Artigos Conjur – Crime de desobediência e o Código de Trânsito Brasileiro

Artigos Conjur
Artigos Conjur || Crime de desobediência e o …Início / Conteúdos / Artigos / Conjur
Artigo || Artigos dos experts no Conjur

Crime de desobediência e o Código de Trânsito Brasileiro

O artigo aborda o julgamento do Habeas Corpus nº 219.465/SP, no qual o ministro Gilmar Mendes absolveu o paciente por atipicidade do crime de desobediência, previsto no artigo 330 do Código Penal, ao considerar que a infração em questão era, na verdade, uma violação de norma de trânsito prevista no artigo 195 do Código de Trânsito Brasileiro, a qual já prevê sanção administrativa. O texto também analisa a jurisprudência que sustenta essa decisão, enfatizando o caráter subsidiário do Direito Penal, que deve ser aplicado apenas quando não há previsão de sanções em normas administrativas.

Artigo no Conjur

No julgamento do Habeas Corpus nº 219.465/SP, o ministro Gilmar Mendes, relator, com base no artigo 192, caput, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, e superando o Enunciado 691 da súmula da Suprema Corte, concedeu a ordem, de ofício, absolvendo o paciente por atipicidade do fato. O julgamento ocorreu no último dia 30 de agosto e a decisão foi publicada no dia 5 de setembro.

No caso concreto, tratava-se de um pedido de Habeas Corpus apontando-se como autoridade coatora o relator do HC nº 766.218/SP, do Superior Tribunal de Justiça; o paciente havia sido condenado como incurso nas penas do artigo 330 do Código Penal (crime de desobediência).

Com efeito, na Corte Superior, o Habeas Corpus originário não foi conhecido tendo em vista que “as matérias ventiladas pela defesa foram examinadas apenas pela Turma Recursal, o que inviabiliza a análise das teses por esta Corte Superior, pois ´o julgamento proferido por Turma Recursal de Juizado Especial Criminal não se encontra abrangido pelo termo ´tribunal’ previsto no artigo 105, I, c, da Constituição, evidenciando-se, assim, a impossibilidade de conhecer-se da impetração”.

Já na Suprema Corte, em decisão monocrática, o ministro Gilmar Mendes observou, citando precedentes, “que o mérito da controvérsia não foi apreciado pelo colegiado do Superior Tribunal de Justiça, de modo que a apreciação por esta Corte resultaria em supressão de instância. Segundo jurisprudência consolidada deste Tribunal, não tendo sido a questão objeto de exame definitivo pelo Superior Tribunal de Justiça ou ausente prévia manifestação colegiada das demais instâncias inferiores, a apreciação do pedido da defesa implicaria supressão de instância”.

Nada obstante ser o caso de não conhecimento da ordem, por evidente supressão de instância, o relator anotou, porém, “que, em casos de manifesta e grave ilegalidade, tais entendimentos podem ser flexibilizados, inclusive por meio da concessão da ordem de ofício, o que ocorre no presente caso”.

Assim, adentrando o mérito do caso, ainda que sem conhecer da impetração, o relator observou, também fazendo referência a diversos precedentes, que “a jurisprudência desta Corte tem se firmado no sentido de que é conduta atípica a desobediência à ordem emanada por autoridade pública quando há cominação legal de sanção administrativa o civil específica”.

Destarte, concluindo a sua decisão, afirmou, in verbis: “portanto, já que há o descumprimento de ordem emanada por policial em fiscalização de trânsito, inclusive com a cominação de sanção administrativa, não há se falar em desobediência, tal qual tipificado no artigo 330 do Código Penal, mas sim, uma infração de trânsito com previsão no artigo 195 do Código de Trânsito Brasileiro”.

Aliás, esse entendimento também está sufragado na doutrina, conforme já ensinava Nelson Hungria, segundo o qual, “se, pela desobediência de tal ou qual ordem oficial, alguma lei comina determinada penalidade administrativa ou civil, não se deverá reconhecer o crime em exame (desobediência), salvo se a dita lei ressalvar expressamente a cumulativa aplicação do artigo 330 (exemplo: a testemunha faltosa, segundo o artigo 219 do Código de Processo Penal, está sujeita não só à prisão administrativa e pagamento das custas da diligência da intimação, como a ‘processo penal por crime de desobediência’)” [1].

