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O FLAGRANTE DELITO: as obviedades que precisam ser ditas

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Artigo enviado por Fabrício Coelho Soalheiro. O presente trabalho pretende analisar o flagrante, ou mais especificamente o processo de cognição da situação flagrancial como pressuposto para elaboração de uma resposta legítima do agente estatal, seja para efetuar a prisão ou somente a realização de busca pessoal. A metodologia científica consistiu na revisão bibliográfica disposta sobre o tema flagrante, chegando à conclusão de que o flagrante de um delito, antes de ser uma construção dogmática é um dado empírico perceptível pelos sentidos.

Introdução
Tema simples de ser compreendido no campo teórico, mas espinhoso no campo prático, a questão do flagrante de delito, sua configuração, delimitação no tempo e no espaço, ainda é campo de inúmeros questionamentos e porque não dizer de hostilidades cometidas por policiais e advogados, ou daqueles contra esses, nos registros iniciais de fatos delituosos nas delegacias de polícias Brasil a fora.
O tema ganha ainda mais relevo quando se incrementa no caso garantias fundamentais como a inviolabilidade do domicílio, afeta à reserva da jurisdição, ou até mesmo a busca pessoal.
As agências polícias argumentam com o “tirocínio” policial, ou a sensibilidade do policial para o trabalho de combate ao crime. Por outro lado, saltam aos olhos os abusos e arbitrariedades perpetrados por agentes da segurança pública que, a pretexto de coletar provas, fazem uma verdadeira devassa na seara privada das pessoas, mormente aquelas menos abastadas moradoras de becos e vielas das periferias dos grandes centros.
Os casos concretos se amontoam no judiciário que por sua vez tenta estabelecer critérios minimamente objetivos para legitimar a investida do Estado sobre o particular, entretanto, parecem falar em outra língua pois as agências policias continuam, dia após dia, a repetir comportamentos divorciados do entendimento jurisprudencial, a exemplo de buscas pessoais, vulgarmente chamada de “baculejo”, as vezes apenas para intimidar um grupo de pessoas, outras vezes para demonstrar superioridade de força, embalados por um móvel de natureza pouco desenvolvida, talvez medieval.
Diante de tais fato é que passará a demonstrar que a solução desse problema, talvez esteja antes mesmo da ideia de objetivação dos critérios autorizadores da intervenção estatal, esteja então na compreensão do que venha a ser um flagrante.
A resposta para essa pergunta, ao nosso sentir, perpassa pela análise e compreensão do que vem a ser elementos descritivos e elementos normativos, ou melhor da cognição desses elementos. Como se sabe, elemento normativo é aquele em que a cognição se assenta na valoração, num juízo de valor, enquanto elemento descritivo são aqueloutros cuja cognição se centra nas capacidades sensoriais do ser humano.
Flagrante como elemento normativo
Numa perspectiva puramente normativa flagrante é aquilo descrito no art. 302 do Código de Processo Penal, segundo o qual considera-se em flagrante delito quem (I) está cometendo a infração penal, (II) acaba de cometê-la, (III) é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração, e/ou (IV) é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração.
O flagrante é costumeiramente classificado como de natureza cautelar, contudo, a doutrina mais autorizada alerta para o equívoco de indigitada classificação, sendo melhor, dogmaticamente falando, compreendê-la como medida pre-cautelar de natureza precária que pode ser aplicado tanto pelas agências oficiais de controle quanto pelo particular (LOPES JR, 2015).
Renato Brasileiro, com a propriedade que lhe é peculiar apresenta as funções da prisão em flagrante, como sendo:
a) Evitar a fuga do infrator;
b) Auxiliar na colheita de elementos informativos: persecuções penais deflagradas a partir de um auto de prisão em flagrante costuma ter mais êxito na colheita de elementos de informação, auxiliando o dominus liti na comprovação do fato delituoso em juízo;
c) Impedir a consumação do delito, no caso em que a infração está sendo praticada (CPP art. 302, inciso I);
d) Preservar a integridade física do preso, diante da comoção que alguns crimes provocam na população, evitando-se, assim, possível linchamento. (LIMA, Renato Brasileiro de. Curso de processo penal, Niteroi, RJ: Impetus, 2013, pg 863)
Mas a pergunta ainda segue sem resposta, numa perspectiva objetiva, do que vem a ser a situação de flagrante. Falam se tratar daquilo que queima, que é evidente ou notório, aquilo que crepita, que é colorido, que arde e resplandece (LIMA, 2023).
Em pesquisa pelo dicionário para auxiliar foi possível encontrar:
Inflamado; ardente; acalorado; manifesto; evidente; flagrante delito: aquele em cuja prática a pessoa é surpreendida; s. m. (pop) ensejo; ocasião; instante em flagrante; na própria ocasião de cometer o ato. (do lat. flagrante) (FERNANDES, Francisco. Dicionário brasileiro Globo. 29ª ed. – São Paulo: Globo, 1993)
Para tentar extirpar quaisquer dúvidas a literatura processual penal usa a taxonomia para sedimentar o conceito de flagrante, classificando-o em flagrante a) próprio, b) impróprio e c) flagrante presumido.
