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Gina Muniz: Revisão de ofício da prisão preventiva

O artigo aborda a necessidade de revisão de ofício da prisão preventiva durante toda a persecução penal, contrarrestando a ideia de que essa revisão se limite a até a sentença condenatória de primeiro grau. A autora destaca a importância do princípio da presunção de inocência e a ilegalidade da execução provisória da pena, conforme o entendimento do STF. Além disso, critica a resistência a revisões periódicas da prisão, sustentando que essa prática é essencial para a garantia dos direitos fundamentais e a efetividade da justiça.

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Penso que o debate é salutar em um Estado democrático de Direito. Li atenciosamente o artigo intitulado “Revisão de ofício da prisão preventiva a cada 90 dias: limite e competência”, publicado no dia 8 deste mês nesta ConJur [1]. Em que pese a qualidade técnica da argumentação sedimentada por Julio Tanga e Rogério Cachichi, ouso discordar no seguinte ponto: a revisão das prisões preventivas deve vigorar durante toda a persecução penal, e não apenas até a sentença condenatória de primeiro grau (ou acórdão, em caso de competência originária). Doravante, se realizará um cotejo crítico entre os fundamentos apresentados pelos articulantes e as balizas que, noutro norte, servem de sustentáculo para adoção de entendimento em sentindo diverso.

Julio Tanga e Rogério Cachichi defendem, em síntese, que a decisão de decretação ou manutenção da prisão preventiva oriunda de uma sentença condenatória (ou de um acórdão, em caso de competência originária dos tribunais) é fulcrada em um juízo de certeza, decorrente da análise do acervo probatório contido nos autos, e não mais em meros indícios de autoria, exigência constante do artigo 312 do CPP. Desta feita, sustentam a possibilidade de execução provisória da sentença.

Entretanto, entre os elementos estruturantes do Estado democrático de Direito, encontra-se o princípio da presunção de inocência. Na Constituição Brasileira de 1988, referido princípio encontra assento no artigo 5º, inciso LVII, com a seguinte redação: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em jugado da sentença penal condenatória”. O Brasil é ainda signatário da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, e do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDP), que consagram, outrossim, a presunção de inocência como um elemento basilar do sistema processual penal.

O STF, a quem incumbe precipuamente o papel de guardião da CF, firmou entendimento — por maioria de votos, nos autos das Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADC) 43, 44 e 54, cujo julgamento foi concluído em 7/11/2019 — pela constitucionalidade do artigo 283 do CPP, bem como pela incompatibilidade entre o princípio da presunção de inocência e a possibilidade de execução provisória da pena após decisão condenatória de segundo grau (o que dirá com relação a sentença condenatória de primeiro grau!). Por conseguinte, exige-se o trânsito em julgado da condenação para que se inicie o cumprimento da pena.

O artigo 283 do CPP elenca as três formas de prisão constitucionalmente admitidas no processo penal: prisão em flagrante, prisão cautelar (preventiva ou temporária) e prisão-pena. Dessa feita, qualquer outra espécie de prisão fere o princípio da legalidade, vez que a CF, bem como o Pacto de San José da Costa Rica, determinam que apenas lei em sentindo estrito pode regulamentar matéria penal. A prisão-pena só é admissível, por expressão literal da CF, após o trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória.

Destarte, resta rechaçada a possibilidade de execução provisória decorrente de condenação recorrível, por configurar violação ao princípio da presunção de inocência enquanto norma de tratamento: o acusado deve ser tratado como inocente durante todo o procedimento de apuração da culpa e somente uma sentença judicial transitada em julgado que concluir pela sua condenação tem o condão de lhe declarar culpado. Impende ainda destacar a relevância que o trânsito em julgado possui no Estado democrático de Direito, vez que consolida as relações sociais, garantindo-lhes estabilidade e segurança jurídica, consubstanciando-se em termo objetivo para a cessação da eficácia do princípio da presunção de inocência.