Vale também transcrever o entendimento de Cezar Roberto Bitencourt, verbis: “Quando a lei extrapenal comina sanção civil ou administrativa, e não prevê cumulação com o artigo 330 do CP, inexiste crime de desobediência” [2].

Essa posição — praticamente unânime na doutrina e na jurisprudência — decorre, evidentemente, do caráter subsidiário do Direito Penal. Neste sentido, Claus Roxin já afirmava que “o direito penal é de natureza subsidiária. Ou seja: somente se podem punir as lesões de bens jurídicos e as contravenções contra fins de assistência social, se tal for indispensável para uma vida em comum ordenada. Onde bastem os meios do direito civil ou do direito público, o direito penal deve retirar-se”.

Para o jurista alemão, “consequentemente, e por ser a reação mais forte da comunidade, apenas se pode recorrer a ela em último lugar. Se for utilizada quando bastem outros procedimentos mais suaves para preservar ou reinstaurar a ordem jurídica, carece da legitimidade que lhe advém da necessidade social” [3].

Portanto, acertada foi a decisão proferida monocraticamente pelo ministro Gilmar Mendes, primeiro afastando o Enunciado 691 da súmula da Suprema Corte (aliás, de duvidosa constitucionalidade); e, segundo, atendendo ao pleito do paciente, concedendo a ordem de ofício, para afastar a incidência da norma penal (crime de desobediência previsto no artigo 330, do Código Penal), visto que o artigo 195 do Código de Trânsito Brasileiro já prevê sanção de natureza administrativa para o ilícito [4].

[1] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, Volume IX. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 420.

[2] BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 1115..

[3] ROXIN, Claus. Problemas Fundamentais de Direito Penal. Lisboa: VEGA, 1993, p. 28.

[4] No mesmo sentido, conferir DELMANTO, Celso et al. Código Penal Comentado. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 661.

No julgamento do Habeas Corpus nº. 219.465/SP, o ministro Gilmar Mendes, relator, com base no artigo 192, caput, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, e superando o Enunciado 691 da súmula da Suprema Corte, concedeu a ordem, de ofício, absolvendo o paciente por atipicidade do fato. O julgamento ocorreu no último dia 30 de agosto e a decisão foi publicada no dia 05 de setembro.

No caso concreto, tratava-se de um pedido de habeas corpus apontando-se como autoridade coatora o relator do Habeas Corpus nº 766.218/SP, do Superior Tribunal de Justiça; o paciente havia sido condenado como incurso nas penas do artigo 330 do Código Penal (crime de desobediência).

Com efeito, na Corte Superior, o habeas corpus originário não foi conhecido tendo em vista que “as matérias ventiladas pela defesa foram examinadas apenas pela Turma Recursal, o que inviabiliza a análise das teses por esta Corte Superior, pois ‘o julgamento proferido por Turma Recursal de Juizado Especial Criminal não se encontra abrangido pelo termo ‘tribunal’ previsto no artigo 105, I, c, da Constituição Federal, evidenciando-se, assim, a impossibilidade de conhecer-se da impetração’”.

Já na Suprema Corte, em decisão monocrática, o ministro Gilmar Mendes observou, citando precedentes, “que o mérito da controvérsia não foi apreciado pelo colegiado do Superior Tribunal de Justiça, de modo que a apreciação por esta Corte resultaria em supressão de instância. Segundo jurisprudência consolidada deste Tribunal, não tendo sido a questão objeto de exame definitivo pelo Superior Tribunal de Justiça ou ausente prévia manifestação colegiada das demais instâncias inferiores, a apreciação do pedido da defesa implicaria supressão de instância”.

Nada obstante ser o caso de não conhecimento da ordem, por evidente supressão de instância, o relator anotou, porém, “que, em casos de manifesta e grave ilegalidade, tais entendimentos podem ser flexibilizados, inclusive por meio da concessão da ordem de ofício, o que ocorre no presente caso”.

