Artigos Empório do Direito – 1984: a sociedade do controle e pokémongo

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1984: a sociedade do controle e pokémongo

O artigo aborda a crescente vigilância da sociedade contemporânea através do uso de tecnologias e aplicativos, exemplificado pelo PokemonGO, que exige consentimento para coletar dados pessoais, como localização e informações de contato. O autor, Gabriel Bulhões, relaciona essa prática ao conceito de “sociedade do controle”, discutindo como a tecnologia aperfeiçoa os mecanismos de monitoramento e controle social, levando os indivíduos a se tornarem protagonistas de sua própria vigilância. A reflexão final destaca a necessidade de resistência a essas formas sutis de controle, que se tornaram mais complexas com a era digital.

Artigo no Empório do Direito

Por Gabriel Bulhões – 14/09/2016

Já há certo tempo que vem me incomodando como nossas vidas são devassadas com o nosso próprio consentimento a partir do uso de aplicativos em smartphones e recursos tecnológicos na internet. Como se sabe, pois, quando “aceitamos os termos de uso” de determinado programa, aplicativo ou site, estamos chancelando o uso dos nossos dados pessoais (geolocalização, preferências pessoais e, até mesmo, os recursos de áudio e vídeo dos nossos aparelhos celulares) para fins que destoam dos usos habituais relacionados àquela ferramenta (site, aplicativo, software).

Explico. Quando nós utilizamos o GoogleMaps, ativamos funções de geolocalização do nosso aparelho para nos orientar em determinado sentido, mas as preferências de buscas em estabelecimentos comerciais, por exemplo, ficam armazenadas em um grande banco de dados. Quando utilizamos o Facebook, acontece o mesmo: todos os dados de relações sociais, preferências comerciais e pessoais, rotas utilizadas para deslocamento e praticamente todas as informações “quantificáveis” e “categorizáveis” são armazenadas, processadas e utilizadas, quando necessário.

Muitas vezes nós ficamos sem acreditar como conhecemos uma pessoa em um dia, em um local aleatório, e nos dias subsequentes o Facebook passa a indicar o perfil social daquela pessoa como “pessoas que você talvez conheça”, sugerindo a amizade. Coincidência ou mágica? Nem uma coisa, nem outra: essa e muitas outras funcionalidades do Facebook é fruto de um hiper-complexo algoritmo que mapeia as informações das pessoas e fornecem informações cruzadas e refinadas ao próprio servidor do Facebook para direcionar propagandas, informes, páginas relacionadas aos interesses das pessoas etc.

Isto é: essa forma de “conhecer” as massas de usuários, individualmente, é utilizada com fins diversos, que variam desde o marketing comercial até o desenvolvimento de relações pessoais, passando pelo engajamento de causas sociais (quem não se lembra do Facebook participando das mobilizações mundiais pelo “Pray for Orlando”[1] e “Je suis Charlie”[2] – e outras não (nunca vi pelas crianças do Kongo, ou massacre do povo Sírio, né?!).

Pois bem. Para compreender melhor esse contexto, faz-se necessária uma breve digressão no que toca à evolução da “fiscalização social” dos últimos séculos. Conforme sustenta Foucault, nunca antes haviam sido estudado os mecanismos de poder. Já havia sido estudado o tema dos detentores do poder, as estratégias de poder, mas nunca os seus mecanismos. Em sua obra Vigiar e Punir, Foucault começa a nos mostrar, a partir das reflexões tomadas do seu local de fala (de tempo e espaço), como a sociedade moderna construiu um imbrincado e complexo sistema de controle baseado na submissão dos corpos.

Por essa perspectiva, as práticas disciplinares de docilização dos corpos, retratadas através da conceituação de biopoder em sua obra, resultaram na sociedade disciplinar moderna, que teve o seu auge durante a ascensão do positivismo científico, desembocando na revolução industrial. Essa teia de controle foi diluída nas diversas instituições que permeavam o tecido social, sendo partes desse cenário a prisão, o hospital, a escola, o exército entre outros. Era uma espécie de controle diluído, exercendo uma vigilância difusa e contínua sob a ideia de uma microfísica do poder.