Julio Tanga e Rogério Cachichi argumentam também que o STJ tem entendimento firmado, nos ditames das Súmulas 21 e 52, de ser incabível alegação de excesso de prazo após o encerramento da instrução ou, em se tratando dos procedimentos de competência do Tribunal do Júri, da prolação da sentença de pronúncia. Seguem o raciocínio concluindo que não há necessidade de revisão da prisão preventiva após prolação da sentença, eis que não se poderia mais alegar constrangimento ilegal configurado pelo excesso de prazo.

Todavia, os conteúdos das Súmulas 21 e 52 do STJ estabelecem um “termo final anterior à prolação da sentença que é incompatível com o direito fundamental de ser julgado em um prazo razoável, fixado no artigo 5°, inc. LXXVIII da CF. O direito à razoável duração do processo não pode ser reduzido ao direito à razoável duração da instrução. O término da instrução não põe fim ao processo. Da mesma forma, o procedimento do júri somente termina com o julgamento em plenário, e não com a decisão de pronúncia” [3].

Por fim, os articulistas Julio Tanga e Rogério Cachichi defendem que a exigência de revisão periódica da prisão preventiva até o trânsito em julgado da sentença “geraria na prática um sem-número de relaxamentos de prisões, pela notória impossibilidade (ou, no mínimo, extrema dificuldade) de os juízos manterem rígido controle do exíguo prazo legal em todos os processos que lhes são submetidos, principalmente quando os autos já tiverem sido remetidos ao órgão recursal. Consequentemente, o direito da sociedade à segurança, garantido no artigo 144 da Constituição Federal, sofreria incalculáveis restrições”. Trata-se de mais um argumento frágil: não se pode aceitar que as falhas do Judiciário sirvam de gazua para restringir os direitos fundamentais do acusado.

Em épocas de convulsões sociais e aumento da criminalidade, são comuns os influxos de um discurso punitivista que busca mitigar os direitos fundamentais a partir de interpretações regressistas e, assim, alterar os parâmetros de legitimidade da decisão judicial.

O Direito Penal é indubitavelmente um dos instrumentos de que dispõe o ordenamento jurídico para a proteção dos direitos humanos. Registra-se, todavia, que o Estado não olvida a proteção do Direito Penal ao assinalar que a pena só deve ser imposta após o trânsito em julgado do decreto condenatório, mas apenas respeita o estado de inocência que é conferido ao réu até a última palavra do Judiciário sobre o fato criminoso que supostamente lhe envolve. Pensar o contrário é permitir que o punitivismo atropele as garantias fundamentais.

Não se nega que sejam legítimas as pretensões da sociedade em ter um sistema punitivo eficaz. É preciso, todavia, fincar que inexiste vínculo entre o estado de inocência assegurado a todos que respondem a um processo penal e a morosidade e ineficiência do sistema punitivo brasileiro. A necessidade de manutenção da ordem pública e convivência social pacifica não implicam, por si só, legitimidade do poder punitivo.

Recusa-se o discurso dicotômico que privilegia a manutenção da ordem pública (interesse da coletividade) em detrimento à soltura do acusado, como se esta fosse um interesse puramente individual. A liberdade ultrapassa, e muito, a categoria de interesse privado, pois faz parte dos direitos e garantias constitucionalmente assegurados a todos os cidadãos. No mais, uma das exigências do Estado democrático de Direito é a proteção do homem (enquanto pessoa) numa posição de coexistência (e não de hierarquia) com a proteção dos interesses sociais.

Outrossim, a segurança pública não figura entre as finalidades do processo penal, ainda que este seja um mito “presente em regimes autoritários que se apresentam como Estados de Direito: o de que o processo penal é instrumento de segurança pública/pacificação social” [4].

Pouca serventia tem o reconhecimento da presunção de inocência se a cultura dominante propugna por um Estado penal repressivo em que os “criminosos” devem ser alvo de uma árdua persecução penal em prol da coletividade. Esse pensamento remonta aos ideais outrora sustentados pela escola positivista italiana, que entendia o processo penal como instrumento de defesa da sociedade em face do delinquente. Nesse contexto, o Estado democrático de Direito cederia lugar ao Estado policial.

