Artigos Conjur – Soubhia e Muniz: Pessoas insignificantes, patrimônio sagrado

Artigos Conjur
Artigos Conjur || Soubhia e Muniz: Pessoas in…Início / Conteúdos / Artigos / Conjur
Artigo || Artigos dos experts no Conjur

Soubhia e Muniz: Pessoas insignificantes, patrimônio sagrado

O artigo aborda o caso de Rosangela Sibele, que foi presa por furto de itens alimentares valendo R$ 21,69, gerando um debate sobre a aplicação do princípio da insignificância no Direito Penal. Os autores criticam a postura da Justiça, que desconsiderou a condição social da autora e não reconheceu a atipicidade do ato, ressaltando a necessidade de uma reflexão crítica sobre a criminalização de pequenas infrações em contextos de vulnerabilidade. Eles argumentam que o sistema penal brasileiro demonstra um viés punitivo desproporcional, tratando a marginalidade social com severidade, enquanto pequenos delitos são tratados com rígida repressão.

Artigo no Conjur

Recentemente, e mais uma vez, os holofotes da Justiça Penal foram lançados para o caso em que Rosangela Sibele, 41 anos, mãe de cinco filhos, desempregada e em situação de rua, foi presa pela prática de um furto de dois refrigerantes, um refresco em pó, dois pacotes de macarrão instantâneo, avaliados em R$ 21,69. Surpreendida pelos seguranças do supermercado, Rosangela tentou correr, foi perseguida por policiais militares e, após tropeçar e cair, machucando sua testa, foi presa em flagrante e formalmente autuada.

Apesar de a Defensoria Pública de São Paulo ter pedido o relaxamento da prisão com base na clara incidência do “princípio da insignificância” ou do “estado de necessidade” (furto famélico), a prisão em flagrante foi convertida em preventiva. Mais do que isso, a juíza fez questão de ressaltar em sua decisão que “o momento impõe maior rigor na custódia cautelar, pois a população está fragilizada no interior de suas residências, devendo ser protegidas pelos poderes públicos e pelo Poder Judiciário contra aqueles que, ao invés de se recolherem, vão às ruas com a finalidade única de delinquir”.

No Tribunal de Justiça de SP, Rosangela não teve sorte diversa. Para os desembargadores, “comportamentos contrários à lei penal, mesmo que insignificantes, quando constantes, devido a sua reprovabilidade, perdem a característica da bagatela e devem se submeter ao direito penal”.

Apenas no STJ, após 15 dias e muita repercussão midiática do caso, Rosangela foi solta por força da decisão monocrática do ministro Joel Ilan Paciornik, nos autos do HC 699.572/SP. Ao sair do cárcere, vaticinou: “Meu grande sonho é ser gente. Eu ainda não sei o que é isso, não sei o que é ser mãe, filha e irmã”.

Desde as primeiras lições, ainda na faculdade, aprendemos que o Direito Penal deve ser a “derradeira trincheira” no combate aos comportamentos desviados. O Direito Penal, nos disseram os professores, só deve ser aplicado quando estritamente necessário, sendo sua intervenção condicionada ao fracasso das demais esferas de controle (caráter subsidiário). A violência estatal somente se justificaria nos casos de relevante lesão ou perigo de lesão a bem jurídico tutelado (caráter fragmentário). Trata-se do que se convencionou chamar de princípio da intervenção mínima.

É desse princípio da intervenção mínima, mais especificamente da fragmentariedade do Direito Penal, que emerge o princípio da insignificância, impedindo, ao menos em tese, que condutas que não afetem o bem jurídico sejam sancionadas neste ramo do Direito.

Ocorre que, por influência da já falida teoria das janelas quebradas e de neoclássicos que acreditam que o crime decorre de uma escolha estritamente racional, existe uma crença generalizada de que o tratamento leniente das pequenas infrações levaria a um incremento no número e intensidade dos crimes. Apesar da inexistência de comprovação estatística dessa conclusão, há tempos os tribunais superiores vinculam o reconhecimento da bagatela à existência de quatro requisitos: mínima ofensividade da conduta do agente; ausência de periculosidade social da ação; reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e inexpressividade da lesão jurídica causada.

Dada a abertura conceitual dos quatro requisitos, há quem entenda — como a juíza e os desembargadores do caso de Rosangela — que a reincidência impede o reconhecimento da atipicidade material decorrente da insignificância porque haveria periculosidade social na ação e reprovabilidade do comportamento (cf. STJ, AgRg no HC 680716 / SC).