Afirma-se, desde o panóptico de Jeremy Bentham, que a vigilância exercida continuamente resultaria em uma “introjeção” da vigilância, quando não mais fosse necessário ter um vigia na torre central da instituição de controle, onde o próprio vigiado estaria exercendo ativamente o seu papel de autovigilância.

Temos, assim, a passagem da sociedade disciplinar para a sociedade do controle. Esse movimento, nos países centrais acompanha a passagem do Welfare State (Estado de Bem-estar Social) para o neoliberalismo, com o consequente enxugamento estatal e, por conseguinte, um “encolhimento” das antigas instituições disciplinares. Sendo assim, a prisão, a escola, o hospital, o exército etc. não mais poderiam estar no papel central de regramento social, tendo em vista que eles mesmos não passariam a exercer o biopoder em razão de externalidades (conjuntura política-econômica-social de diminuir a atuação do Estado, privatizando o que for possível e enxugando os gastos, custos e despesas).

Presencia-se a evolução do regramento social, por meio do uso de fatores tecnológicos, para um novo modelo: a sociedade do controle. Essa conceituação foi exposta por Deleuze[3], o qual aduziu que após o fim da II Guerra Mundial, surgiram novas forças ligadas ao novo momento do capitalismo mundial, sendo essa a mais nova manifestação do exercício de poder na sociedade contemporânea.

Dessa forma, temos que os mecanismos de controle se aprimoraram com a proliferação das câmeras privadas de vigilância, com o uso de cartões de crédito, de internet e aparelhos celulares em suas mais variadas funcionalidades. Assim, nos vemos em um momento que pode ser taxado com uma releitura da sociedade disciplinar foucaultiana, que a reinventa, aproveita suas bases e vai além; mas, que se diferencia desta quando a vigilância passa da esfera local da instituição disciplinar (prisão, escola etc.) para uma dimensão abrangente de toda a tessitura social. Passa-se, com isso, para uma vigilância ampla, difusa, que beira à completude da vida pública.

Saímos, então, de uma forma de um encarceramento completo por meio das instituições totais (Herving Goffman[4]) e/ou disciplinares (Foucault), para uma nova dinâmica de controle: ampla, líquida, difusa.

Aqui, enfim, chegamos ao tema que quero abordar: como a utilização dos recursos tecnológicos mais recentes tem causado essa “incorporação” disciplinar, que resulta no aperfeiçoamento e perfectibilizção dos mecanismos difusos de controle?

Partimos, pois, de uma ferramenta em específico: PokemonGO. Os termos de política de privacidade do jogo que é uma nova “febre” mundial exige que o usuário “aceite”[5] compartilhar com os servidores da indústria (Niantic Labs) os dados de sua câmera, microfone, GPS e, até mesmo, de outros dispositivos conectados por USB ao aparelho celular.

Com isso, não se precisa de mais nada para saber praticamente todas as informações da vida privada do usuário, indo desde os locais em que o mesmo costuma frequentar, quais estabelecimentos comerciais com frequência visita, quais pessoas geralmente interagem, chegando ao extremo de fazer captações ambientais de som e imagem (pois, lembrem-se, autorizamos o uso da nossa câmera e do nosso microfone ao “aderir” aos termos da política de privacidade do aplicativo).

Vemos, por outro lado, que as tentativas de segurança de dados por parte dos usuários é tornada inócua pelos próprios termos do “contrato de adesão de privacidade” imposto pela produtora do jogo. Temos que “Nosso programa não permite a opção “Do not track” (“Não me espie”) do seu navegador”[6].

Existe, ainda, um dado mais curioso com relação a esse novo contexto: a cooperação com agências governamentais. Expressamente, nos Termos de Política de Privacidade do PokemonGO, se percebe isso. No Parágrafo 03-E[7] pode se notar que há uma referência textual a essa “colaboração”, quando se afirma que o aplicativo ajuda os funcionários do governo, podendo “divulgar qualquer informação sobre você ou sua criança autorizada” (sic) que estão sob seu poder/controle. É inacreditável, mas está visualmente narrado para todos lerem.

