filtrados por ministro relator ou tema
        • Ferramentas para criminalistas: Use IA para aplicar IRAC em decisões, interpretar depoimentos com CBCA e avaliar ANPP com precisão e rapidez
        Ferramentas Criminal Player

        Por que essas ferramentas da Criminal Player são diferentes?

        • GPT-4 com curadoria jurídica: Utilizamos IA de última geração, ajustada para respostas precisas, estratégicas e alinhadas à prática penal
        • Fontes verificadas e linkadas: Sempre que um precedente é citado, mostramos o link direto para a decisão original no site do tribunal. Transparência total, sem risco de alucinações
        • Base de conhecimento fechada: A IA responde apenas com conteúdos selecionados da Criminal Player, garantindo fidelidade à metodologia dos nossos especialistas
        • Respostas com visão estratégica: As interações são treinadas para seguir o raciocínio dos experts e adaptar-se à realidade do caso
        • Fácil de usar, rápido de aplicar: Acesso prático, linguagem clara e sem necessidade de dominar técnicas complexas de IA
        Comunidade Criminal Player

        Mais de 5.000 conteúdos para transformar sua atuação!

        • Curso Teoria dos Jogos e Processo Penal Estratégico: Com Alexandre Morais da Rosa e essencial para quem busca estratégia aplicada no processo penal
        • Curso Defesa em Alta Performance: Conteúdo do projeto Defesa Solidária, agora exclusivo na Criminal Player
        • Aulas ao vivo e gravadas toda semana: Com os maiores nomes do Direito Criminal e Processo Penal
        • Acervo com 130+ Experts: Aulas, artigos, vídeos, indicações de livros e materiais para todas as fases da defesa
        • IA de Conteúdos: Acesso a todo o acervo e sugestão de conteúdos relevantes para a sua necessidade
        Comunidade Criminal Player

        A força da maior comunidade digital para criminalistas

        • Ambiente de apoio real: Conecte-se com colegas em fóruns e grupos no WhatsApp para discutir casos, compartilhar estratégias e trocar experiências em tempo real
        • Eventos presenciais exclusivos: Participe de imersões, congressos e experiências ao lado de Aury Lopes Jr, Alexandre Morais da Rosa e outros grandes nomes do Direito
        • Benefícios para membros: Assinantes têm acesso antecipado, descontos e vantagens exclusivas nos eventos da comunidade

        Assine e tenha acesso completo!

        • 75+ ferramentas de IA para estratégias jurídicas com base em experts e jurisprudência real
        • Busca inteligente em precedentes e legislações, com links diretos para as fontes oficiais
        • Curso de Alexandre Morais da Rosa sobre Teoria dos Jogos e Processo Penal Estratégico
        • Curso Defesa em Alta Performance com Jader Marques, Kakay, Min. Rogério Schietti, Faucz e outros
        • 5.000+ conteúdos exclusivos com aulas ao vivo, aulas gravadas, grupos de estudo e muito mais
        • Fóruns e grupos no WhatsApp para discutir casos e trocar experiências com outros criminalistas
        • Condições especiais em eventos presenciais, imersões e congressos com grandes nomes do Direito
        Assinatura Criminal Player MensalAssinatura Criminal Player SemestralAssinatura Criminal Player Anual

        Para mais detalhes sobre os planos, fale com nosso atendimento.

        Quero testar antes

        Faça seu cadastro como visitante e teste GRÁTIS por 7 dias

        • Ferramentas de IA com experts e jurisprudência do STJ
        • Aulas ao vivo com grandes nomes do Direito Criminal
        • Acesso aos conteúdos abertos da comunidade

        Já sou visitante

        Se você já é visitante e quer experimentar GRÁTIS por 7 dias as ferramentas, solicite seu acesso.