Entende-se por flagrante próprio as situações em que o sujeito é literalmente “pego com a mão na botija”, na melhor forma do dito popular (art. 302, I CPP), ou quando o sujeito tenha acabado de cometer o delito tendo sido visto ainda no instante final da consumação do fato punível (art. 302, II do CPP).
A hipótese inserta no art. 302, III do CPP, também chamado quase-flagrante ou de flagrante impróprio, traz aquela situação delicada onde o sujeito é, imediatamente, perseguido pela vítima, pela autoridade ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser ele o autor do fato.
Aproveitando novamente do dito popular, nesse caso o sujeito não está (mais) com a “mão na botija”, mas fora visto no minuto imediatamente anterior nessa posição e nesse mesmo instante fora perseguido.
Por fim, o flagrante presumido identificado pela doutrina no enunciado normativo do inciso IV do art. 302 do CPP, seria aquela situação em que a pessoa é encontrada logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papeis que façam presumir ser ele o autor do fato.
A semelhança entre o flagrante impróprio do inciso III com a do flagrante presumido do inciso IV, leva à conclusão de que tudo poderia estar em apenas um enunciado normativo, pois ser encontrado com armas, papeis, instrumentos (e etc) é a mesma coisa que ser encontrado em situação que faça presumir o cometimento da infração (PACELLI, 2013).
Pronto. Basta então pegar todos esses dados – evidentemente melhor abordados em extensão e profundidade pelos grandes mestres do assunto – como objeto de cognição de uma pessoa candidata a atuar no policiamento que os problemas relacionados à prisão (em flagrante) estarão resolvidos, e por consequência toda sorte de questionamento sobre prisões, buscas pessoais, buscas domiciliares e apreensões.
Ledo engando, e a realidade é a grande testemunha dessa triste constatação.
Mas por que? Bem, a resposta, penso, passa pela compreensão do flagrante numa perspectiva – senão puramente – também descritiva.
Flagrante como elemento descritivo
Elemento descritivo, como é de conhecimento comum, é aquele cujo conhecimento ou processo cognitivo se dá pelo uso das capacidades sensoriais comuns dos seres humanos e dos animais de um modo geral.
O paladar, o tato, o olfato, e a visão são, por assim dizer, modos de conectar o ser humano com a realidade que o cerca. Funções da maior importância, pois, sem maior esforço, é possível imaginar o risco que uma pessoa com olfato prejudicado está sujeita ou vir a se lesionar por não sentir o cheiro de um gás venenoso, por exemplo.
Assim, chamados de receptores sensoriais, permitem a conexão do homem com o mundo através de estímulos no sistema nervoso central. Conceituando os chamados receptores sensoriais, no artigo intitulado Fisiologia Sensorial, o neurocientista Felipe Viegas Rodrigues ensina que:
Os receptores sensoriais existentes nos animais, ponto de contato entre o mundo externo e o sistema nervoso, permitem a captação e a transdução de todo tipo de estímulos ambientais, sejam ondas eletromagnéticas, ondas mecânicas ou moléculas (estímulos químicos).
Nesse viés, é possível identificar que o flagrante, antes de ser uma construção da dogmática penal ou processual penal, ou a conclusão a que se chega a partir de um juízo de valor, é um dano empírico capitado pelos órgãos que compõem o sistema sensorial.
Esses órgãos, por meio dos receptores sensoriais, ao captarem estímulos ou informações ambientais (luz, estampido, grito de socorro, cheiro de fumaça, etc), os transportam para o sistema nervoso central que se encarregará de processar essas informações, e traduzi-las em sensações que geram respostas: o flagrante ou a necessidade da busca.
Veja que tal conclusão não escapa à argúcia do mestre Aury Lopes, que citando Carnelutti:
Como explica CARNELUTTI, a noção de flagrância está diretamente relacionada a “la llama, que denota con certeza la combustión; cuando se ve la llama, es indudable que alguma cosa arde”. Essa chama, que denota com certeza a existência de uma combustão, coincide com a possibilidade para uma pessoa comprová-lo mediante a prova direta. Como sintetiza o mestre italiano: a flagrância não é outra coisa que a visibilidade do delito. (LOPES JR, Aury. Direito processual penal. – 12ª ed. – São Paulo: Saraiva, 2015, pg. 606)
Tanto é verídico o raciocínio apresentado, que é possível que um ser humano identifique um fato (criminoso, flagrante), sem saber se tratar de um flagrante, a exemplo dos casos de erro de proibição. Exemplo maior, já repetido e repetido na doutrina, seria a hipótese do turista holandês que ao chegar no Brasil, desconhecendo a proibição do uso de drogas, vê outra pessoa vendendo entorpecente e ao invés de efetuar a prisão em flagrante ou chamar a polícia, as vezes até compra uma porção.
Veja, esse turista hipotético, por seus órgãos sensoriais, capta a informação ambiental (outro ser vendendo maconha). Essa informação é conduzida até seu sistema nervoso central e lá processada (isso é maconha), proporcionando uma resposta (vou comprar). Ele não chama a polícia, não porque não viu que era maconha, mas porque ao desconhecer a proibição e por conseguinte as regras da prisão nessas situações, acredita está tudo dentro da normalidade.