Apropriamo-nos, assim, das técnicas de controle mais avançadas que a tecnologia pode fornecer. Tornamo-nos protagonistas da nossa própria vigilância. Nós fizemos se superar o projeto de disciplinamento dos corpos. Somos, também, responsáveis pela reinvenção dos mecanismos de controle e poder.

Precisamos nos dar conta da realidade em que estamos imersos, para, problematizando, buscar formas de superá-la. Formas de resistência ao uso diluído do poder sempre existiram e vão continuar a existir: elas se manifestam nas mais cotidianas formas de manifestação das individualidades e/ou coletividades. As micro-resistências possuem, nesse novo contexto, uma importância ainda maior, dado que individualmente nós somos atingidos e reproduzimos essa lógica a partir de nossa conduta individualmente considerada.

Precisamos, pois, ter em mente que a serpente do controle está sempre à espreita, se reinventando e se complexificando, devendo nós mesmos, segundo nos aponta o teórico que acenou para essa guinada da sociedade disciplinar para a sociedade de controle, Gilles Deleuze, que a nós “não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas”[8].

Mas é certo afirmar que os mecanismos de controle e de exercício do poder estão em constante atualização e revisão, modificando sua forma e seu conteúdo a fim efetivar essa fiscalização social da maneira mais imperceptível e eficaz possível. Busquemos sempre resistir; mas, vivenciamos novos tempos, que deixariam Orwell[9] e seu “big brother” de cabelos em pé!

Notas e Referências:

[1] Campanha para mobilização em torno do episodio em quê um sujeito entrou numa boate com público homoafetivo e realizou disparos de arma de fogo, resultando em 50 mortos e 51 feridos, 12 de junho de 2016.

[2] Mobilização em torno do atentado terrorista que sofreu o jornal francês Charlie Hebdo que resultou em 12 mortos e 11 feridos, em 07 de janeiro de 2015.

[3] DELEUZE. Gilles. Post-scriptum:sobre as sociedades de controle. ln: Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

[4] GOFFMAN, Erving. Manicômios, Prisões e Conventos. Tradução de Dante Moreira. Leite. 7ª edição. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.

[5] Trecho retirado do site oficial (http://www.pokemongobrasil.com/politica-de-privacidade/) sobre a política de privacidade: “Todas as suas informações pessoais recolhidas, serão usadas para o ajudar a tornar a sua visita no nosso site o mais produtiva e agradável possível.”

[6] Parágrafo 06 dos Termos de Política de Privacidade do PokemonGO.

[7] “03-e. Informação Divulgada para nossa proteção e proteção dos outros:

Nós cooperamos com funcionários do governo e aplicação da lei ou festas privadas de aplicar e cumprir a lei. Podemos divulgar qualquer informação sobre você (ou sua criança autorizada) que está em nosso poder ou controle de governos ou autoridades policiais ou festas privadas como nós, em nosso critério, acreditamos necessário ou apropriado: (a) para responder a reclamações, processo legal (incluindo intimações); (B) para proteger nossa propriedade, direitos e segurança e a propriedade, direitos e segurança de terceiros ou do público em geral; e para identificar e interromper qualquer atividade que nós consideramos a atividade ilegal, antiético ou legalmente acionável.”

[8] DELEUZE, Gilles. POST SCRIPTUM SOBRE AS SOCIEDADES DE CONTROLE. Conversações 1972-1990. Trad. Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 219.

[9] ORWELL, George. 1984. Trad. Alexandre Hubner. 3ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

. . Gabriel Bulhões é Advogado criminalista militante, atual Presidente da Comissão dos Advogados Criminalistas da OAB/RN, especialista em Ciências Criminais e Professor de Processo Penal. .

Imagem Ilustrativa do Post: Gotta Catch ‘Em All // Foto de: Susanne Nilsson // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/infomastern/29384268752

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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