Elemento descritivo, como é de conhecimento comum, é aquele cujo conhecimento ou processo cognitivo se dá pelo uso das capacidades sensoriais comuns dos seres humanos e dos animais de um modo geral.
O paladar, o tato, o olfato, e a visão são, por assim dizer, modos de conectar o ser humano com a realidade que o cerca. Funções da maior importância, pois, sem maior esforço, é possível imaginar o risco que uma pessoa com olfato prejudicado está sujeita ou vir a se lesionar por não sentir o cheiro de um gás venenoso, por exemplo.
Assim, chamados de receptores sensoriais, permitem a conexão do homem com o mundo através de estímulos no sistema nervoso central. Conceituando os chamados receptores sensoriais, no artigo intitulado Fisiologia Sensorial, o neurocientista Felipe Viegas Rodrigues ensina que:
Os receptores sensoriais existentes nos animais, ponto de contato entre o mundo externo e o sistema nervoso, permitem a captação e a transdução de todo tipo de estímulos ambientais, sejam ondas eletromagnéticas, ondas mecânicas ou moléculas (estímulos químicos).
Nesse viés, é possível identificar que o flagrante, antes de ser uma construção da dogmática penal ou processual penal, ou a conclusão a que se chega a partir de um juízo de valor, é um dano empírico capitado pelos órgãos que compõem o sistema sensorial.
Esses órgãos, por meio dos receptores sensoriais, ao captarem estímulos ou informações ambientais (luz, estampido, grito de socorro, cheiro de fumaça, etc), os transportam para o sistema nervoso central que se encarregará de processar essas informações, e traduzi-las em sensações que geram respostas: o flagrante ou a necessidade da busca.
Veja que tal conclusão não escapa à argúcia do mestre Aury Lopes, que citando Carnelutti:
Como explica CARNELUTTI, a noção de flagrância está diretamente relacionada a “la llama, que denota con certeza la combustión; cuando se ve la llama, es indudable que alguma cosa arde”. Essa chama, que denota com certeza a existência de uma combustão, coincide com a possibilidade para uma pessoa comprová-lo mediante a prova direta. Como sintetiza o mestre italiano: a flagrância não é outra coisa que a visibilidade do delito. (LOPES JR, Aury. Direito processual penal. – 12ª ed. – São Paulo: Saraiva, 2015, pg. 606)
Tanto é verídico o raciocínio apresentado, que é possível que um ser humano identifique um fato (criminoso, flagrante), sem saber se tratar de um flagrante, a exemplo dos casos de erro de proibição. Exemplo maior, já repetido e repetido na doutrina, seria a hipótese do turista holandês que ao chegar no Brasil, desconhecendo a proibição do uso de drogas, vê outra pessoa vendendo entorpecente e ao invés de efetuar a prisão em flagrante ou chamar a polícia, as vezes até compra uma porção.
Veja, esse turista hipotético, por seus órgãos sensoriais, capta a informação ambiental (outro ser vendendo maconha). Essa informação é conduzida até seu sistema nervoso central e lá processada (isso é maconha), proporcionando uma resposta (vou comprar). Ele não chama a polícia, não porque não viu que era maconha, mas porque ao desconhecer a proibição e por conseguinte as regras da prisão nessas situações, acredita está tudo dentro da normalidade.
Nesse viés, flagrante só pode ser aquilo que pode ser captado pelos órgãos sensoriais dos seres humanos, nada mais. Flagrante é, portanto, aquilo que o policial viu, ouviu, cheirou ou sentiu, e todo o resto é tirocínio, é abuso, é arbitrariedade, é bola de cristal.
Penso que tudo isso ficou subentendido nas últimas decisões do E. Superior Tribunal de Justiça sobre a situações autorizantes da busca pessoal, onde ficou estabelecido que toda busca deve ser feita com finalidade probatória e, portanto, é necessário conhecimento por parte do agente de elementos anteriores a fazer crer que o sujeito está levando consigo coisa ilegal.
O problema é que criou-se uma falsa ideia de que agentes policiais possuem fé pública, dotados de uma sensibilidade digna de produções hollywoodianas, capazes de ver além dos muros e paredes das casas, capazes de identificar uma bucha de maconha dentro de uma gaveta de um móvel do quarto a quilômetros de distância.
Essa crença sega nos agentes estatais não é nova, como denuncia Viviane Ghizoni:
A disciplina da parte policial e criminal da Lei 261 de 1841 (reforma do Código de Processo de 1832) foi feita pelo Regulamento 120, de 31 de janeiro de 1842, por meio do qual foram divididas as funções policiais, atribuindo a concessão dos mandados de busca aos Chefes de Polícia, Delegados, Subdelegados e Juízes Municipais. Cleunice Pitombo destaca que, enquanto para a expedição de oficio somente eram necessários veementes indícios ou fundada probabilidade (art. 120), quando a busca fosse a requerimento da parte interessada, exigia-se, em acréscimo, diversos requisitos a serem cumpridos (art. 121) – englobando desde documentos a depoimento de testemunhas. (SILVA, Viviane Ghizoni da. Fishing expedition e encontro fortuito na busca e na apreensão: um dilema oculto no processo penal / Viviane Ghizoni da Silva, Philipe Benoni Melo e Silva, Alexandre Morais da Rosa – 2ª ed. – Florianópolis: Emais, 2022, pg. 21/22)
Dito isso, nada, absolutamente nada que não possa ser capitado pelos receptores sensoriais dos seres humanos é passível de orientar qualquer resposta seja no sentido de proceder com uma busca pessoal, domiciliar ou efetuar a prisão de quem quer que seja.
Agente público pertencente aos órgãos de segurança pública não são dotados de capacidades sobrenaturais e suas atitudes não gozam de fé pública. Enquanto agentes do estado que são, os atos administrativos que venha a exarar são portadores de atributos típicos do regime jurídico administrativo, tais com a presunção (relativa) de legitimidade, imperatividade e executoriedade (MELLO, 2004), mas nem de longe são portadores de fé pública cujo conceito é afeto à teoria do bem jurídico a orientar a criação de norma penal incriminadora pelo legislador.