Nesse viés, flagrante só pode ser aquilo que pode ser captado pelos órgãos sensoriais dos seres humanos, nada mais. Flagrante é, portanto, aquilo que o policial viu, ouviu, cheirou ou sentiu, e todo o resto é tirocínio, é abuso, é arbitrariedade, é bola de cristal.
Penso que tudo isso ficou subentendido nas últimas decisões do E. Superior Tribunal de Justiça sobre a situações autorizantes da busca pessoal, onde ficou estabelecido que toda busca deve ser feita com finalidade probatória e, portanto, é necessário conhecimento por parte do agente de elementos anteriores a fazer crer que o sujeito está levando consigo coisa ilegal.
O problema é que criou-se uma falsa ideia de que agentes policiais possuem fé pública, dotados de uma sensibilidade digna de produções hollywoodianas, capazes de ver além dos muros e paredes das casas, capazes de identificar uma bucha de maconha dentro de uma gaveta de um móvel do quarto a quilômetros de distância.
Essa crença sega nos agentes estatais não é nova, como denuncia Viviane Ghizoni:
A disciplina da parte policial e criminal da Lei 261 de 1841 (reforma do Código de Processo de 1832) foi feita pelo Regulamento 120, de 31 de janeiro de 1842, por meio do qual foram divididas as funções policiais, atribuindo a concessão dos mandados de busca aos Chefes de Polícia, Delegados, Subdelegados e Juízes Municipais. Cleunice Pitombo destaca que, enquanto para a expedição de oficio somente eram necessários veementes indícios ou fundada probabilidade (art. 120), quando a busca fosse a requerimento da parte interessada, exigia-se, em acréscimo, diversos requisitos a serem cumpridos (art. 121) – englobando desde documentos a depoimento de testemunhas. (SILVA, Viviane Ghizoni da. Fishing expedition e encontro fortuito na busca e na apreensão: um dilema oculto no processo penal / Viviane Ghizoni da Silva, Philipe Benoni Melo e Silva, Alexandre Morais da Rosa – 2ª ed. – Florianópolis: Emais, 2022, pg. 21/22)
Dito isso, nada, absolutamente nada que não possa ser capitado pelos receptores sensoriais dos seres humanos é passível de orientar qualquer resposta seja no sentido de proceder com uma busca pessoal, domiciliar ou efetuar a prisão de quem quer que seja.
Agente público pertencente aos órgãos de segurança pública não são dotados de capacidades sobrenaturais e suas atitudes não gozam de fé pública. Enquanto agentes do estado que são, os atos administrativos que venha a exarar são portadores de atributos típicos do regime jurídico administrativo, tais com a presunção (relativa) de legitimidade, imperatividade e executoriedade (MELLO, 2004), mas nem de longe são portadores de fé pública cujo conceito é afeto à teoria do bem jurídico a orientar a criação de norma penal incriminadora pelo legislador.
Conclusão
Ante o exposto, conclui-se que a resposta do agente do estado dirigida, direcionada às pessoas com o objetivo de prendê-las em flagrante ou efetuar busca pessoal, somente será legítima se essa resposta for produto direto da capitação de dados e informações ambientais pelos órgãos sensoriais, olfato, visão, audição e/ou tato, devidamente processados pelo seu sistema nervoso central.
Aceitar mais que isso, é permitir que o agente do estado labore no campo do subjetivismo, do achismo, do arbítrio e do autoritarismo. O tirocínio policial não passa de um solipsismo vergonhoso posto a serviço daquele que quer e se acha no direito de subjugar seu semelhante e externar perante a sociedade uma pseudo superioridade típica da cultura medieval.
Referências
FERNANDES, Francisco. Dicionário brasileiro Globo. 29ª ed. – São Paulo: Globo, 1993.
LIMA, Renato Brasileiro de. Curso de processo penal, Niteroi, RJ: Impetus, 2013.
LOPES JR, Aury. Direito processual penal. – 12ª ed. – São Paulo: Saraiva.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 17ª ed. – São Paulo: Malheiros, 2004.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal – 17ª ed., rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2013.
ROSA, Alexandre Morais da. Não vale tudo no processo penal: escritos marginais de dois outsiers / Alexandre Morais da Rosa e Rômulo de Andrade Moreira. – 1ª ed. – Florianópolis: Emais, 2020.
SILVA, Viviane Ghizoni da. Fishing expedition e encontro fortuito na busca e na apreensão: um dilema oculto no processo penal / Viviane Ghizoni da Silva, Philipe Benoni Melo e Silva, Alexandre Morais da Rosa – 2ª ed. – Florianópolis: Emais, 2022.
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Sardoá, MG, Possui graduação em Direito pela Universidade Vale do Rio Doce (2007). É pós-graduado em direito público pela UNIDERP. É pós-graduando em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal – ICPC. Atualmente é professo…, 13 participações, 9 seguidores, Player desde 22/01/24, Online algumas semanas atrás
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    Publicado por Criminal Player on 05/08/2024 a 18:12

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