Em arremate, por todas as razões acima elencadas, penso que a revisão periódica da prisão preventiva deve vigorar até o trânsito em julgado da sentença penal. Admitir-se que a regra do artigo 316, parágrafo único, do CPP é circunscrita à sentença condenatória de primeiro grau (ou acórdão, em caso de competência originária) equivale admitir que, a partir de desse momento processual, passa a vigorar a presunção de culpa em total dissonância com o imperativo constitucional, que é enfático em separar o inocente do doravante culpado somente quando do trânsito em julgado da sentença condenatória.

Ademais, o princípio da presunção de inocência, do qual o direito à liberdade do acusado figura como corolário, não obsta a eficiência persecutória, vez que se admite que o acusado seja preso antes da sentença final, mas apenas implica determinar que tais prisões obedeçam à disciplina de uma medida cautelar, revestida do caráter da excepcionalidade.

A noção de cautelaridade implica a provisoriedade das prisões preventivas. Ocorre que, no Brasil, esse quesito sofre sérias violações, por inexistir determinação de prazo máximo para duração da medida. Daí a necessidade de se tratar com rigor a obrigatoriedade de reexame periódico da decisão judicial que decretou a preventiva.

É inerente à prisão cautelar a necessidade de sua constante revisão ao longo da persecução penal, tendo como parâmetro para análise de sua proporcionalidade a pena prevista em abstrato para o tipo legal de crime ou a cominada por decisão judicial condenatória recorrível. É válido ponderar também que a fundamentação para manutenção da segregação cautelar está atrelada à existência de fatos novos ou contemporâneos caracterizadores do periculum libertatis.

A lei é enfática ao exigir que o magistrado, de ofício, revise a necessidade da prisão e, desta feita, sua inércia configura coação ilegal, apta a fundamentar o relaxamento da prisão. Todavia, em uma nítida sabotagem inquisitorial, já existem vozes a defender que o descumprimento do parágrafo único do artigo 316 do CPP pressupõe, antes da concessão de liberdade, uma reanálise judicial da prisão [5]. Essa tese já foi acolhida em decisão da 5ª Turma do STJ, nos autos do AgRg no HC 573.232/SP, relatado pelo ministro Reynaldo Soares da Fonseca e julgado em 12 de maio deste ano.

Conclui-se que o dispositivo legal ora comentado só terá real efetividade se vigorar durante toda a persecução penal e diga-se mais: é preciso que os tribunais reconheçam a ilegalidade automática da prisão como consequência de eventual descumprimento de sua revisão.

Referências bibliográficas CASARA, Rubens R. R. Mitologia processual penal. São Paulo: Saraiva, 2015

LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 16 ed. São Paulo: Saraiva, 2019

TANGA, Julio Cesar Michelucci; CACHICHI, Rogério Cangussu Dantas. Revisão de ofício da prisão preventiva a cada 90 dias: limite e competência. Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-set-08/tanga-cachichi-revisao-oficio-prisao-preventiva, acesso em: 8/9/2020

[1] Para uma leitura na íntegra do mencionado artigo, vide TANGA, Julio Cesar Michelucci; CACHICHI, Rogério Cangussu Dantas. Revisão de ofício da prisão preventiva a cada 90 dias: limite e competência. Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-set-08/tanga-cachichi-revisao-oficio-prisao-preventiva, acesso em: 8/9/2020

[2] Artigo 316, parágrafo único do CPP: “Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal”. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

[3] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 16 ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 593-594

[4] CASARA, Rubens R. R. Mitologia processual penal. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 194-195.

[5] O CNPG (Conselho Nacional de Procuradores Gerais) editou o enunciado n° 35: “O esgotamento do prazo previsto no parágrafo único do artigo 316 não gera direito ao preso de ser posto imediatamente em liberdade, mas do ao reexame dos pressupostos fáticos da preventiva. A eventual ilegalidade da prisão por transcurso do prazo não é automática, devendo ser avaliada judicialmente.”

Referências

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