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Atuação do Judiciário nas políticas públicas depende da concepção de Estado

O artigo aborda a legitimidade do Poder Judiciário em exigir do Estado a implementação de políticas públicas, especialmente em contextos de escassez orçamentária. Os autores discutem como a nova concepção de Estado, enquanto garantidora dos direitos constitucionais, valida tal intervenção judicial, desde que respeitadas as limitações orçamentárias e a ordem constitucional. A análise destaca que a judicialização de políticas sociais deve ser uma ferramenta excepcional, utilizada apenas em casos extremos, para assegurar direitos fundamentais sem comprometer a efetividade no âmbito da administração pública.

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No caso levado ao tribunal, havia controvérsia se o Poder Judiciário teria legitimidade para determinar que o Estado realize políticas públicas, mesmo apresentando sérios déficits orçamentários. O recurso citado teve como recorrente o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul contra decisão do Tribunal de Justiça da mesma unidade federativa que, reformando uma decisão do juízo de primeira instância, entendeu que a imposição de obrigações nesse caso violaria o princípio da separação dos poderes. Essa violação seria referente não apenas à possibilidade material de direitos constitucionais programáticos, mas também à discricionariedade da administração pública.

Em seu relatório, o ministro Ricardo Lewandowski argumentou ser responsabilidade do Poder Judiciário impor à administração pública como obrigação de fazer a execução de obras em unidades prisionais para garantir os direitos fundamentais dos cidadãos que se encontram encarcerados pelo Estado.

No dispositivo de seu voto, o relator propôs a seguinte tese de repercussão geral, seguida por seus pares: “É lícito ao Judiciário impor à administração pública obrigação de fazer, consistente na promoção de medidas ou na execução de obras emergenciais em estabelecimentos prisionais para dar efetividade ao postulado da dignidade da pessoa humana e assegurar aos detentos o respeito à sua integridade física e moral, nos termos do que preceitua o artigo 5º, XLIX, da Constituição Federal, não sendo oponível à decisão o argumento da reserva do possível nem o princípio da separação dos poderes”.

A decisão do STF acaba confirmando uma tese fundamental: a teoria da decisão constitucionalmente adequada depende da concepção de Estado, de sua organização e do modo como se compreende a separação dos poderes.

Ora, exatamente por ser incompatível com as diretrizes constitucionais de 1988, já há algum tempo foram superados o paradigma liberal e sua teoria da separação dos poderes — assentada no legalismo rasteiro e no predomínio do controle de constitucionalidade apenas formal e em dimensão negativa.

A presença do conteúdo funcional do Estado de bem-estar, agora pensado como Estado Constitucional de Direito, exige, em vez disso, a reconstrução da separação dos poderes, uma vez que o Judiciário assume um papel fundamental de guarda da Constituição em dimensão formal e material. Esse papel inclui força normativa para impor/promover a realização do projeto de país constitucionalmente determinado, até mesmo no campo dos direitos sociais.

Essa nova concepção de Estado requer um novo arranjo do sistema de freios e contrapesos e uma revisão nos papéis de cada um dos Poderes sem, contudo, descaracterizar suas especialidades funcionais.

Nesse sentido, cabe deixar claro que a atuação de caráter substancialista pelos tribunais é legitimada pela Constituição. Por mais que análises procedimentalistas demonstrem forte construção teórica em prol da realização da Constituição pela via política e da ação cidadã (o que é desejável e deve ser praticado, incentivado e priorizado), é preciso levar em conta o lugar da Constituição (juntamente com o sistema por ela instaurado) e o papel da jurisdição constitucional a partir dos parâmetros dogmáticos, doutrinários e jurisprudenciais do Direito brasileiro após 1988. Não se pode pensar em nada sobre decisão judicial no direito brasileiro sem considerar o projeto constitucional.

Essa opção por dotar o Judiciário brasileiro de importantes instrumentos de proteção das demandas individuais e sociais, assim como a vinculação dos demais poderes aos ditames constitucionais, é bastante nítida por inúmeras razões.

Primeiro, porque o constituinte optou por uma Constituição analítica, contemplando temas que não seriam, em tese, materialmente constitucionais, mas que devido ao status formal acabam adquirindo força normativa suficiente para servir de parâmetro de controle de constitucionalidade.

Além do caráter descritivo e analítico da Constituição, basta uma rápida análise dos artigos 5º ao 7º para constatar a grande amplitude de direitos fundamentais (individuais e sociais) e as garantias a esses direitos, rol que não se esgota em razão de outros direitos fundamentais previstos de maneira esparsa (por exemplo, o artigo 196, que trata do direito à saúde) e da cláusula de abertura contida no parágrafo 2º do artigo 5º.

Para reforçar a tutela e instrumentalizar a eficácia da proteção judicial dos direitos subjetivos, a própria Constituição prevê várias ações mandamentais, tais como Mandado de Segurança, Habeas Corpus, Habeas Datas e Mandado de Injunção.

Mais além, deixando claro as intenções constituintes, a Carta de 1988 contemplou um abrangente sistema de controle de constitucionalidade, seja pela via política (como o veto presidencial e as Comissões de Constituição e Justiça nas casas parlamentares), seja pela dupla via jurisdicional (difuso e incidental e também o concentrado, exercido pelo Supremo Tribunal Federal).