No entanto, apesar de inicialmente reconhecerem a reincidência como uma barreira à insignificância, com o tempo as cortes superiores passaram a admitir que seria, sim, possível tratar um furto de bagatela como tal mesmo diante da reincidência do agente (cf. STJ, HC 205.247 e STF, HC 205.232). Aliás, ainda em 2016, o STF estabeleceu, por seu órgão pleno, as seguintes teses:

“1) A reincidência não impede, por si só, que o juiz da causa reconheça a insignificância penal da conduta, à luz dos elementos do caso concreto; e 2) Na hipótese de o juiz da causa considerar penal ou socialmente indesejável a aplicação do princípio da insignificância por furto, em situações em que tal enquadramento seja cogitável, eventual sanção privativa de liberdade deverá ser fixada, como regra geral, em regime inicial aberto, paralisando-se a incidência do artigo 33, §2º, c, do CP no caso concreto, com base no princípio da proporcionalidade” (HC 123108, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 03/08/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-018 DIVULG 29-01-2016 PUBLIC 01-02-2016).

Como não concluir que o sistema penal brasileiro é uma máquina de moer pobre quando à insignificância de pequenos delitos patrimoniais se impõe uma pista de obstáculos kafkanianos e à insignificância dos crimes tributários se concede uma módica margem de R$ 20 mil (cf. STJ, REsp, 1.709.029/MG — 28/2/2018 — recurso repetitivo), sem que haja necessidade de se perquirir sobre periculosidade social da ação e outros tecnicismos destinados à prender a marginalidade social. Ao que parece o princípio da insignificância só vale para as pessoas “significantes”.

Em outro norte, é importante destacar que a existência de um crime não se limita ao reconhecimento da tipicidade penal. Acreditamos que a conduta de Rosangela, além de materialmente atípica, também não satisfaz o conceito analítico de crime no que tange à antijuridicidade e culpabilidade. Vejamos. Mesmo que tivéssemos tipicidade, poderíamos excluir a antijuridicidade, pois o furto famélico se enquadra na excludente do estado de necessidade (CP, artigo 24). Vamos além: se a análise se estendesse até o plano da culpabilidade, poderíamos alegar inclusive uma causa supralegal de inexigibilidade de conduta diversa.

Ainda que rechaçadas todas as hipóteses acima e estivéssemos efetivamente diante da prática de um crime, impõe pontuar que não exisitria qualquer fundamento jurídico consitucional para a decretação da prisão preventiva da autuada. Prender alguém que furtou R$ 21,69 como garantia da ordem pública?!

Rechaçamos a argumentação falaciosa que sobrepõe a manutenção da ordem pública (interesse da coletividade) em detrimento à soltura da autuada como se esta fosse um interesse puramente individual: “(…) Os direitos da liberdade valoram não apenas interesses práticos e particulares, antes, eles avaliam os interesses público-jurídicos, isto é, que eles são interesses processuais” [1].

Ademais, a expressão ordem pública finda por funcionar como uma licença ampla colocada à disposição dos magistrados para se prender os acusados de forma desenfreada. Essa ideia condiz com a própria gênese do termo: a Alemanha nazista, na década de 30, para abarcar qualquer prisão. Trata-se de um conceito vago e genérico, que permite que os aplicadores do Direito o preencham de forma variada, quando sabemos que o processo penal se sujeita ao princípio da legalidade e taxatividade.

Descartada a segregação cautelar com fundamento na ordem pública, estaria legitimada a prisão preventiva pelo fato de a autuada não ter residência fixa e, portanto, existir risco de não aplicação da lei penal? Faz sentindo que o mesmo Estado que negligencia às pessoas o direito à moradia, possa se valer da sua própria torpeza para também lhes negar o direito à liberdade?

Diante do caso ora analisado, não vislubramos periculum libertatis apto a legitimar uma prisão preventiva e, se por acaso existisse, a situação poderia ser resolvida com a aplicação de uma medida cautelar diversa da prisão.

Os incautos podem acreditar que estamos diante de um caso isolado. Todavia, inúmeros são os casos de furto famélico que reclamam atuação dos nossos tribunais superiores [2], causando prejuízos incalculáveis para a sociedade, o Judiciário e principalmente aos acusados. Tanto é recentemente circulou a notícia da sanha punitiva do Ministério Público do Rio Grande do Sul, que, insatisfeito em denunciar duas pessoas pelo furto de comida descartada por um supermercado, se deu ao trabalho de recorrer da decisão que os absolveu sumariamente.