Assim, adentrando o mérito do caso, ainda que sem conhecer da impetração, o relator observou, também fazendo referência a diversos precedentes, que “a jurisprudência desta Corte tem se firmado no sentido de que é conduta atípica a desobediência à ordem emanada por autoridade pública quando há cominação legal de sanção administrativa o civil específica”.

Destarte, concluindo a sua decisão, afirmou, in verbis: “portanto, já que há o descumprimento de ordem emanada por policial em fiscalização de trânsito, inclusive com a cominação de sanção administrativa, não há se falar em desobediência, tal qual tipificado no art. 330 do Código Penal, mas sim, uma infração de trânsito com previsão no art. 195 do Código de Trânsito Brasileiro”.

Aliás, esse entendimento também está sufragado na doutrina, conforme já ensinava Nelson Hungria, segundo o qual, “se, pela desobediência de tal ou qual ordem oficial, alguma lei comina determinada penalidade administrativa ou civil, não se deverá reconhecer o crime em exame (desobediência), salvo se a dita lei ressalvar expressamente a cumulativa aplicação do artigo 330 (exemplo: a testemunha faltosa, segundo o artigo 219 do Código de Processo Penal, está sujeita não só à prisão administrativa e pagamento das custas da diligência da intimação, como a ‘processo penal por crime de desobediência’)” [1].

Vale também transcrever o entendimento de Cezar Roberto Bitencourt, verbis: “Quando a lei extrapenal comina sanção civil ou administrativa, e não prevê cumulação com o artigo 330 do CP, inexiste crime de desobediência” [2].

Essa posição — praticamente unânime na doutrina e na jurisprudência — decorre, evidentemente, do caráter subsidiário do Direito Penal. Neste sentido, Claus Roxin já afirmava que “o direito penal é de natureza subsidiária. Ou seja: somente se podem punir as lesões de bens jurídicos e as contravenções contra fins de assistência social, se tal for indispensável para uma vida em comum ordenada. Onde bastem os meios do direito civil ou do direito público, o direito penal deve retirar-se”.

Para o jurista alemão, “consequentemente, e por ser a reação mais forte da comunidade, apenas se pode recorrer a ela em último lugar. Se for utilizada quando bastem outros procedimentos mais suaves para preservar ou reinstaurar a ordem jurídica, carece da legitimidade que lhe advém da necessidade social” [3].

Portanto, acertada foi a decisão proferida monocraticamente pelo ministro Gilmar Mendes, primeiro afastando o Enunciado 691 da súmula da Suprema Corte (aliás, de duvidosa constitucionalidade); e, segundo, atendendo ao pleito do paciente, concedendo a ordem de ofício, para afastar a incidência da norma penal (crime de desobediência previsto no artigo 330, do Código Penal), visto que o artigo 195 do Código de Trânsito Brasileiro já prevê sanção de natureza administrativa para o ilícito [4].

[1] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, Volume IX. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 420.

[2] BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 1115..

[3] ROXIN, Claus. Problemas Fundamentais de Direito Penal. Lisboa: VEGA, 1993, p. 28.

[4] No mesmo sentido, conferir DELMANTO, Celso et al. Código Penal Comentado. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 661.

Referências

Relacionados || Outros conteúdos desse assunto
    Mais artigos || Outros conteúdos desse tipo
      Rômulo Moreira || Mais conteúdos do expert
        Acesso Completo! || Tenha acesso aos conteúdos e ferramentas exclusivas

        Comunidade Criminal Player

        Elabore sua melhor defesa com apoio dos maiores nomes do Direito Criminal!

        Junte-se aos mais de 1.000 membros da maior comunidade digital de advocacia criminal no Brasil. Experimente o ecossistema que já transforma a prática de advogados em todo o país, com mais de 5.000 conteúdos estratégicos e ferramentas avançadas de IA.

        Converse com IAs treinadas nos acervos de Aury Lopes Jr, Alexandre Morais da Rosa, Rodrigo Faucz, Gabriel Bulhões, Cristiano Maronna e outros gigantes da área. Explore jurisprudência do STJ com busca inteligente, análise de ANPP, depoimentos e muito mais. Tudo com base em fontes reais e verificadas.