No controle concentrado, salta aos olhos os inúmeros meios aptos a acionar diretamente a Corte Suprema: Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO), Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) e Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC). Como se não fossem suficientes, o artigo 103 ampliou significativamente o rol de legitimados para a propositura dessas ações.

Esse quadro deixa evidente que a dogmática constitucional brasileira acata a leitura conteudista/substancialista da atuação judicial nas políticas públicas. Essas possibilidades normativas, combinadas com a ausência e/ou insuficiência de ação dos Poderes Executivo e Legislativo no atendimento a demandas relativas a direitos garantidos constitucionalmente, acabaram legitimando, normativa e sociologicamente, a possibilidade de ação material dos tribunais[1].

Como efeito adverso, a luta política acaba mudando de lugar, e o papel institucional do Legislativo e do Executivo fica comprometido. Note: algumas das recentes transformações significativas no Direito brasileiro são resultados de interpretações dadas pelo STF, em vez de serem provenientes da deliberação parlamentar.

Assim, para que não haja a presença de um novo soberano, a Constituição rejeita a atuação discricionária do Poder Judiciário. Uma decisão jurídica que vá além das possibilidades de atuação dadas pela Constituição, seja ela fruto da criatividade judicial, seja da liberdade de decidir conforme o que se pensa individualmente, é inconstitucional.

O primado da lei não pode ceder em face do primado da vontade. Isso faz com que a atuação jurisdicional deva estrita observância à ordem constitucional e sua centralidade hierarquizante, de modo a inibir decisionismos que extrapolem as possibilidades hermenêuticas, seja na dimensão formal da estrutura do texto legal que produz sentido, seja em relação ao conteúdo fornecido pelo contexto existencial (logos do mundo prático) e seus sentidos/significados intersubjetivamente válidos.

Nesse contexto, a preservação dos ideais do Estado de Direito exige:

a manutenção de coerência com a história institucional de defesa dos direitos fundamentais, o que implica proibir retrocessos como resultados da interpretação judicial;

a compreensão do sistema constitucional no qual o juiz está inserido e os critérios lógico-dogmáticos de produção judicial do direito, determinados a partir do sistema constitucional aberto;

a realização de quebras na pré-compreensão inautêntica do intérprete com a argumentação e as provas produzidas nos autos e, desse modo, ensejar a legitimidade da decisão; e,

a concretização do dever ético-originário que surge da própria garantia do acesso à Justiça e da necessidade de defesa dos direitos fundamentais.

Com todo o exposto, é preciso reforçar o compromisso do intérprete com a consistência formal e a coerência material de suas decisões com a ideia do sistema constitucional.

Uma ressalva final: a imposição de obrigações ao Poder Executivo por decisões judiciais apenas são aceitáveis em caráter complementar ao sistema político e em ultima ratio.

Um grande número de decisões obrigando o cumprimento de direitos sociais pode comprometer o orçamento da administração pública destinado à realização dessas próprias políticas, gerando um terrível ciclo vicioso que não encontra respaldo constitucional.

Sem planejamento, a efetividade dos direitos fundamentais fica demasiadamente prejudicada, e a decisão judicial não pode desconsiderar esse fato. Um grande número de julgados que ordenam despesa com dinheiro público (sem licitação, diga-se) e obrigam o Estado a prover direitos sem levar em conta o orçamento, tornam-se apenas uma panaceia: em vez da promoção dos direitos sociais, em uma mais ampla perspectiva, haverá sistêmica violação do conjunto normativo e orçamentário, comprometendo a atuação estatal.

Não é válida, porém, a justificativa do não cumprimento de direitos sociais devido à reserva do possível, como alegou a defesa do estado do Rio Grande do Sul na Ação Civil Pública mencionada. Em vez de utilizar a reserva do possível como álibi para ineficiência, melhor é pensar na concretização dos direitos sociais pelo princípio da factibilidade[2], combinada com a proposição de planos políticos de sua concretização, em dimensão coletiva e não apenas individual.

Esse princípio deve considerar uma racionalidade estratégica como um horizonte ideal para enfrentar o problema da efetividade normativa a partir de diversos níveis de factibilidade. A interpretação da inviabilidade orçamentária deve ser a mais restrita possível e devidamente fundamentada.

A imposição de obrigação à administração pública precisa ser somente em casos extremos, como o que foi resolvido pela citada decisão do STF. A decisão da corte foi legítima não somente porque determinou a realização desta política para resguardar direitos básicos e a dignidade do encarcerado, mas também porque foi aplicada em uma situação extrema e como ultima ratio, dentro dos limites interpretativos que a ordem constitucional permite ao juiz.

[1]“Essa situação tem feito com que diversas questões polêmicas sejam levadas ao Supremo Tribunal Federal para uma deliberação definitiva, tornando a corte um verdadeiro legislador positivo, seja por dar conteúdo a princípios abstratos, impugnando regras legislativas com base em decisões judiciais de temas controversos, seja pela criação de regras judiciárias em questões sensíveis da pauta política.” (MARRAFON, Marco Aurélio; LIZIERO, Leonam B.S. Poder Legislativo Brasileiro: entre o Presidencialismo Imperial e a Judicialização da Política. In: MIDÓN, Mario (org.). Desafios del Constitucionalismo Sudamericano. Resistencia: Contexto Libros, 2013, p. 195.) [2]Explorei o tema na coluna “Princípio da factibilidade fortalece a eficácia da Constituição”, publicada 19 de maio de 2014, disponível em

Referências

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