Indubitavelmente, a movimentação do aparato punitivo estatal, bem como os gastos com a manuntenção dos acusados no sistema carcerário, custa bem mais que caro aos cofres públicos do que o prejuízo experimentado pelas vítimas do crime patrimonial. Ademais, a tramitação desses processos impede que o Judiciário aja com celeridade em relação aos crimes realmente graves que acontecem em nossa sociedade. Por fim, àquele a quem o Estado já nega saúde, educação, moradia e comida resta ainda o estigma de criminoso. Não é à toa que, após sua soltura, a autuada declarou que seu grande sonho era ser “gente”.

Mas por que temos tantos casos de furtos famélicos nos tribunais superiores? Por que há resistência em se reconhecer a insignificância com relação a furtos de valores ínfimos? Pensamos que a resposta ultrapassa o plano dogmático penal para atingir questões criminológicas, sociológicas e políticas, afinal, em um país em que as pessoas precisam furtar para saciar a fome, certamente o verdadeiro problema é camuflado com o indevido uso do Direito Penal: “Quando os problemas sociais são enfrentados através de punições, enfraquece-se a democracia na mesma proporção em que se fortalece a dominação de classes” [3].

É válido ainda ponderar que não aderimos a qualquer formulação teórica que postule a existência de um conceito ontológico de crime. Após anos atuando como defensores públicos, é impossível deixar de reconhecer que o delito é uma adjetivação atribuída pela Justiça Penal a determinados comportamentos e, especialmente, pessoas. Ao tratar da criminologia crítica, Figueiredo Dias lança uma lição que merece ser colacionada no presente artigo: “Em vez de se perguntar por que é que o criminoso comete crimes, passa a indagar-se primacialmente porque que é que determinadas pessoas são tratadas como criminosos, quais as consequências desse tratamento e qual a fonte de sua legitimidade” [4].

Como ensina Loic Wacquant, a doutrina do neoliberalismo propugna por um Estado social mínimo e um Estado penal máximo. O centauro penal. Dócil e deferente às classes sociais mais abastadas e truculento como um cavalo com a marginalidade social. Interessante averiguar como essa ideia reflete nas políticas públicas do Brasil, que acabam por gerar uma forte exclusão social e utilizar o Direito Penal como instrumento de controle social. Nesse contexto, o Estado democrático de Direito cede espaço para um Estado policial, cujo raio de ação dirige-se para as consequências do crime e não para a solução das causas determinantes da criminalidade.

Quando Robert K. Merton teorizou que a gênese criminal se radicava no desajuste entre metas culturais e meios institucionalizados, as metas que ele se referia poderiam ser resumidas no american dream: o sucesso financeiro e uma imagem idealizada de felicidade. No Brasil de 2021, a meta cultural mais básica é “ser gente”, e nem para isso os meios institicionalizados têm se mostrado suficientes. Não há racionalidade na fome. Resta a inovação.

[1] HASSEMER, Winfried. Direito Penal Libertário. Traduzido por Regina Greve. Belo Horizonte: editora Del Rey, 2007, p.116.

[2] Reportagem sobre o tema disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/furtos-praticados-por-quem-nao-tem-que-comer-sobrecarregam-tribunais-geram-debate-no-judiciario-1-25249276#:~:text=%C3%89%20o%20chamado%20princ%C3%ADpio%20da,prendendo%20acusados%20de%20pequenos%20furtos.

[3] GUIMARÃES, Claudio Alberto Gabriel. Constituição, Ministério Público e Direito Penal: a defesa do estado democrático no âmbito punitivo. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2010, p. 131.

[4] DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: o homem delinquente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, 2013, p. 43.

Referências

Relacionados || Outros conteúdos desse assunto
    Mais artigos || Outros conteúdos desse tipo
      Fernando Antunes Soubhia || Mais conteúdos do expert
        Gina Muniz || Mais conteúdos do expert
          Acesso Completo! || Tenha acesso aos conteúdos e ferramentas exclusivas

          Comunidade Criminal Player

          Elabore sua melhor defesa com apoio dos maiores nomes do Direito Criminal!

          Junte-se aos mais de 1.000 membros da maior comunidade digital de advocacia criminal no Brasil. Experimente o ecossistema que já transforma a prática de advogados em todo o país, com mais de 5.000 conteúdos estratégicos e ferramentas avançadas de IA.