        Ferramentas Criminal Player

        Ferramentas de IA para estratégias defensivas avançadas

        • IAs dos Experts: Consulte as estratégias de Aury Lopes Jr, Alexandre Morais da Rosa, Rodrigo Faucz, Gabriel Bulhões e outros grandes nomes por meio de IAs treinadas em seus acervos
        • IAs de Jurisprudência: Busque precedentes com IAs semânticas em uma base exclusiva com mais de 200 mil acórdãos do STJ, filtrados por ministro relator ou tema
        • Ferramentas para criminalistas: Use IA para aplicar IRAC em decisões, interpretar depoimentos com CBCA e avaliar ANPP com precisão e rapidez
        Ferramentas Criminal Player

        Por que essas ferramentas da Criminal Player são diferentes?

        • GPT-4 com curadoria jurídica: Utilizamos IA de última geração, ajustada para respostas precisas, estratégicas e alinhadas à prática penal
        • Fontes verificadas e linkadas: Sempre que um precedente é citado, mostramos o link direto para a decisão original no site do tribunal. Transparência total, sem risco de alucinações
        • Base de conhecimento fechada: A IA responde apenas com conteúdos selecionados da Criminal Player, garantindo fidelidade à metodologia dos nossos especialistas
        • Respostas com visão estratégica: As interações são treinadas para seguir o raciocínio dos experts e adaptar-se à realidade do caso
        • Fácil de usar, rápido de aplicar: Acesso prático, linguagem clara e sem necessidade de dominar técnicas complexas de IA
        Comunidade Criminal Player

        Mais de 5.000 conteúdos para transformar sua atuação!

        • Curso Teoria dos Jogos e Processo Penal Estratégico: Com Alexandre Morais da Rosa e essencial para quem busca estratégia aplicada no processo penal
        • Curso Defesa em Alta Performance: Conteúdo do projeto Defesa Solidária, agora exclusivo na Criminal Player
        • Aulas ao vivo e gravadas toda semana: Com os maiores nomes do Direito Criminal e Processo Penal
        • Acervo com 130+ Experts: Aulas, artigos, vídeos, indicações de livros e materiais para todas as fases da defesa
        • IA de Conteúdos: Acesso a todo o acervo e sugestão de conteúdos relevantes para a sua necessidade
        Comunidade Criminal Player

        A força da maior comunidade digital para criminalistas

        • Ambiente de apoio real: Conecte-se com colegas em fóruns e grupos no WhatsApp para discutir casos, compartilhar estratégias e trocar experiências em tempo real
        • Eventos presenciais exclusivos: Participe de imersões, congressos e experiências ao lado de Aury Lopes Jr, Alexandre Morais da Rosa e outros grandes nomes do Direito
        • Benefícios para membros: Assinantes têm acesso antecipado, descontos e vantagens exclusivas nos eventos da comunidade

        Assine e tenha acesso completo!

        • 75+ ferramentas de IA para estratégias jurídicas com base em experts e jurisprudência real
        • Busca inteligente em precedentes e legislações, com links diretos para as fontes oficiais
        • Curso de Alexandre Morais da Rosa sobre Teoria dos Jogos e Processo Penal Estratégico
        • Curso Defesa em Alta Performance com Jader Marques, Kakay, Min. Rogério Schietti, Faucz e outros
        • 5.000+ conteúdos exclusivos com aulas ao vivo, aulas gravadas, grupos de estudo e muito mais
        • Fóruns e grupos no WhatsApp para discutir casos e trocar experiências com outros criminalistas
        • Condições especiais em eventos presenciais, imersões e congressos com grandes nomes do Direito
        Assinatura Criminal Player MensalAssinatura Criminal Player SemestralAssinatura Criminal Player Anual

        Para mais detalhes sobre os planos, fale com nosso atendimento.

        Quero testar antes

        Faça seu cadastro como visitante e teste GRÁTIS por 7 dias

        • Ferramentas de IA com experts e jurisprudência do STJ
        • Aulas ao vivo com grandes nomes do Direito Criminal
        • Acesso aos conteúdos abertos da comunidade

        Já sou visitante

        Se você já é visitante e quer experimentar GRÁTIS por 7 dias as ferramentas, solicite seu acesso.