          Converse com IAs treinadas nos acervos de Aury Lopes Jr, Alexandre Morais da Rosa, Rodrigo Faucz, Gabriel Bulhões, Cristiano Maronna e outros gigantes da área. Explore jurisprudência do STJ com busca inteligente, análise de ANPP, depoimentos e muito mais. Tudo com base em fontes reais e verificadas.

          Ferramentas Criminal Player

          Ferramentas de IA para estratégias defensivas avançadas

          • IAs dos Experts: Consulte as estratégias de Aury Lopes Jr, Alexandre Morais da Rosa, Rodrigo Faucz, Gabriel Bulhões e outros grandes nomes por meio de IAs treinadas em seus acervos
          • IAs de Jurisprudência: Busque precedentes com IAs semânticas em uma base exclusiva com mais de 200 mil acórdãos do STJ, filtrados por ministro relator ou tema
          • Ferramentas para criminalistas: Use IA para aplicar IRAC em decisões, interpretar depoimentos com CBCA e avaliar ANPP com precisão e rapidez
          Ferramentas Criminal Player

          Por que essas ferramentas da Criminal Player são diferentes?

          • GPT-4 com curadoria jurídica: Utilizamos IA de última geração, ajustada para respostas precisas, estratégicas e alinhadas à prática penal
          • Fontes verificadas e linkadas: Sempre que um precedente é citado, mostramos o link direto para a decisão original no site do tribunal. Transparência total, sem risco de alucinações
          • Base de conhecimento fechada: A IA responde apenas com conteúdos selecionados da Criminal Player, garantindo fidelidade à metodologia dos nossos especialistas
          • Respostas com visão estratégica: As interações são treinadas para seguir o raciocínio dos experts e adaptar-se à realidade do caso
          • Fácil de usar, rápido de aplicar: Acesso prático, linguagem clara e sem necessidade de dominar técnicas complexas de IA
          Comunidade Criminal Player

          Mais de 5.000 conteúdos para transformar sua atuação!

          • Curso Teoria dos Jogos e Processo Penal Estratégico: Com Alexandre Morais da Rosa e essencial para quem busca estratégia aplicada no processo penal
          • Curso Defesa em Alta Performance: Conteúdo do projeto Defesa Solidária, agora exclusivo na Criminal Player
          • Aulas ao vivo e gravadas toda semana: Com os maiores nomes do Direito Criminal e Processo Penal
          • Acervo com 130+ Experts: Aulas, artigos, vídeos, indicações de livros e materiais para todas as fases da defesa
          • IA de Conteúdos: Acesso a todo o acervo e sugestão de conteúdos relevantes para a sua necessidade
          Comunidade Criminal Player

          A força da maior comunidade digital para criminalistas

          • Ambiente de apoio real: Conecte-se com colegas em fóruns e grupos no WhatsApp para discutir casos, compartilhar estratégias e trocar experiências em tempo real
          • Eventos presenciais exclusivos: Participe de imersões, congressos e experiências ao lado de Aury Lopes Jr, Alexandre Morais da Rosa e outros grandes nomes do Direito
          • Benefícios para membros: Assinantes têm acesso antecipado, descontos e vantagens exclusivas nos eventos da comunidade

          Assine e tenha acesso completo!

          • 75+ ferramentas de IA para estratégias jurídicas com base em experts e jurisprudência real
          • Busca inteligente em precedentes e legislações, com links diretos para as fontes oficiais
          • Curso de Alexandre Morais da Rosa sobre Teoria dos Jogos e Processo Penal Estratégico
          • Curso Defesa em Alta Performance com Jader Marques, Kakay, Min. Rogério Schietti, Faucz e outros
          • 5.000+ conteúdos exclusivos com aulas ao vivo, aulas gravadas, grupos de estudo e muito mais
          • Fóruns e grupos no WhatsApp para discutir casos e trocar experiências com outros criminalistas
          • Condições especiais em eventos presenciais, imersões e congressos com grandes nomes do Direito
          Assinatura Criminal Player MensalAssinatura Criminal Player SemestralAssinatura Criminal Player Anual

          Para mais detalhes sobre os planos, fale com nosso atendimento.

          Quero testar antes

          Faça seu cadastro como visitante e teste GRÁTIS por 7 dias

          • Ferramentas de IA com experts e jurisprudência do STJ
          • Aulas ao vivo com grandes nomes do Direito Criminal
          • Acesso aos conteúdos abertos da comunidade

          Já sou visitante

          Se você já é visitante e quer experimentar GRÁTIS por 7 dias as ferramentas, solicite seu acesso.